Traços da vida e obra de Alexandre Herculano
Façam o favor de entrar na História
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Ali recebeu uma instrução essencialmente clássica (Latim, Lógica, Retórica) de compleição católica, embora venha a revelar, ao longo da sua vida, sólidas convicções anticlericais. Para a sua formação concorrem, simultaneamente, os acontecimentos políticos e sociais ocorridos no princípio do século XIX – a Guerra Peninsular e a luta entre a França e a Inglaterra pelo controlo de Portugal e Espanha, as consequências das invasões napoleónicas e o ascenso das ideias liberais no nosso país.
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Apesar de não ter podido prosseguir os estudos superiores devido à cegueira que afectou o seu pai - a quem o facto de ser funcionário da Junta do Crédito Público não valeu previdência na doença -, Alexandre Herculano não deixou de aceder à formação literária e de estudar línguas inglesa, francesa, italiana e alemã, lendo e traduzindo, deste tenra idade, escritores românticos estrangeiros.
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A Matemática aprofunda-a quando o infortúnio paterno o obriga a abandonar as Humanidades, antecâmara para a desejada frequência universitária, empurrando-o para o ensino profissional.
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Com o curso comercial almeja uma carreira nos negócios e comércio públicos, mas a permanência constante no Arquivo Real da Torre do Tombo e o estudo da cadeira de Diplomacia colocam-no em contacto com as técnicas auxiliares de pesquisa histórica, cultivando no jovem letrado a valorização da análise e relato dos acontecimentos passados com base na prova documental.
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Dedica-se afincadamente ao estudo até aos 21 anos, idade a partir da qual toma parte na luta entre liberais e absolutistas, nomeadamente participando como soldado de infantaria, integrado no regimento de Voluntários da Rainha, na revolta de 21 de Agosto de 1931 contra o governo despótico de D. Miguel I.
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Derrotada a insurreição, Alexandre Herculano refugia-se num navio francês fundeado ao largo do Tejo, donde parte primeiro para a Inglaterra (desbrava conhecimento sobre o romântico escocês Walter Scott), depois para a França, onde começa a escrever poesia. A Voz do Profeta ou a A Harpa do Crente, primeiros textos naquele género literário só seriam publicados em 1836 e 1838, respectivamente, portanto já depois do seu regresso a Portugal e como parte da sua intervenção na vida social, política e literária nacional.
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Em terras gaulesas aproveita, ainda, para frequentar as bibliotecas de Rennes e Paris; inicia o estudo dos historiadores Thierry e Guizot, do romancista de cariz progressista Victor Hugo, e do filósofo, escritor e político socialista e republicano de inspiração cristã Lamennais, autores que muito o influenciam, quer na consolidação do seu gosto pela História e por uma certa maneira de a contar, quer na fixação das suas tendências estéticas, literárias e políticas.
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Em 1834 e 1835 colabora com o Repositório Literário elaborando ensaios sobre a introdução do romantismo em Portugal. Onze anos mais tarde haveria de fundar o Grémio Literário com o poeta e dramaturgo Almeida Garrett, o romancista Rebelo da Silva, o dramaturgo Mendes Leal, e conhecidas personalidades liberais, como Rodrigo da Fonseca, Fontes Pereira de Melo, Rodrigues Sampaio, Sá da Bandeira ou Anselmo Braancamp.
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De soldado a bibliotecário
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De França, abala finalmente, para a ilha Terceira, nos Açores, onde, em 1832, volta a juntar-se em armas com o derradeiro reduto do exército liberal de D. Pedro IV. Entre as tropas estava igualmente Almeida Garrett, também ele um insurrecto liberal e um dos percursores do romantismo no nosso país, nome maior da política e das letras no século XIX.
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É ainda como militar que participa na expedição que D. Pedro IV faria desembarcar, a 8 de Julho de 1832, na Praia da Memória com o objectivo de cercar e tomar de assalto a cidade do Porto.
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Depois da chamada revolta do Mindelo, Alexandre Herculano é nomeado pelo próprio D. Pedro IV para o cargo de segundo bibliotecário. A sua missão é organizar a instalação e abertura da Biblioteca Pública do Porto, que viria a ser instituída um ano depois, em 1833. Para cumprir esse objectivo, vê-se na contingência de jurar a Carta Constitucional de 1826, promessa que manteve, mesmo afastando-se da raiz do movimento liberal, fiel à Constituição de 1822, e do movimento Setembrista, que procurava retomar os caminhos que conduzissem ao triunfo do republicanismo sobre o absolutismo.
