* Myriam Zaluar
O Sud-Express ligava Paris e Lisboa, trazendo para Portugal a cultura e o glamour vindos da Europa ‘civilizada’.
Corre o ano da graça de 1887. A 21 de Outubro, parte de Paris o novíssimo Sud-Express, comboio de luxo tendo por destino as duas capitais ibéricas, Madrid e Lisboa. A composição, que dispõe de duas carruagens-cama e restaurante, chega à Estação de Santa Apolónia 43 horas depois.
Naquele domingo, 23 de Outubro – seriam 15h27 –, segundo a Imprensa da época , a família real encontrava-se ausente de Lisboa, mas a festa prolongou-se por dois dias, com banquete nos salões do Teatro da Trindade e almoço em Sintra para todos os ilustres convidados da Companhia Internacional dos Wagons-Lits.
Durante os anos que se seguiram, o Sud-Express serviu de mediador entre Portugal e o chamado mundo civilizado.
O paraíso à beira-mar plantado já padecia do seu atraso crónico e o luxuoso comboio vinha de certo modo colmatá-lo, ‘ma non troppo’: “As modas de Paris chegam-nos, sempre atrasadas, pelo Sud-Express”, comentava às tantas o atento Eça. Por essa altura já teria sido inaugurada a Estação do Rossio e a construção vizinha, o imponente Avenida-Palace.
O Sud passa a desembocar no neomanuelino terminal e os passageiros clientes do hotel usufruem de uma vantagem inédita: em vez de se dirigirem para a saída, descendo os vários lanços de escadas até à rua, dispõem de uma passagem directa para o interior do Palace. Um ‘must’.
A Belle Époque coincide com o período de glória do comboio, que continua a trazer de Paris as novidades europeias.
Em 1914, contudo, a Primeira Guerra Mundial interrompe a circulação, retomada em 1921. A marcha, porém, tornou-se mais lenta devido às dificuldades decorrentes do conflito.
A Guerra Civil de Espanha impõe novas restrições às ligações ferroviárias. Vivem-se tempos de crise na Europa e os comboios sofrem alterações constantes nos seus trajectos.
De veículo privilegiado de cultura, o Sud-Express passa então a assegurar uma nova função: a de meio de fuga de cidadãos perseguidos rumo à liberdade.
Ivette Davidoff tem hoje 86 anos e vive em Lisboa. Nascida no seio de uma família judaica de Viena, foge em Março de 1938 da capital austríaca e da ameaça nazi rumo a Paris, onde se instala com a mãe e o cão pincher. Aí vivem durante algum tempo com o tio paterno e a esposa deste.
Porém, a 11 de Junho de 1940, são obrigados a partir de novo “no último Sud-Express que saía de Austerlitz” e que, devido à guerra, só seguia até Bordéus. “Era o pesadelo da partida”, recorda. “Passámos dois dias e duas noites na estação, até que o meu tio conseguiu um lugar num compartimento”. O comboio estava apinhado. “As pessoas amontoavam-se por todo o lado, até havia gente a viajar no tejadilho”.
Durante dois anos, a família permanece em Pau, “na França livre, mais longe dos alemães”, onde pensava “poder esperar pelo fim da guerra, mas os alemães tinham tomado o Sul de França”. Mãe e filha são obrigadas a fugir novamente. Desta vez dirigem-se a Madrid. O tio e a tia ficam para trás. A capital espanhola está repleta de refugiados. “Era preciso seguir para Lisboa, onde havia amigos”. Mas não resta dinheiro suficiente às duas foragidas.
É então que surge na vida de Ivette o ‘anjo’ que recordará para sempre, sob a forma de um funcionário da Wagons-Lits. “A minha mãe propôs-lhe um anel de brilhantes. Mas ele disse: ‘Não, senhora, não me vai dar nada. Vou dar-lhe um bilhete e um compartimento com cama’. Deu-nos também o jantar”. É assim que Ivette e a mãe desembarcam em Lisboa naquele longínquo ano de 1943, escapando ao campo de concentração que teria sido o seu destino. O homem que lhes salvou a vida quis ficar anónimo. Nunca mais o viu.
