Discurso de Lula da Silva (excerto)

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quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Há 120 anos: Sud-Express: um comboio chamado liberdade





1887 - Inauguração SUD Express
Sud-Express - 1939



* Myriam Zaluar

O Sud-Express ligava Paris e Lisboa, trazendo para Portugal a cultura e o glamour vindos da Europa ‘civilizada’.

Corre o ano da graça de 1887. A 21 de Outubro, parte de Paris o novíssimo Sud-Express, comboio de luxo tendo por destino as duas capitais ibéricas, Madrid e Lisboa. A composição, que dispõe de duas carruagens-cama e restaurante, chega à Estação de Santa Apolónia 43 horas depois.

Naquele domingo, 23 de Outubro – seriam 15h27 –, segundo a Imprensa da época , a família real encontrava-se ausente de Lisboa, mas a festa prolongou-se por dois dias, com banquete nos salões do Teatro da Trindade e almoço em Sintra para todos os ilustres convidados da Companhia Internacional dos Wagons-Lits.

Durante os anos que se seguiram, o Sud-Express serviu de mediador entre Portugal e o chamado mundo civilizado.

O paraíso à beira-mar plantado já padecia do seu atraso crónico e o luxuoso comboio vinha de certo modo colmatá-lo, ‘ma non troppo’: “As modas de Paris chegam-nos, sempre atrasadas, pelo Sud-Express”, comentava às tantas o atento Eça. Por essa altura já teria sido inaugurada a Estação do Rossio e a construção vizinha, o imponente Avenida-Palace.

O Sud passa a desembocar no neomanuelino terminal e os passageiros clientes do hotel usufruem de uma vantagem inédita: em vez de se dirigirem para a saída, descendo os vários lanços de escadas até à rua, dispõem de uma passagem directa para o interior do Palace. Um ‘must’.

A Belle Époque coincide com o período de glória do comboio, que continua a trazer de Paris as novidades europeias.

Em 1914, contudo, a Primeira Guerra Mundial interrompe a circulação, retomada em 1921. A marcha, porém, tornou-se mais lenta devido às dificuldades decorrentes do conflito.

A Guerra Civil de Espanha impõe novas restrições às ligações ferroviárias. Vivem-se tempos de crise na Europa e os comboios sofrem alterações constantes nos seus trajectos.

De veículo privilegiado de cultura, o Sud-Express passa então a assegurar uma nova função: a de meio de fuga de cidadãos perseguidos rumo à liberdade.

Ivette Davidoff tem hoje 86 anos e vive em Lisboa. Nascida no seio de uma família judaica de Viena, foge em Março de 1938 da capital austríaca e da ameaça nazi rumo a Paris, onde se instala com a mãe e o cão pincher. Aí vivem durante algum tempo com o tio paterno e a esposa deste.

Porém, a 11 de Junho de 1940, são obrigados a partir de novo “no último Sud-Express que saía de Austerlitz” e que, devido à guerra, só seguia até Bordéus. “Era o pesadelo da partida”, recorda. “Passámos dois dias e duas noites na estação, até que o meu tio conseguiu um lugar num compartimento”. O comboio estava apinhado. “As pessoas amontoavam-se por todo o lado, até havia gente a viajar no tejadilho”.

Durante dois anos, a família permanece em Pau, “na França livre, mais longe dos alemães”, onde pensava “poder esperar pelo fim da guerra, mas os alemães tinham tomado o Sul de França”. Mãe e filha são obrigadas a fugir novamente. Desta vez dirigem-se a Madrid. O tio e a tia ficam para trás. A capital espanhola está repleta de refugiados. “Era preciso seguir para Lisboa, onde havia amigos”. Mas não resta dinheiro suficiente às duas foragidas.

É então que surge na vida de Ivette o ‘anjo’ que recordará para sempre, sob a forma de um funcionário da Wagons-Lits. “A minha mãe propôs-lhe um anel de brilhantes. Mas ele disse: ‘Não, senhora, não me vai dar nada. Vou dar-lhe um bilhete e um compartimento com cama’. Deu-nos também o jantar”. É assim que Ivette e a mãe desembarcam em Lisboa naquele longínquo ano de 1943, escapando ao campo de concentração que teria sido o seu destino. O homem que lhes salvou a vida quis ficar anónimo. Nunca mais o viu.

Quase 20 anos mais tarde, o contexto português tinha mudado radicalmente. Para os jovens começava a desenhar-se a ameaça da guerra em África. Vasco de Castro, hoje caricaturista, com 72 anos, consegue embarcar “numa bela manhã de domingo de 1962”. Para trás ficava um autêntico jogo do gato e do rato com a autoridade militar e a obtenção de um passaporte válido por três meses conseguido com algum engenho e grande dose de imaginação. A viagem, recorda, “foi insuportável”.

