Discurso de Lula da Silva (excerto)

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sábado, 6 de outubro de 2007



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* Paulo Martins
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O que quer que se escreva sobre Álvaro Cunhal, em especial na hora da morte, corre o risco de resvalar para o lugar comum. Perdendo a essência de uma personalidade demasiado complexa para poder reduzir-se a fórmulas simplistas ou, pior, maniqueístas.
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Pode escrever-se que foi uma figura ímpar do Portugal contemporâneo, cuja influência no século XX só pode medir-se por comparação com Oliveira Salazar, o seu arqui-inimigo, a cujo combate dedicou parte substancial da vida. Que, nesse sentido, morreu ontem um pedaço da nossa História. Que, quisesse ele dedicar-se exclusivamente à cultura, teria sido um escritor de razoável qualidade ou um desenhador de traço característico. Que, extracção de uma certa burguesia com simpatias republicanas, poderia simplesmente afirmar-se como advogado de renome, bem instalado na vida, ainda que com de olho nos movimentos de oposição à ditadura do Estado Novo.
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É também estes territórios - tantas vezes desbravados, mas ainda tão desconhecidos - que o trabalho apresentado pelo JN percorre. Descobre, por entre os milhões de linhas escritas sobre o dirigente histórico do PCP, os caracteres da sua identidade, não se circunscrevendo, naturalmente, ao plano político. Ou melhor: seguindo o que em Álvaro Cunhal é o "plano político" - não apenas a intervenção "institucional", tendo o Partido Comunista como pano de fundo, mas cada opção, cada acto, cada linha escrita, cada discurso, cada desenho.
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Em Cunhal, com efeito, tudo era política, simplesmente porque a política era uma atitude perante a vida. Daí que não falte quem no seu envolvimento com o movimento comunista vislumbre um "sacerdócio" ou, pelo menos, uma "fé". Visão que ele sempre repudiou, embora admitindo ter professado o catolicismo na sua juventude.
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Como um dia afirmou, o seu lema consistia em "agir como se pensa que se deve agir". Não se travava, apenas, de um apelo de consciência, mas de um apelo de consciência que correspondia à imperiosidade de ter da passagem pela vida uma concepção "finalista". Isto é: uma vida com um objectivo, ao qual tudo deveria ser sacrificado e que a tudo deveria resistir. Mesmo às duras condições da vida na clandestinidade ou à, ainda pior, passagem pelas prisões salazaristas. É por isto, por tudo isto, que não são dissociáveis as várias "marcas" que legou à posteridade.
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A figura de Cunhal não deixou - não poderia ter deixado - ninguém indiferente. Mário Soares, que com ele travou uma das batalhas da sua vida política, não hesita em admitir que eram "inimigos íntimos". Francisco Martins Rodrigues, que dele se afastou "pela Esquerda" nos idos de 60, continuou pela vida fora a acusá-lo de ter traído a Revolução e, em simultâneo, de ter feito um favor a quem a queria liquidar. Eduardo Lourenço elogia-lhe a coerência, mesmo quando a realidade desabava estrepitosamente, como aconteceu quando os regimes do Leste europeu caíram de podres.
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Um "sedutor"
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Mário Soares, Martins Rodrigues e Eduardo Lourenço dão, nesta edição do JN, o seu testemunho sobre Álvaro Cunhal. Tivesse Paulo Portas a mesma oportunidade e talvez surpreendesse os leitores menos precavidos. Talvez recuperasse o parágrafo com que, em 1990, iniciava nas páginas de O Independente o texto de uma longa entrevista concedida pelo ex-líder comunista a ele próprio e a Miguel Esteves Cardoso. Uma conversa, escrevia, com "um homem de palavra". Rezava assim: "Éramos três conservadores à mesa do café. Os doutores Cunhal, Portas e Esteves Cardoso. Ou, se preferirem, os camaradas Álvaro, Paulo e Miguel. Como seria de esperar, demo-nos lindamente. Vimo-nos aflitos para discordar minimamente".
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Os extremos tocam-se, como diz o povo, ou estava aqui em causa, apenas, uma questão de "sedução"? Que Cunhal era um "sedutor", pelo menos político, é algo que muito boa gente reconhece. A começar pelo seu biógrafo não oficial, José Pacheco Pereira. O historiador, ex-deputado do PSD, dedicou-lhe - continua a dedicar-lhe - parte substancial do tempo que dedica à investigação. Mas afiança que a atracção intelectual nunca lhe turvou a capacidade de análise crítica da vida do biografado. Nem tão pouco a constatação de outros traços de personalidade, que por diversas vezes destacou, como o obstinação, uma atitude implacável perante a discordância, um certo "culto da personalidade" que segundo Pacheco Pereira cultivava, embora sempre o desmentisse.
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Diluído no "colectivo"
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Cunhal, em boa verdade, nunca se deu a conhecer se não na exacta medida do que entendia dever ser conhecido. Não há uma única entrevista em que se perceba que autorizou o interlocutor a franquear a fronteira da intimidade . De si, quase sempre diluído no "colectivo" tão caro aos comunistas, revelava apenas o que entendia útil à sua missão. Claro que nunca abriria as portas às revistas "cor-de-rosa". Não porque tivesse algo a esconder, mas apenas porque a exposição pública era, na sua mundivisão, condenável. Uma certa aura de mistério, como alguém já escreveu, ajudava a consolidar o "mito".
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É de um mito que falamos, quando falamos de Cunhal? O militante anónimo do Partido Comunista garantirá que não, porque sempre tomou o "camarada Álvaro" - apenas Álvaro - como um dos seus. Um dos que activamente resistiram ao fascismo, um dos não cediam perante a adversidade. Que encontrava sempre palavras de ânimo quando o destino pregava partidas, como no momento em que caiu o muro de Berlim.
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Muitos dos militantes que se envolveram nas sucessivas vagas de dissidência que o PCP produziu nas últimas duas décadas pouparam Cunhal, na hora da despedida. Porventura para não rasgarem por completo páginas das suas próprias biografias, foi a "corte" que denunciaram, não o "rei". Há quem detecte na atitude resquícios de uma "reverência" que nunca se extinguiu, mesmo quando a ruptura foi absoluta.
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Quem ficou, apodado ou não de "ortodoxo", continuará a admirar o homem que foi o rosto e a alma do partido durante décadas. Como se continuasse presente, omnipresente. Como se a sua voz ainda se ouvisse no Comité Central. Como se ainda cumprisse o seu dever de voto, como acontecia nos últimos anos de vida, praticamente cego, acompanhado de um camarada.
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in Jornal de Notícias 13 Junho 2005

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