Quase 20 anos mais tarde, o contexto português tinha mudado radicalmente. Para os jovens começava a desenhar-se a ameaça da guerra em África. Vasco de Castro, hoje caricaturista, com 72 anos, consegue embarcar “numa bela manhã de domingo de 1962”. Para trás ficava um autêntico jogo do gato e do rato com a autoridade militar e a obtenção de um passaporte válido por três meses conseguido com algum engenho e grande dose de imaginação. A viagem, recorda, “foi insuportável”.
Um dia e meio a “passo de diligência”, “paragens em todas as estações e apeadeiros”, “o calor abrasador na travessia de Espanha e toda aquela gente muito palavrosa”, “o ambiente sombrio”. Mas, para Vasco, “provavelmente o primeiro desertor das Forças Armadas Portuguesas”, é inesquecível o alívio enquanto passava a fronteira. “Lá ficou a piolheira”, pensou. “Do lado francês, o comboio era outro, mais veloz. Mesmo assim demorou um dia inteiro a chegar a Paris”. Chegado a Austerlitz, a expectativa, a estranheza do desconhecido.“Estava convencido que nunca mais regressaria”. O comboio tinha-o salvo mas Vasco jurou para nunca mais. E cumpriu. “A viagem em sentido contrário, a 30 de Abril de 74”, foi... de avião.
A 1 de Abril de 1971 – “o Dia das Mentiras!” – o jovem Artur Silva chega à Guarda, acompanhado de um amigo do bairro lisboeta da Ajuda. Ambos tinham sido chamados para a tropa, o que significava a ida para a guerra. Na cidade beirã transaccionava-se autênticos planos de fuga. O bilhete para Paris que compraram ao dono de um café “incluía um táxi Guarda-Almeida”. As fronteiras eram, claro, passadas a pé.
Em Fuentes de Oñoro, recorda, “pediram-nos cinco escudos por um salvo-conduto”. Num “ambiente estranho, dezenas de pessoas, mulheres e velhos de um lado, homens do outro”, os dois companheiros atravessaram “um túnel enorme, com o coração nas mãos”. De volta ao comboio, nem todos eram refractários. “Alguns tinham feito a guerra. Quando explicávamos ao que íamos, eles torciam o nariz”. Artur vive ainda em Paris. É jornalista. Depois do 25 de Abril ainda viajou no Sud-Express.
Curiosamente, garante que o ambiente não era tão diferente como seria de esperar. Tinha fugido à tropa, continuava a ser um criminoso aos olhos do Estado. “Quando passávamos a fronteira em Vilar Formoso, perguntávamo-nos se o regime tinha mesmo mudado! Precisávamos de um passaporte militar”.
Com os anos, diz o jornalista, “a qualidade do comboio também mudou. A CP passou a tratar-nos um pouco melhor”. Mas o Sud-Express continuou a ser “o comboio dos emigrantes”.
Os viajantes fazem-se acompanhar de farnéis bem portugueses: quilos de bacalhau, sacos de couves e garrafões de vinho.
Hoje o comboio só vai até Hendaye. Os passageiros, que outrora passavam a ‘duana’ a pé, fazem agora o transbordo e seguem para Paris... de TGV.
MEMÓRIA VIVE EM NOME DA EMIGRAÇÃO PORTUGUESA
Manuel Madeira fugiu para Paris no início de 1962. Percorreu 400 km a pé em território espanhol após passar a fronteira a salto. Depois apanhou o Sud-Express, mas não sofreu grande controlo: “Era ainda o início da emigração.” Foi só no ano seguinte que os portugueses, fugidos ao regime uns, em busca de melhores condições de vida outros, “começaram a desembarcar em Austerlitz aos milhares”. Em 2003, juntamente com um grupo de amigos, funda a associação Memória Viva, que visa preservar a história da emigração portuguesa em França. A associação elegeu o Sud-Express como símbolo e lançou o site www.sudexpress.org. Considera o mítico comboio como “um verdadeiro veículo de libertação através dos tempos” e é de opinião que a estação de Austerlitz, aonde o Sud chega, devia ser “monumento nacional”.
