* Correia da Fonseca
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A televisão permitiu-me, permitiu-nos, ouvir Ruy de Carvalho ler, no Panteão Nacional e em plena cerimónia da trasladação dos restos mortais de Aquilino Ribeiro, umas páginas de «O Malhadinhas». Apesar da voz esplêndida de Ruy de Carvalho e da sua indiscutível capacidade de leitura, por mim teria preferido um outro texto onde a beleza da prosa de Aquilino se revelasse melhor e a oralidade regional não implicasse o risco de confundir o auditor. Talvez as páginas iniciais de «A Casa Grande de Romarigães», por exemplo. Suponho, porém, que a escolha de «O Malhadinhas» correspondeu também à ideia muito generalizada de que aquela é a mais conhecida obra de Aquilino (embora tenha surgido como um conto apenas de «Estrada de Santiago», em 1922, desse livro tendo sido retirado e ampliado mais tarde, em 46, um pouco a contragosto do autor). Por mim, se convidado a indicar qual a obra de Aquilino mais conhecida neste pardacento tempo em que «Aquilino já não é lido», como agora se ouviu dizer na TV por mais de uma vez, indicaria «Quando os Lobos Uivam», onde aliás muitos e significativos textos como que aguardavam a voz do Ruy de Carvalho. Não foi essa a escolha, tenho pena, não é grave, mas, tendo mau feitio, sinto que me fica a mordiscar uma suspeita decerto injusta: a de que a preterição do livro pelo qual Aquilino foi arrastado para um tribunal fascista terá resultado da intenção de não lembrar esse momento no decurso de uma cerimónia desejada como de «união nacional». Contudo, como se sabe, «Quando os Lobos Uivam» até surgiu há relativamente pouco tempo aos olhos dos portugueses sob a forma de uma série televisiva de excelente qualidade. Sendo assim, intriga-me que se possa dizer que «O Malhadinhas» é mais conhecido. Enfim, pode ser. Porque, como repete agora um fatigante estribilho publicitário, «há coisas fantásticas, não há?».
O que está provado
É preciso registar que a RTP cumpriu desta vez o seu dever, fazendo uma larga cobertura da trasladação e das intervenções que homenagearam Aquilino (incluindo a intervenção musical com obras de Luís de Freitas Branco), recorrendo à útil e saborosa colaboração de Baptista-Bastos, fazendo umas entrevistazinhas não muito bem conduzidas e repetindo tudo isso noutros canais. Alguém terá lembrado à RTP os seus deveres de «serviço público». Entretanto, já terminara a cerimónia e as figuras presentes em dispersão, estava a reportagem então sediada ao ar livre, diante do portal da Igreja de Santa Engrácia, quando chegou aos microfones e também aos ouvidos dos presentes um distante clamor, qualquer coisa que chegou a lembrar uns uivos mas que eram apenas vaias lançadas por um grupo monárquico discordante da homenagem. Invocavam esses tais que Aquilino Ribeiro terá estado envolvido na conspiração de que resultou o regicídio, isto é, a morte do rei D. Carlos e do príncipe Luís Filipe no Terreiro do Paço quando regressavam de mais uma caçada em Vila Viçosa. De facto, é apenas uma acusação, nada está apurado. O que está apurado e provado, isso sim, é que desde o ano anterior, 1907, D. Carlos se situara numa posição de ilegalidade constitucional ao colocar o País sob uma ditadura gerida por João Franco. E também que grandes escândalos, com relevo para o chamado «escândalo dos adiantamentos à Casa Real», agravados por uma intensificação feroz da repressão policial, colocavam o rei na situação moral de réu. A 28 de Janeiro uma tentativa revolucionária malogrou-se em Lisboa. O País estava como que em guerra civil virtual. Rei e príncipe foram abatidos nesse contexto por dois homens que bem sabiam que também iriam morrer imediatamente, como veio a acontecer. Tudo isto é aqui sumariamente lembrado para sublinhar que, de qualquer modo, estar de acordo com os conspiradores não era estar de acordo com vulgares assassinos. Mas o caso serviu para que um punhado de obsoletos monárquicos tentasse dar nas vistas. Por isso se lhes ouviu as vaias que pareceram uivos. Era natural os lobos não faltarem à cerimónia.
