Discurso de Lula da Silva (excerto)

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quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Maior retrospectiva de Paula Rego inaugurada (...) em Madrid


Museu Rainha Sofia


* Alexandra Lucas Coelho

Paula Rego está no meio da sala de exposições a falar com uma mulher. Há uma sensação de estranheza quando se olha com mais atenção. O rosto de traços largos e bem definidos da mulher que conversa com a pintora parece multiplicar-se quase até ao infinito nos quadros que nos rodeiam.

Paula Rego faz um sinal para nos aproximarmos. "Desculpem, estava aqui a falar com a Lila." E, de repente, já não há mistério. Lila Nunes é, desde há muitos anos, a modelo com que a pintora trabalha. É ela o corpo, e o rosto, de muitos dos quadros da retrospectiva — a mais abrangente feita até à data — do trabalho de Paula Rego, que é inaugurada hoje no Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofia, em Madrid.

É Lila o corpo das mulheres que abortam, na série sobre o aborto, é ela as avestruzes que querem voar e não conseguem na série sobre as Avestruzes de Walt Disney, é ela a Mulher Cão, de cócoras e boca aberta, em poses de humilhante submissão. É Lila que vemos em muitos dos 89 quadros que, juntamente com mais de cem aguarelas, desenhos e gravuras, compõem esta exposição, que é também a primeira grande mostra em Espanha do trabalho da pintora nascida em Portugal em 1935 e a viver em Inglaterra há mais de cinco décadas. Paula Rego está feliz por expor "na cidade onde está a melhor pintura do mundo".

Lila despede-se, vai tentar ver a Guernica de Picasso, e logo aparece outra mulher jovem, acompanhada por um homem e uma rapariga. "Já te viste ali, Vicki?", pergunta Paula. E voltando-se para nós: "É a minha filha, que foi meu modelo naquele quadro, está a ver, a Noiva? Ela tem este vestido, que a aperta, como um casulo. É noiva, mas também é uma traça."

Paula avança pela sala, o olhar saltando de um quadro para o outro, percorrendo todo o seu universo, os seus fantasmas, os seus sonhos e os seus pesadelos, que se tornam histórias vivas, à nossa volta, quando ela as conta, como se ao contá-las as personagens despertassem e tudo acontecesse, uma e outra vez. Ali — aponta para um dos quadros (A Dormir, 1994) —, "a Mulher Cão está a descansar sobre o casaco do dono. Tem ao pé a comida. Já comeu e agora está a fazer uma soneca. E naquele, ela e a mãe andam à procura de homens no campo, assim arreganhadas".

Depois volta-se para a imagem da mulher agachada, de boca aberta (Mulher Cão, 1994): "Era uma senhora de idade que estava rodeada dos bichinhos todos de casa, as galinhas, os coelhos. Depois veio uma voz pela chaminé abaixo, como um vento, a dizer umas coisas esquisitas. A mulher agachou-se, abriu a boca, os bichos começaram a andar à volta da mesa, à volta, e meteram-se pela boca dela dentro e ela comeu-os todos. Parece-me que é um conto tradicional português. São extraordinários esses contos, são de uma violência extraordinária."

Branca de Neve e o Padre Amaro

Aqui, explica, avançando, "mandei fazer uma capela, é a capela das Avestruzes Dançarinas do Walt Disney (1995), tem um tríptico, como nas capelas".

Lá está novamente Lila, o corpo pesado, que se recusa a voar. "Querem voar, mas estão velhas, não conseguem, acordam, querem um beijinho, mas não há lá ninguém." Sai, por momentos, da história para explicar que usa sempre modelos. "Nunca uso fotografias, não consigo. E com o pastel não se consegue fazer de cabeça, porque não há informação suficiente para aqueles músculos todos." Paula e Lila trabalham das dez às sete da noite, e a modelo, depois de muitos anos de prática, "já aguenta uma hora, uma hora e meia" numa posição.

Outra sala, outra história. Desta vez o Padre Amaro, de Eça de Queiroz, e o seu crime, a Amélia grávida e "o bebé que vai ser morto". "O Padre Amaro era um livro que o meu pai apreciava muito, porque é anticlerical, mas ao mesmo tempo é uma história de amor. Ele porta-se muito mal", diz, e acrescenta imediatamente, "mas, coitado, não tinha vocação nenhuma para ser padre, para viver assim sem nada, sem mulheres". Lá está ele, o padre, quando era pequeno, mas aqui representado como um homem, deitado, em pose de menino mimado (Entre as Mulheres, 1997). "Só se sentia bem com as criadas, encostava-se às saias, faziam-lhe mimos, vestiam-no de menina. Ele gostava muito, sentia-se muito protegido. Mas sentia-se muito sozinho, só tinha uma boneca no quarto, que era a Nossa Senhora. E ali fi-lo na cama, a masturbar-se por cima da Nossa Senhora, que coisa horrível, já viu? Mas ele não tinha mais nada [A Cela, 1998]."