ENTRE 1963 e 1973
Mais de um milhão de portugueses emigraram clandestinamente. A grande maioria desembarcou na mítica ‘Gare d’Austerlitz’. Os que viajavam sem papéis desciam diversas vezes do Sud-Express e passavam as fronteiras a pé. A PIDE controlava todo o trajecto do comboio.
OUTROS TEMPOS
João Boavida e Elísio Torres trabalham no ‘wagon-restaurant’ desde “os tempos em que os fogões ainda trabalhavam a carvão”. Viveram histórias memoráveis mas Elísio nunca esquecerá o PIDE, que certa vez lhe pediu uma omeleta. “Disse-lhe que não. Só o meu chefe podia autorizar. Quando chegámos à fronteira mandou-me acompanhá-lo a uma cave. Já me preparava para enfardar.” O chefe safou-o. As relações dos funcionários com a polícia política eram cordiais. “Tínhamos medo!”, recordam.
EM 2006
Viajaram no Sud-Express 115 mil passageiros, o que representou uma receita de 6,5 milhões de euros. Todos os dias, o comboio parte de Santa Apolónia às 16h06 e chega a Hendaye às 07h10 do dia seguinte. Os passageiros podem optar entre lugares deitados, de 1.ª e 2.ª classe, e lugares sentados de 2.ª. Durante décadas, em Hendaye, todos os passageiros desciam do comboio para entrar nas carruagens francesas. Só os ocupantes das ‘couchettes’ permaneciam a bordo. Estes ‘vagões’ eram então levantados a cerca de metro e meio do chão para que fossem mudados os rodados.
O PRIMEIRO SUD-EXPRESS
Incluía duas carruagens-cama de 20 lugares e um ‘wagon-restaurant’ com sala de jantar para 20 pessoas e sala de fumo para 8. As carruagens, esclarece a CP, eram ligadas por “plataformas abertas providas de corrimãos e de passadiços.
Para iluminação utilizava-se óleo mineral, e o aquecimento era feito por meio de água quente que circulava em tubos de cobre”. Até meados dos anos 90, o comboio só era eléctrico até ao Entroncamento. A partir daí a máquina funcionava a diesel.
Corre o ano da graça de 1887. A 21 de Outubro, parte de Paris o novíssimo Sud-Express, comboio de luxo tendo por destino as duas capitais ibéricas, Madrid e Lisboa. A composição, que dispõe de duas carruagens-cama e restaurante, chega à Estação de Santa Apolónia 43 horas depois.
Durante os anos que se seguiram, o Sud-Express serviu de mediador entre Portugal e o chamado mundo civilizado.
O paraíso à beira-mar plantado já padecia do seu atraso crónico e o luxuoso comboio vinha de certo modo colmatá-lo, ‘ma non troppo’: “As modas de Paris chegam-nos, sempre atrasadas, pelo Sud-Express”, comentava às tantas o atento Eça. Por essa altura já teria sido inaugurada a Estação do Rossio e a construção vizinha, o imponente Avenida-Palace.
O Sud passa a desembocar no neomanuelino terminal e os passageiros clientes do hotel usufruem de uma vantagem inédita: em vez de se dirigirem para a saída, descendo os vários lanços de escadas até à rua, dispõem de uma passagem directa para o interior do Palace. Um ‘must’.
A Belle Époque coincide com o período de glória do comboio, que continua a trazer de Paris as novidades europeias.
Em 1914, contudo, a Primeira Guerra Mundial interrompe a circulação, retomada em 1921. A marcha, porém, tornou-se mais lenta devido às dificuldades decorrentes do conflito.
A Guerra Civil de Espanha impõe novas restrições às ligações ferroviárias. Vivem-se tempos de crise na Europa e os comboios sofrem alterações constantes nos seus trajectos.
De veículo privilegiado de cultura, o Sud-Express passa então a assegurar uma nova função: a de meio de fuga de cidadãos perseguidos rumo à liberdade.
Ivette Davidoff tem hoje 86 anos e vive em Lisboa. Nascida no seio de uma família judaica de Viena, foge em Março de 1938 da capital austríaca e da ameaça nazi rumo a Paris, onde se instala com a mãe e o cão pincher. Aí vivem durante algum tempo com o tio paterno e a esposa deste.
