Discurso de Lula da Silva (excerto)

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domingo, 14 de outubro de 2007

David Fonseca, o músico atrás da polaroid


* Maria Ramos Silva
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Artista aceitou o desafio e foi fotografar para o Jardim da Estrela





As novas músicas, editadas amanhã, continuam melancólicas mas fazem a festa. A fotografia, vício antigo, também. Numa manhã de polaroid na mão e olhar afiado para aquilo que ninguém repara, David Fonseca levou estes dois amores a passear ao Jardim da Estrela, em Lisboa.

Guardam ‘amo-te’ em muitas línguas. Sempre espinhosos como o sentimento de que são montra. A Judite gosta do João. O Nuno gosta da Lena. Toda a gente gosta de alguém. E o David gosta destes lençóis vegetais onde se cravam declarações a céu aberto. “Uma explosão de cactos. Já os fotografei duas ou três vezes mas vejo sempre se há coisas novas”. Também adora flagrar amadores com técnica de ‘boneca russa’, fotografar quem fotografa, “mas já não fui a tempo”. Os turistas escapam-se por entre a lente mas há mais para ver para além deste recanto de afectos.

No Jardim da Estrela, em Lisboa, as costas solitárias reclinam o descanso nos bancos. A idosa de casaco encarnado esmigalha em pedacinhos um material indecifrável. O senhor de bigode confia um pacote de bolos. O reformado encosta o relato da telefonia ao ouvido. Um candeeiro com o vidro estilhaçado já conheceu melhores dias. Os pombos querem lá saber. Pulam ‘pé ante pé’ pelo empedrado, que olha com altivez a terra batida. As máquinas de exercícios incitam à pedalada contra a osteoporose. Aventureiros espraiam as pernas e insistem no esforço para esticar a linha da vida. Educadoras lideram a fileira de bibes coloridos que baloiçam o recreio no parque infantil.

“Gosto de tudo aqui, nunca se sabe o que se vai encontrar”. O imponderável solicita diligência no gatilho e no lema de trabalho. “A maior parvoíce é ter uma arma que não está carregada e uma máquina sem rolo... São instantes únicos. Agarramos o momento da polaroid e vemos logo na altura. Tenho que andar sempre com rolos atrás!”, diz o músico. E assim, do nada, outro clique enrolado, um ruído discreto que o faz ficar bem no retrato. “Esta é capaz de resultar, já vamos ver. Sempre que vejo as pessoas a abanar as polaroids dá-me imensa vontade de rir! É o líquido que as revela”. O resultado do teste demanda um minuto de mistério. Faz-se luz e o contraste revela as formas, como o desabrochar de uma flor. “Estão giras. O patinho e o David!”

O senhor Fonseca, músico que há muito rasgou o silêncio a quatro para cantar a solo e a plenos pulmões melancólicos, também gosta de fotografia. Muito. Mesmo que o tal patinho, orgulhoso no banho matinal, não saiba que a relação com a Estrela tem muitas pontas antigas. “Quando vim estudar para Lisboa fui parar a uma residência de estudantes muito perto do Jardim da Estrela. Na altura estava na Faculdade de Belas-Artes e ia de eléctrico para o Chiado. Atravessava o jardim pelo menos duas vezes todos os dias. Achava muita piada a este ritual. Foi há uns 15 anos. Há muito tempo!”

A máquina segue à pendura na mala preta folhada a rolos. Sempre curiosa, como a vontade que aos 15 anos o fez encomendar a primeira de todas elas aos pais. Um pedido a medo, medo de ver o desejo gorado. “Foi comprada em Espanha. Desenhei-lhes a máquina e disse: “Tem que ter uma lente, e a lente tem que sair!” O esboço de advertência surtiu efeito, trouxe bom vento do país ao lado. A lente chegou, e a Reflex fez muita história com ele. “Ganhei um concurso de fotografia em Leiria e uma viagem à Polónia. Sempre pensei que seria a minha profissão. Depois a música meteu-se pelo meio e acabou por não acontecer, mas o gosto não sei de onde vem. É como gostar de karts ou aeromodelismo, não sei explicar”.

Há um interesse acima de todos os outros, que também não se explica, compreende-se: as pessoas. Primeiro a família, modelo embrionário, hoje a turba anónima que lhe enche os concertos, a quem tira as medidas para lá do espectáculo. “É muito raro usar digitais, ainda estou na moda antiga. Tiro muitas polaroids do palco. Depois vou para casa, ponho essas fotos no computador e vejo-as uma a uma. Lá no meio da confusão nem sei quem são, mas gosto de os ver”.