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De regresso ao combate com a pena e não com a espada, permanece na função delegada pelo imperador do Brasil e pretendente à coroa portuguesa até ser convidado a dirigir a revista O Panorama, entre 1837 e 1839, publicação de carácter artístico e científico que, com o patrocínio directo da rainha D. Maria II, através da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, difunde, com notável sucesso editorial para a época, a estética romântica.
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Alexandre Herculano regressaria a O Panorama como redactor principal em 1842, ano em que publica Eurico o Presbítero, considerado um dos maiores romances históricos do Portugal pré-contemporâneo. Já na altura trabalhava naquela que viria a ser o seu maior legado, a História de Portugal, cujo primeiro de quatro volumes se publica em 1846. São igualmente de Herculano os três volumes da História das Origens e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (1854 – 1859).
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Episódios de uma vocação
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Dedicado a tempo inteiro às Bibliotecas Reais, no início da década de 40 do século XIX, inicia a colação de documentos históricos pelo País por encargo da Academia Real das Ciências, o que lhe permite conhecer in loco a realidade nacional. Dessas viagens dá nota em Cenas de um Ano da Minha Vida e Apontamentos de Viagem.
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Alexandre Herculano escreve os romances O Pároco de Aldeia (publicado na revista O Panorama em 1843) e O Galego: Vida, ditos e feitos de Lázaro Tomé (publicado na Revista Universal Lisbonense, em 1846); faz uma breve incursão pelo drama com O Fronteiro de África ou três noites aziagas e Os Infantes em Ceuta, mas é a História que o apaixona e a ela se dedica multifacetadamente, usando, inicialmente, a forma do romance histórico e as páginas da Revista Universal Lisbonense, dirigida por Feliciano Castilho, e, sobretudo, do já referido periódico O Panorama para publicar narrativas sobre personalidades e acontecimentos.
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Em O Bobo, sobre D. Teresa, mãe do monarca fundador de Portugal; Eurico o Presbítero, sobre o fim do Império Godo na Península Ibérica, O Monge de Cister, sobre o reinado de D. João I; ou nos I e II Tomos das Lendas e Narrativas (nos quais se incluem, por exemplo, O Alcaide de Santarém, O Bispo Negro ou Três Meses em Calecut: Primeira Crónica dos Estados da Índia), Alexandre Herculano relata individualidades, episódios e períodos históricos. O estudo do período medieval absorve-lhe a maior parte do tempo.
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Portador de um vasto conhecimento e determinado em passar à prática a empresa verdadeiramente hercúlea de deixar escrito um testemunho sobre os acontecimentos que precederam o tempo que lhe coube viver, é de Alexandre Herculano o mérito da introdução no nosso país da historiografia científica, facto que, evidentemente, não deixou de provocar enorme celeuma.
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Defensor de um método de análise e relato dos acontecimentos precedentes baseado na interpretação científica das provas palpáveis, provoca a ira dos sectores mais conservadores, com o clero à cabeça. Isto apesar de não aplicar uma concepção materialista da história que, na Europa, Karl Marx e Frederich Engels haviam introduzido com a redacção e publicação das Teses Sobre Feuerbach e de A Ideologia Alemã, criticando as concepções filosóficas pós-heglianas. O Materialismo Histórico é um dos pilares do Socialismo Científico, que tarda em penetrar de forma ampla em Portugal. Nos círculos progressistas predomina ainda o republicanismo, o reformismo social e o socialismo utópico.
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Das polémicas permanentes com a cúria Romana, fica para a posteridade como a mais marcante, a refutação, por parte de Alexandre Herculano, do aparecimento de Jesus Cristo ao rei D. Afonso Henriques na Batalha de Ourique, episódio que não aceita como verdade histórica. A controvérsia é significativa. Em causa está a suposta divindade do nascimento de Portugal e, por essa via, a autoridade da Igreja e do papado sobre a origem da nacionalidade portuguesa, que a instituição mais antiga do mundo reclama ter sido uma emanação dos céus para, na terra, perpetuar o seu poder.