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A televisão permitiu-me, permitiu-nos, ouvir Ruy de Carvalho ler, no Panteão Nacional e em plena cerimónia da trasladação dos restos mortais de Aquilino Ribeiro, umas páginas de «O Malhadinhas». Apesar da voz esplêndida de Ruy de Carvalho e da sua indiscutível capacidade de leitura, por mim teria preferido um outro texto onde a beleza da prosa de Aquilino se revelasse melhor e a oralidade regional não implicasse o risco de confundir o auditor. Talvez as páginas iniciais de «A Casa Grande de Romarigães», por exemplo. Suponho, porém, que a escolha de «O Malhadinhas» correspondeu também à ideia muito generalizada de que aquela é a mais conhecida obra de Aquilino (embora tenha surgido como um conto apenas de «Estrada de Santiago», em 1922, desse livro tendo sido retirado e ampliado mais tarde, em 46, um pouco a contragosto do autor). Por mim, se convidado a indicar qual a obra de Aquilino mais conhecida neste pardacento tempo em que «Aquilino já não é lido», como agora se ouviu dizer na TV por mais de uma vez, indicaria «Quando os Lobos Uivam», onde aliás muitos e significativos textos como que aguardavam a voz do Ruy de Carvalho. Não foi essa a escolha, tenho pena, não é grave, mas, tendo mau feitio, sinto que me fica a mordiscar uma suspeita decerto injusta: a de que a preterição do livro pelo qual Aquilino foi arrastado para um tribunal fascista terá resultado da intenção de não lembrar esse momento no decurso de uma cerimónia desejada como de «união nacional». Contudo, como se sabe, «Quando os Lobos Uivam» até surgiu há relativamente pouco tempo aos olhos dos portugueses sob a forma de uma série televisiva de excelente qualidade. Sendo assim, intriga-me que se possa dizer que «O Malhadinhas» é mais conhecido. Enfim, pode ser. Porque, como repete agora um fatigante estribilho publicitário, «há coisas fantásticas, não há?».
O que está provado
É preciso registar que a RTP cumpriu desta vez o seu dever, fazendo uma larga cobertura da trasladação e das intervenções que homenagearam Aquilino (incluindo a intervenção musical com obras de Luís de Freitas Branco), recorrendo à útil e saborosa colaboração de Baptista-Bastos, fazendo umas entrevistazinhas não muito bem conduzidas e repetindo tudo isso noutros canais. Alguém terá lembrado à RTP os seus deveres de «serviço público». Entretanto, já terminara a cerimónia e as figuras presentes em dispersão, estava a reportagem então sediada ao ar livre, diante do portal da Igreja de Santa Engrácia, quando chegou aos microfones e também aos ouvidos dos presentes um distante clamor, qualquer coisa que chegou a lembrar uns uivos mas que eram apenas vaias lançadas por um grupo monárquico discordante da homenagem. Invocavam esses tais que Aquilino Ribeiro terá estado envolvido na conspiração de que resultou o regicídio, isto é, a morte do rei D. Carlos e do príncipe Luís Filipe no Terreiro do Paço quando regressavam de mais uma caçada em Vila Viçosa. De facto, é apenas uma acusação, nada está apurado. O que está apurado e provado, isso sim, é que desde o ano anterior, 1907, D. Carlos se situara numa posição de ilegalidade constitucional ao colocar o País sob uma ditadura gerida por João Franco. E também que grandes escândalos, com relevo para o chamado «escândalo dos adiantamentos à Casa Real», agravados por uma intensificação feroz da repressão policial, colocavam o rei na situação moral de réu. A 28 de Janeiro uma tentativa revolucionária malogrou-se em Lisboa. O País estava como que em guerra civil virtual. Rei e príncipe foram abatidos nesse contexto por dois homens que bem sabiam que também iriam morrer imediatamente, como veio a acontecer. Tudo isto é aqui sumariamente lembrado para sublinhar que, de qualquer modo, estar de acordo com os conspiradores não era estar de acordo com vulgares assassinos. Mas o caso serviu para que um punhado de obsoletos monárquicos tentasse dar nas vistas. Por isso se lhes ouviu as vaias que pareceram uivos. Era natural os lobos não faltarem à cerimónia.
in Avante 2007.09.27
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