Um dia e meio a “passo de diligência”, “paragens em todas as estações e apeadeiros”, “o calor abrasador na travessia de Espanha e toda aquela gente muito palavrosa”, “o ambiente sombrio”. Mas, para Vasco, “provavelmente o primeiro desertor das Forças Armadas Portuguesas”, é inesquecível o alívio enquanto passava a fronteira. “Lá ficou a piolheira”, pensou. “Do lado francês, o comboio era outro, mais veloz. Mesmo assim demorou um dia inteiro a chegar a Paris”. Chegado a Austerlitz, a expectativa, a estranheza do desconhecido.“Estava convencido que nunca mais regressaria”. O comboio tinha-o salvo mas Vasco jurou para nunca mais. E cumpriu. “A viagem em sentido contrário, a 30 de Abril de 74”, foi... de avião.

A 1 de Abril de 1971 – “o Dia das Mentiras!” – o jovem Artur Silva chega à Guarda, acompanhado de um amigo do bairro lisboeta da Ajuda. Ambos tinham sido chamados para a tropa, o que significava a ida para a guerra. Na cidade beirã transaccionava-se autênticos planos de fuga. O bilhete para Paris que compraram ao dono de um café “incluía um táxi Guarda-Almeida”. As fronteiras eram, claro, passadas a pé.

Em Fuentes de Oñoro, recorda, “pediram-nos cinco escudos por um salvo-conduto”. Num “ambiente estranho, dezenas de pessoas, mulheres e velhos de um lado, homens do outro”, os dois companheiros atravessaram “um túnel enorme, com o coração nas mãos”. De volta ao comboio, nem todos eram refractários. “Alguns tinham feito a guerra. Quando explicávamos ao que íamos, eles torciam o nariz”. Artur vive ainda em Paris. É jornalista. Depois do 25 de Abril ainda viajou no Sud-Express.

Curiosamente, garante que o ambiente não era tão diferente como seria de esperar. Tinha fugido à tropa, continuava a ser um criminoso aos olhos do Estado. “Quando passávamos a fronteira em Vilar Formoso, perguntávamo-nos se o regime tinha mesmo mudado! Precisávamos de um passaporte militar”.

Com os anos, diz o jornalista, “a qualidade do comboio também mudou. A CP passou a tratar-nos um pouco melhor”. Mas o Sud-Express continuou a ser “o comboio dos emigrantes”.

Os viajantes fazem-se acompanhar de farnéis bem portugueses: quilos de bacalhau, sacos de couves e garrafões de vinho.

Hoje o comboio só vai até Hendaye. Os passageiros, que outrora passavam a ‘duana’ a pé, fazem agora o transbordo e seguem para Paris... de TGV.

MEMÓRIA VIVE EM NOME DA EMIGRAÇÃO PORTUGUESA

Manuel Madeira fugiu para Paris no início de 1962. Percorreu 400 km a pé em território espanhol após passar a fronteira a salto. Depois apanhou o Sud-Express, mas não sofreu grande controlo: “Era ainda o início da emigração.” Foi só no ano seguinte que os portugueses, fugidos ao regime uns, em busca de melhores condições de vida outros, “começaram a desembarcar em Austerlitz aos milhares”. Em 2003, juntamente com um grupo de amigos, funda a associação Memória Viva, que visa preservar a história da emigração portuguesa em França. A associação elegeu o Sud-Express como símbolo e lançou o site www.sudexpress.org. Considera o mítico comboio como “um verdadeiro veículo de libertação através dos tempos” e é de opinião que a estação de Austerlitz, aonde o Sud chega, devia ser “monumento nacional”.

ENTRE 1963 e 1973

Mais de um milhão de portugueses emigraram clandestinamente. A grande maioria desembarcou na mítica ‘Gare d’Austerlitz’. Os que viajavam sem papéis desciam diversas vezes do Sud-Express e passavam as fronteiras a pé. A PIDE controlava todo o trajecto do comboio.

OUTROS TEMPOS

João Boavida e Elísio Torres trabalham no ‘wagon-restaurant’ desde “os tempos em que os fogões ainda trabalhavam a carvão”. Viveram histórias memoráveis mas Elísio nunca esquecerá o PIDE, que certa vez lhe pediu uma omeleta. “Disse-lhe que não. Só o meu chefe podia autorizar. Quando chegámos à fronteira mandou-me acompanhá-lo a uma cave. Já me preparava para enfardar.” O chefe safou-o. As relações dos funcionários com a polícia política eram cordiais. “Tínhamos medo!”, recordam.

EM 2006

Viajaram no Sud-Express 115 mil passageiros, o que representou uma receita de 6,5 milhões de euros. Todos os dias, o comboio parte de Santa Apolónia às 16h06 e chega a Hendaye às 07h10 do dia seguinte. Os passageiros podem optar entre lugares deitados, de 1.ª e 2.ª classe, e lugares sentados de 2.ª. Durante décadas, em Hendaye, todos os passageiros desciam do comboio para entrar nas carruagens francesas. Só os ocupantes das ‘couchettes’ permaneciam a bordo. Estes ‘vagões’ eram então levantados a cerca de metro e meio do chão para que fossem mudados os rodados.