Porém, a 11 de Junho de 1940, são obrigados a partir de novo “no último Sud-Express que saía de Austerlitz” e que, devido à guerra, só seguia até Bordéus. “Era o pesadelo da partida”, recorda. “Passámos dois dias e duas noites na estação, até que o meu tio conseguiu um lugar num compartimento”. O comboio estava apinhado. “As pessoas amontoavam-se por todo o lado, até havia gente a viajar no tejadilho”.
Durante dois anos, a família permanece em Pau, “na França livre, mais longe dos alemães”, onde pensava “poder esperar pelo fim da guerra, mas os alemães tinham tomado o Sul de França”. Mãe e filha são obrigadas a fugir novamente. Desta vez dirigem-se a Madrid. O tio e a tia ficam para trás. A capital espanhola está repleta de refugiados. “Era preciso seguir para Lisboa, onde havia amigos”. Mas não resta dinheiro suficiente às duas foragidas.
É então que surge na vida de Ivette o ‘anjo’ que recordará para sempre, sob a forma de um funcionário da Wagons-Lits. “A minha mãe propôs-lhe um anel de brilhantes. Mas ele disse: ‘Não, senhora, não me vai dar nada. Vou dar-lhe um bilhete e um compartimento com cama’. Deu-nos também o jantar”. É assim que Ivette e a mãe desembarcam em Lisboa naquele longínquo ano de 1943, escapando ao campo de concentração que teria sido o seu destino. O homem que lhes salvou a vida quis ficar anónimo. Nunca mais o viu.
Quase 20 anos mais tarde, o contexto português tinha mudado radicalmente. Para os jovens começava a desenhar-se a ameaça da guerra em África. Vasco de Castro, hoje caricaturista, com 72 anos, consegue embarcar “numa bela manhã de domingo de 1962”. Para trás ficava um autêntico jogo do gato e do rato com a autoridade militar e a obtenção de um passaporte válido por três meses conseguido com algum engenho e grande dose de imaginação. A viagem, recorda, “foi insuportável”.
Um dia e meio a “passo de diligência”, “paragens em todas as estações e apeadeiros”, “o calor abrasador na travessia de Espanha e toda aquela gente muito palavrosa”, “o ambiente sombrio”. Mas, para Vasco, “provavelmente o primeiro desertor das Forças Armadas Portuguesas”, é inesquecível o alívio enquanto passava a fronteira. “Lá ficou a piolheira”, pensou. “Do lado francês, o comboio era outro, mais veloz. Mesmo assim demorou um dia inteiro a chegar a Paris”. Chegado a Austerlitz, a expectativa, a estranheza do desconhecido.“Estava convencido que nunca mais regressaria”. O comboio tinha-o salvo mas Vasco jurou para nunca mais. E cumpriu. “A viagem em sentido contrário, a 30 de Abril de 74”, foi... de avião.
A 1 de Abril de 1971 – “o Dia das Mentiras!” – o jovem Artur Silva chega à Guarda, acompanhado de um amigo do bairro lisboeta da Ajuda. Ambos tinham sido chamados para a tropa, o que significava a ida para a guerra. Na cidade beirã transaccionava-se autênticos planos de fuga. O bilhete para Paris que compraram ao dono de um café “incluía um táxi Guarda-Almeida”. As fronteiras eram, claro, passadas a pé.
Em Fuentes de Oñoro, recorda, “pediram-nos cinco escudos por um salvo-conduto”. Num “ambiente estranho, dezenas de pessoas, mulheres e velhos de um lado, homens do outro”, os dois companheiros atravessaram “um túnel enorme, com o coração nas mãos”. De volta ao comboio, nem todos eram refractários. “Alguns tinham feito a guerra. Quando explicávamos ao que íamos, eles torciam o nariz”. Artur vive ainda em Paris. É jornalista. Depois do 25 de Abril ainda viajou no Sud-Express.