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Com os opúsculos Eu e o Clero e Solemnia Verba, Alexandre Herculano defende o relato científico do sucedido, contribuindo, desta forma, para o combate ideológico contra os sectores obscurantistas do clero e os conservadores herdeiros da nobreza agrária, cada vez menos influentes na configuração dos sucessivos regimes políticos face à burguesia industrial e comercial, à aristocracia financeira e à intelectualidade urbana que se afirmavam em Portugal.
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As batalhas com o clero nunca as rejeitaria, envolvendo-se sucessivamente em polémicas com a hierarquia católica a propósito da Concordata com a Santa Sé, a qual recusa vigorosamente, ou defendendo a introdução do casamento civil a par do matrimónio religioso no Código Civil Português, do qual é um dos redactores e percursores.
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Seis anos após a edição do primeiro volume da História de Portugal, em 1852, a Academia das Ciências de Lisboa nomeia-o seu sócio efectivo e, meses depois, encarrega-o de recolher os documentos dispersos pelos cartórios conventuais do país.
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O projecto intitulado Portugaliae Monumenta Histórica cumpriria Alexandre Herculano durante os 20 anos seguintes, isto é, praticamente até ao final da sua vida, dedicada, em grande medida, a intervir fazendo história, ou escancarando as portas da História de Portugal, antes encerrada em monásticos claustros fantasmagóricos, caves de castelos sorumbáticos, e prateleiras demasiado inacessíveis a quem finca os pés no chão, sem o opressivo temor de que o céu lhe desabe sobre a cabeça.
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Desilusões com o poder
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Na decorrência da sua intervenção política durante toda a década de 30 do século XIX, Alexandre Herculano foi eleito, em 1840, deputado pelo Partido Cartista em representação do círculo do Porto.
Apresenta nas Cortes um projecto de instrução popular que, não sendo posto em prática, o leva à desilusão para com a assunção de cargos de representação política. As suas convicções municipalistas e contra a centralização burocrática e administrativa do poder político revigoram-se, e só a presidência do então município de Belém, já no início da década de 50, o demove do afastamento dos corredores parlamentares e dos círculos do poder.
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Envolve-se no movimento da Regeneração sem no entanto admitir convites para funções ministeriais ou outras análogas, de que a recusa em ser eleito deputado pelo círculo de Sintra é um exemplo.
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Recobra das desilusões para com a política e opõe-se à liderança de Fontes Pereira de Melo, intervindo contra os seus governos nos jornais O País e O Português, ambos fundados por Alexandre Herculano na segunda metade do século XIX.
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Recusará, nos anos seguintes, honrarias políticas, homenagens e condecorações, e até a regência de uma cadeira no Curso Superior de Letras, função que certamente avolumaria o reconhecimento de que já gozava.
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Não obstante, exerce sobre o País um magistério moral, intervindo sobre questões históricas, éticas, políticas, práticas e sociais, cuja vasta obra está publicada numa dezena de Opúsculos.
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Exílio voluntário
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Recolhido voluntariamente no lugar de Vale de Lobos, Azóia, Santarém, desde 1867, Alexandre Herculano cumpre a promessa de casamento feita na juventude a Mariana Hermínia Meira, mulher que aceitara esperar pelo seu reconhecimento científico e literário antes de se casarem. Dedica parte do seu tempo à família e à agricultura.
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O homem das letras lança trigo à terra, faz vinho e chega a ser premiado pela excelência do azeite que produz. São impressionantes os conhecimentos que detém sobre cultivo e o sucesso que alcança na sua aplicação prática, particularmente se considerarmos que na casa onde viveu as primeiras décadas da sua vida não haveria mais que uma escassa courela com horta e pomar.
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É também a partir de Santarém que continua a intervir nas polémicas da época, como a proibição das intituladas Conferências do Casino, promovidas por sectores e personalidades progressistas como o proudhonista Antero de Quental, ou as respeitantes à emigração. Troca abundante correspondência com personalidades literárias e políticas.
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Numa viagem a Lisboa que visa retribuir a visita que D. Pedro II, derradeiro imperador do Brasil, havia feito a Vale de Lobos, Alexandre Herculano vem à capital para se encontrar com o monarca. A aventura fatídica debilita o gigante intelectual de corpo franzino, fazendo-o sucumbir, a 13 de Setembro de 1877, na sequência de uma pneumonia.
.Avante Nº 1896
01.Abril.2010
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