SEM CONFUSÃO

No jardim não há multidões, histeria, a quilometragem das digressões, o pó do asfalto, que os portões de saída deste pequeno éden pressagiam. A zona tem boa estrela. E tem instantes e detalhes microscópicos que o olho filtra, apesar de o homem da máquina gostar de objectivos traçados pelas histórias de bastidores. “Quando faço algo mais complexo é teatralizado. Fotografo quartos de hotel, o backstage. A imagem é sempre uma forma simples de mostrar também a música, a personalidade da pessoa musicalmente. Tento dar o meu input máximo a pequenas coisas, filmes, capas dos discos.”

A metragem podia ser mais longa mas falta sorte para encontrar gente nas mesas onde se joga o azar. Lançamos os dados para tentar a vitória num outro clássico. Jardim que se preze tem mais do que cartas e damas, tem bebedouros, daqueles paridos em pedra que nos espirram para a cara em miúdos, quando equilibrados em pontas de pés. “Se isto funcionasse...” E funciona. A paragem para matar a sede é breve. Num outro bebedouro, um pássaro descansa do voo. Até a água a jorrar sozinha dá de beber à imaginação do fotógrafo, que resguarda mais uma polaroid no bolso.

Um panfleto entalado nas ripas de um banco interrompe-lhe a marcha. Mais adiante, é o jornal que tremula desamparado num assento. Ao contrário do sol da manhã, as parangonas já esfriaram. “Estas duas fotos podem vir juntas”. Poder podem. Os momentos são o que se faz com eles. O cão faz de conta que ainda há Estio e esconde o pêlo na sombra de um banco. “Não sei se o consigo apanhar... está muito escuro”. O calendário, e o chão polvilhado com as primeiras folhas e bolotas, diz que é Outono. Os ténis All Star pretos calçam o instantâneo e partem à descoberta de outras personagens.

Um pavão que exibe a beleza e a destreza dá luta. “Calma, calma...”, pede David, em bemol. Junto à esplanada, é a carpa quem determina o percurso com os seus ziguezagues subaquáticos. A barbatana do fotógrafo não desiste. O amarelo estático das gereberas dá menos trabalho. Mas a escalada ao coreto revela-se inglória. David estuda as hipóteses na esperança de que lhe pisquem o olho. Cada rolo tem dez fotos e o aprendiz não esquece as tábuas da lei da economia. “Um professor de Fotografia disse-me que pensasse bem cada vez que disparasse, porque alguém podia fazer algo de bom com esse negativo. Aprende-se muito a focar, a pensar.”

Já agora, pense num bom programa para a hora de almoço. Sentadas na relva, duas forasteiras tiram do cesto o conceito de piquenicar. “Com os anos, fiz do jardim um sítio aonde gosto de vir. Está muito mais vivido. É um pulmão pequenino, tem um ar de selva urbana que me agrada”, repara.

Com a máquina quase engavetada na mala, a anunciada abordagem de um grupo de fãs que não se deixa enganar pela camuflagem dos óculos escuros. Um autógrafo e um voto para a tímida trupe: “Boas aulas”. Uma coisa aprendemos com o passeio. Teríamos cenário para um vídeo, e aí a música já seria outra. “Então, não?! Pode ser que ainda seja.”

'SELVA' DE FOTOS

A Polaroid Image Elite Pro foi comprada no eBay por 40 euros. “Tem que ser mesmo esta!”, pensou David, que usou a máquina, apetrechada com flash, para recolher imagens que figuram no seu novo álbum. Nesta sessão na Estrela foi a ferramenta escolhida para captar momentos como esta ‘Selva de Cactos’. “Tenho umas 14 máquinas, das mais caras às mais baratas, em segunda mão”. Das polaroid às lomos, todos os formatos são bons para disparar.

MOMENTOS MIL

A mania cresceu em 1999 mas a febre da fotografia nasceu aos 15 anos. A primeira máquina, uma Zenit (“só com um tê, devia ser falsa!”), pesava um quilo e meio e custou-lhe dez contos. “Passei um ano com ela a tiracolo”. David não esquece os modelos da primeira foto. “A minha mãe, o meu avô e o meu irmão. Eram os que estavam ao meu lado. Ainda a tenho”. Hoje possui “para cima de quatro mil polaroids, é uma doença!”

NOVO ÁLBUM

Da Estrela para ‘Superstars’, o single de avanço de ‘Dreams in Colour’. À venda a partir de amanhã, o novo álbum inclui muitas imagens. “É todo mais festivo. É a primeira vez que ponho polaroids. As imagens são mais positivas, mas quanto à toada de melancolia não há nada a fazer!” A imagem também tem peso na construção dos álbuns. “Muitas polaroids estão à frente do piano enquanto componho. Gosto de as ter à minha volta.”
Maria Ramos Silva
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in Correio da Manhã 2007.10.07

FOTO - David Fonseca - foto de João Miguel Rodrigues

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