Curiosamente, garante que o ambiente não era tão diferente como seria de esperar. Tinha fugido à tropa, continuava a ser um criminoso aos olhos do Estado. “Quando passávamos a fronteira em Vilar Formoso, perguntávamo-nos se o regime tinha mesmo mudado! Precisávamos de um passaporte militar”.
Com os anos, diz o jornalista, “a qualidade do comboio também mudou. A CP passou a tratar-nos um pouco melhor”. Mas o Sud-Express continuou a ser “o comboio dos emigrantes”.
Os viajantes fazem-se acompanhar de farnéis bem portugueses: quilos de bacalhau, sacos de couves e garrafões de vinho.
Hoje o comboio só vai até Hendaye. Os passageiros, que outrora passavam a ‘duana’ a pé, fazem agora o transbordo e seguem para Paris... de TGV.
MEMÓRIA VIVE EM NOME DA EMIGRAÇÃO PORTUGUESA
Manuel Madeira fugiu para Paris no início de 1962. Percorreu 400 km a pé em território espanhol após passar a fronteira a salto. Depois apanhou o Sud-Express, mas não sofreu grande controlo: “Era ainda o início da emigração.” Foi só no ano seguinte que os portugueses, fugidos ao regime uns, em busca de melhores condições de vida outros, “começaram a desembarcar em Austerlitz aos milhares”. Em 2003, juntamente com um grupo de amigos, funda a associação Memória Viva, que visa preservar a história da emigração portuguesa em França. A associação elegeu o Sud-Express como símbolo e lançou o site www.sudexpress.org. Considera o mítico comboio como “um verdadeiro veículo de libertação através dos tempos” e é de opinião que a estação de Austerlitz, aonde o Sud chega, devia ser “monumento nacional”.
ENTRE 1963 e 1973
Mais de um milhão de portugueses emigraram clandestinamente. A grande maioria desembarcou na mítica ‘Gare d’Austerlitz’. Os que viajavam sem papéis desciam diversas vezes do Sud-Express e passavam as fronteiras a pé. A PIDE controlava todo o trajecto do comboio.
OUTROS TEMPOS
João Boavida e Elísio Torres trabalham no ‘wagon-restaurant’ desde “os tempos em que os fogões ainda trabalhavam a carvão”. Viveram histórias memoráveis mas Elísio nunca esquecerá o PIDE, que certa vez lhe pediu uma omeleta. “Disse-lhe que não. Só o meu chefe podia autorizar. Quando chegámos à fronteira mandou-me acompanhá-lo a uma cave. Já me preparava para enfardar.” O chefe safou-o. As relações dos funcionários com a polícia política eram cordiais. “Tínhamos medo!”, recordam.
EM 2006
Viajaram no Sud-Express 115 mil passageiros, o que representou uma receita de 6,5 milhões de euros. Todos os dias, o comboio parte de Santa Apolónia às 16h06 e chega a Hendaye às 07h10 do dia seguinte. Os passageiros podem optar entre lugares deitados, de 1.ª e 2.ª classe, e lugares sentados de 2.ª. Durante décadas, em Hendaye, todos os passageiros desciam do comboio para entrar nas carruagens francesas. Só os ocupantes das ‘couchettes’ permaneciam a bordo. Estes ‘vagões’ eram então levantados a cerca de metro e meio do chão para que fossem mudados os rodados.
O PRIMEIRO SUD-EXPRESS
Incluía duas carruagens-cama de 20 lugares e um ‘wagon-restaurant’ com sala de jantar para 20 pessoas e sala de fumo para 8. As carruagens, esclarece a CP, eram ligadas por “plataformas abertas providas de corrimãos e de passadiços.
Para iluminação utilizava-se óleo mineral, e o aquecimento era feito por meio de água quente que circulava em tubos de cobre”. Até meados dos anos 90, o comboio só era eléctrico até ao Entroncamento. A partir daí a máquina funcionava a diesel.
in Correio da Manhã 2007.10.21
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Elogio do Sud Express
Elogio do Sud Express
.
.