Para vingar a trágica Amélia, morta no parto antes de o filho ser, também ele, morto, Paula Rego criou o Anjo (Anjo, 1998), uma figura "redentora e vingativa", de camisa preta e saia comprida, sem asas brancas, mas com uma espada numa mão e uma esponja na outra. "Serve para várias histórias de mulheres maltratadas, abusadas." Não muito longe do anjo, está "a madrasta a inspeccionar as cuecas da Branca de Neve, para ver se têm sangue", e a Branca de Neve "a morrer envenenada com a maçã, mas a puxar as saias para baixo, para tapar o rabo, por pudor" (Branca de Neve e a Madrasta e Branca de Neve engole a maçã envenenada, 1995).

Branca de Neve e avestruzes surgiram de uma encomenda para uma exposição em Londres sobre a influência do cinema nos artistas. Paula foi rever os filmes com a Lila. "Vimos a Fantasia, depois fomos comprar aqueles fatos de ballet, não sabíamos nada de ballet, mas comprámos tudo, fomos à loja do Disney comprar o fato da Branca de Neve" e a pintora fez renascer, na sua versão, as personagens da Disney que via quando era pequenina e ia à tarde ao Tivoli com a avó, levando "lanche e tudo, para comer no intervalo no camarote".

O Homem Almofada

E das memórias do cinema de infância para outra sala e para a série sobre o aborto, feita "por causa do referendo em Portugal, aquele em que ninguém foi votar". Paula franze a testa. "Fiquei muito aborrecida e pensei "tenho que fazer qualquer coisa, porque isto não pode ser". "Isto" é a hipocrisia "porque as pessoas com dinheiro iam à Suíça, e as pobres, lá na Ericeira, iam a sítios terríveis, apareciam mortas na praia, todas inchadas como as vacas, depois de os namorados as terem mandado fazer abortos".

Passamos por Peter Pan e o Capitão Gancho, Jane Eyre "a entrar no escuro", o casamento falhado do Marriage à la Mode (de 1999, a partir de um quadro de Hogarth na National Gallery, em Londres), a convidada de um casamento violada na casa-de-banho, a Sereiazinha (2003) — "quando lhe cortam as pernas tem umas dores horríveis" — e muitas outras histórias de 52 anos de trabalho de Paula Rego, com as figuras oscilando sempre, numa sábia mistura, entre a inocência e a crueldade, a perversidade e o prazer

E chegamos, por fim, aos mais recentes, já com o Homem Almofada (série que começou há uns quatro anos, tendo com modelos bonecos de tamanho natural, feitos por ela própria), a personagem da peça de Martin McDonagh, que, diz a artista, transformou a sua vida. "Vi aquela peça e pensei: 'Como é que há pessoas que sabem isto?'"

"Quando comecei a fazer o Homem Almofada, percebi logo que aquilo era sobre o meu pai. Ali está ele a ler O Inferno de Dante, ilustrado pelo Gustave Doré, mas não é o Inferno, o que mostra ali é o futuro da filha, ela já está transformada em bicho. Ao fundo é o paraíso, as criadas na praia com os meninos. Tudo isto é verdade." Sorri, fala do Estoril da sua juventude, dos "senhores que iam à praia meter-se com os rapazinhos", da morte do pai, da sua professora de dança inglesa que todos diziam que era espia. Olha mais uma vez para o quadro. "A minha filha veio aqui e disse que isto era eu, o meu pai e a minha mãe." Encolhe os ombros. "É uma história de família, tudo isto. É só o que a gente faz, são histórias de família."


in Público 25.09.2007 - 10h39

Quadro - The Dance 1988 Paula Rego

1 comentário:

De Amor e de Terra disse...

Embora possam(querer) expressar alegria, como neste caso, as obras de Paula Rego têm (para mim, evidentemente) algo de sinistro...
nunca vejo rostos, olhos ou esgares de Felicidade, mesmo quando isso parece estar implícito
no momento captado!
Evidentemente não sei nada de pintura, são apenas sentires ...

Maria Mamede