O PRIMEIRO SUD-EXPRESS

Incluía duas carruagens-cama de 20 lugares e um ‘wagon-restaurant’ com sala de jantar para 20 pessoas e sala de fumo para 8. As carruagens, esclarece a CP, eram ligadas por “plataformas abertas providas de corrimãos e de passadiços.

Para iluminação utilizava-se óleo mineral, e o aquecimento era feito por meio de água quente que circulava em tubos de cobre”. Até meados dos anos 90, o comboio só era eléctrico até ao Entroncamento. A partir daí a máquina funcionava a diesel.


in Correio da Manhã 2007.10.21
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Elogio do Sud Express
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* Francisco José Viegas

Tudo isso aconteceu há muito tempo, quando eu viajava pela Europa de comboio. Tenho saudades dessas viagens, mas sei que não voltam. Eram outro tem­po, há muito tempo. Partíamos sem saber o destino final, havia um inter-rail no pa­pel e outro no coração. Não havia ro­mances de Verão, não havia namoros, não havia depressões, não havia interes­ses que se arrumassem ao canto - havia apenas viagens de Verão, o ronronar do comboio atravessando as paisagens noc­turnas de Espanha antes da madrugada no País Basco, quando atravessávamos a primeira luz de Vitória, antes de nos apro­ximarmos de Hendaye. Velho Sud Ex­press. Não há melancolia nenhuma nes­ta frase. Velho Sud Express sujo, chiando em todas as curvas, falando em luso-francês, atravessando as pontes, inclinado so­bre os rios, despertando memórias. E ve­lho Sud Express ainda onde se fumava nos corredores, se partilhava a comida com desconhecidos, se falava em línguas estranhas (com tantos erros de sintaxe quanto o entusiasmo em conhecer os companheiros de viagem), se liam romances que ficavam esquecidos ou se pas­savam ao passageiro mais próximo.

Tudo isso aconteceu há muito tempo, no tempo em que não conhecíamos ho­téis, nem restaurantes de «comida de fu­são» – igual em todo o lado –, nem lojas de roupa, nem sjx«, nem discotecas onde as bebidas são iguais - tudo igual em todo o lado -, nem ruídos de aeroporto ou viagens law-cost. Só havia esse ruído, o «tan-tan-tan» do Sud Express entre Santa Apolónia ou São Bento e Austerlitz, com mudança em Irún/Hendaye, sob a vigi­lância petulante dos gendarmes franceses, vistos do lado de cá da fronteira por carabineros de tricórnio e farda verde oliva.

Velho Sud Express (1877), museu vi­vo das viagens de adolescentes, quando não havia telemóveis e um telefonema para a família custava uma refeição a me­nos nos vinte e seis dias de viagem—a va­lidade do inter-rail. Entroncamento, Pampilhosa, Mangualde, Vila Franca das Naves, Vilar Formoso, Fuentes d'Oñoro, Salamaca, Medina dei Campo, Vitória, San Sebastian e Irún - e depois Dax, Biarritz, Bordéus, Paris Austerlitz. Dizem-me que a viagem, hoje, é cómoda a partir de Irún, com o TGV francês que che­ga a Paris Montparnasse. Não, não era cómoda a viagem, em carruagens quase históricas, gastas por anos de uso de emi­grações, exílios e viagens de Verão.

Aliás, vínhamos e íamos com os emi­grantes, íamos sozinhos, em grupo ou sem sentido, íamos com mapas, com indica­ções, com guias comprados com antece­dência de meses (estudados ao porme­nor), e também com algum receio de rapazes e raparigas do Sul da Europa que chegavam a Paris para ver o mundo. Eu preferia sair de Austerlitz e seguir logo pa­ra a Gare du Nord, de onde se saía para a Escandinávia, a Alemanha ou a Holan­da. Paris no regresso, só, para cumprir ro­teiro. Mas, no regresso, aquelas carrua­gens do Sud Express eram a nossa pequena pátria. Trazíamos livros, postais, uma T-shirt comprada em Copenhaga, um poster comprado num museu de Amesterdão, e também necessidade de banho, de uma refeição (tínhamos passa­do vários dias a comer bolachas, iogurtes, conservas, queijo e pães de ocasião).

Nós, os do inter-rail desses anos (setenta, oi­tenta), fomos cosmopolitas por acaso, ciosos do passaporte e dos guichets de ex-change money onde desconfiavam das nossas notas de mil ou cinco mil escudos, trocadas com solenidade e pavor, receo­sos das contas em florins, coroas, libras, francos ou marcos. O mundo, na verda­de — feitas bem as contas -, era mais difí­cil. Ligeiramente mais difícil com essas formalidades de fronteira, de câmbio de moeda e de controlo policial. Mas era o mundo. O mundo lá de fora, o mundo que fazia de nós cosmopolitas mal atra­vessávamos Fuentes de Oñoro a bordo do Sud Express. Velho e sujo Sud Express.

in Outro Hemisfério - Revista Volta ao Mundo – Agosto 2007
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