* Francisco José Viegas
Tudo isso aconteceu há muito tempo, quando eu viajava pela Europa de comboio. Tenho saudades dessas viagens, mas sei que não voltam. Eram outro tempo, há muito tempo. Partíamos sem saber o destino final, havia um inter-rail no papel e outro no coração. Não havia romances de Verão, não havia namoros, não havia depressões, não havia interesses que se arrumassem ao canto - havia apenas viagens de Verão, o ronronar do comboio atravessando as paisagens nocturnas de Espanha antes da madrugada no País Basco, quando atravessávamos a primeira luz de Vitória, antes de nos aproximarmos de Hendaye. Velho Sud Express. Não há melancolia nenhuma nesta frase. Velho Sud Express sujo, chiando em todas as curvas, falando em luso-francês, atravessando as pontes, inclinado sobre os rios, despertando memórias. E velho Sud Express ainda onde se fumava nos corredores, se partilhava a comida com desconhecidos, se falava em línguas estranhas (com tantos erros de sintaxe quanto o entusiasmo em conhecer os companheiros de viagem), se liam romances que ficavam esquecidos ou se passavam ao passageiro mais próximo.
Tudo isso aconteceu há muito tempo, no tempo em que não conhecíamos hotéis, nem restaurantes de «comida de fusão» – igual em todo o lado –, nem lojas de roupa, nem sjx«, nem discotecas onde as bebidas são iguais - tudo igual em todo o lado -, nem ruídos de aeroporto ou viagens law-cost. Só havia esse ruído, o «tan-tan-tan» do Sud Express entre Santa Apolónia ou São Bento e Austerlitz, com mudança em Irún/Hendaye, sob a vigilância petulante dos gendarmes franceses, vistos do lado de cá da fronteira por carabineros de tricórnio e farda verde oliva.
Velho Sud Express (1877), museu vivo das viagens de adolescentes, quando não havia telemóveis e um telefonema para a família custava uma refeição a menos nos vinte e seis dias de viagem—a validade do inter-rail. Entroncamento, Pampilhosa, Mangualde, Vila Franca das Naves, Vilar Formoso, Fuentes d'Oñoro, Salamaca, Medina dei Campo, Vitória, San Sebastian e Irún - e depois Dax, Biarritz, Bordéus, Paris Austerlitz. Dizem-me que a viagem, hoje, é cómoda a partir de Irún, com o TGV francês que chega a Paris Montparnasse. Não, não era cómoda a viagem, em carruagens quase históricas, gastas por anos de uso de emigrações, exílios e viagens de Verão.
Aliás, vínhamos e íamos com os emigrantes, íamos sozinhos, em grupo ou sem sentido, íamos com mapas, com indicações, com guias comprados com antecedência de meses (estudados ao pormenor), e também com algum receio de rapazes e raparigas do Sul da Europa que chegavam a Paris para ver o mundo. Eu preferia sair de Austerlitz e seguir logo para a Gare du Nord, de onde se saía para a Escandinávia, a Alemanha ou a Holanda. Paris no regresso, só, para cumprir roteiro. Mas, no regresso, aquelas carruagens do Sud Express eram a nossa pequena pátria. Trazíamos livros, postais, uma T-shirt comprada em Copenhaga, um poster comprado num museu de Amesterdão, e também necessidade de banho, de uma refeição (tínhamos passado vários dias a comer bolachas, iogurtes, conservas, queijo e pães de ocasião).
Nós, os do inter-rail desses anos (setenta, oitenta), fomos cosmopolitas por acaso, ciosos do passaporte e dos guichets de ex-change money onde desconfiavam das nossas notas de mil ou cinco mil escudos, trocadas com solenidade e pavor, receosos das contas em florins, coroas, libras, francos ou marcos. O mundo, na verdade — feitas bem as contas -, era mais difícil. Ligeiramente mais difícil com essas formalidades de fronteira, de câmbio de moeda e de controlo policial. Mas era o mundo. O mundo lá de fora, o mundo que fazia de nós cosmopolitas mal atravessávamos Fuentes de Oñoro a bordo do Sud Express. Velho e sujo Sud Express.
in Outro Hemisfério - Revista Volta ao Mundo – Agosto 2007
.
Tudo isso aconteceu há muito tempo, quando eu viajava pela Europa de comboio. Tenho saudades dessas viagens, mas sei que não voltam. Eram outro tempo, há muito tempo. Partíamos sem saber o destino final, havia um inter-rail no papel e outro no coração. Não havia romances de Verão, não havia namoros, não havia depressões, não havia interesses que se arrumassem ao canto - havia apenas viagens de Verão, o ronronar do comboio atravessando as paisagens nocturnas de Espanha antes da madrugada no País Basco, quando atravessávamos a primeira luz de Vitória, antes de nos aproximarmos de Hendaye. Velho Sud Express. Não há melancolia nenhuma nesta frase. Velho Sud Express sujo, chiando em todas as curvas, falando em luso-francês, atravessando as pontes, inclinado sobre os rios, despertando memórias. E velho Sud Express ainda onde se fumava nos corredores, se partilhava a comida com desconhecidos, se falava em línguas estranhas (com tantos erros de sintaxe quanto o entusiasmo em conhecer os companheiros de viagem), se liam romances que ficavam esquecidos ou se passavam ao passageiro mais próximo.
Tudo isso aconteceu há muito tempo, no tempo em que não conhecíamos hotéis, nem restaurantes de «comida de fusão» – igual em todo o lado –, nem lojas de roupa, nem sjx«, nem discotecas onde as bebidas são iguais - tudo igual em todo o lado -, nem ruídos de aeroporto ou viagens law-cost. Só havia esse ruído, o «tan-tan-tan» do Sud Express entre Santa Apolónia ou São Bento e Austerlitz, com mudança em Irún/Hendaye, sob a vigilância petulante dos gendarmes franceses, vistos do lado de cá da fronteira por carabineros de tricórnio e farda verde oliva.
Velho Sud Express (1877), museu vivo das viagens de adolescentes, quando não havia telemóveis e um telefonema para a família custava uma refeição a menos nos vinte e seis dias de viagem—a validade do inter-rail. Entroncamento, Pampilhosa, Mangualde, Vila Franca das Naves, Vilar Formoso, Fuentes d'Oñoro, Salamaca, Medina dei Campo, Vitória, San Sebastian e Irún - e depois Dax, Biarritz, Bordéus, Paris Austerlitz. Dizem-me que a viagem, hoje, é cómoda a partir de Irún, com o TGV francês que chega a Paris Montparnasse. Não, não era cómoda a viagem, em carruagens quase históricas, gastas por anos de uso de emigrações, exílios e viagens de Verão.
Aliás, vínhamos e íamos com os emigrantes, íamos sozinhos, em grupo ou sem sentido, íamos com mapas, com indicações, com guias comprados com antecedência de meses (estudados ao pormenor), e também com algum receio de rapazes e raparigas do Sul da Europa que chegavam a Paris para ver o mundo. Eu preferia sair de Austerlitz e seguir logo para a Gare du Nord, de onde se saía para a Escandinávia, a Alemanha ou a Holanda. Paris no regresso, só, para cumprir roteiro. Mas, no regresso, aquelas carruagens do Sud Express eram a nossa pequena pátria. Trazíamos livros, postais, uma T-shirt comprada em Copenhaga, um poster comprado num museu de Amesterdão, e também necessidade de banho, de uma refeição (tínhamos passado vários dias a comer bolachas, iogurtes, conservas, queijo e pães de ocasião).
Nós, os do inter-rail desses anos (setenta, oitenta), fomos cosmopolitas por acaso, ciosos do passaporte e dos guichets de ex-change money onde desconfiavam das nossas notas de mil ou cinco mil escudos, trocadas com solenidade e pavor, receosos das contas em florins, coroas, libras, francos ou marcos. O mundo, na verdade — feitas bem as contas -, era mais difícil. Ligeiramente mais difícil com essas formalidades de fronteira, de câmbio de moeda e de controlo policial. Mas era o mundo. O mundo lá de fora, o mundo que fazia de nós cosmopolitas mal atravessávamos Fuentes de Oñoro a bordo do Sud Express. Velho e sujo Sud Express.
in Outro Hemisfério - Revista Volta ao Mundo – Agosto 2007
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