Público - 29.04.2010 - 08:02 Por Nicolau Ferreira
O ruivaco-do-oeste integra um projecto para a conservação de peixes fluviais que estão a desaparecer. Nos tanques, a reprodução em cativeiro está a ser um sucesso, só falta poder trazê-los de volta para os rios.
A espécie é uma linhagem independente com cinco milhões de anos de evolução
(Rui Gaudêncio)
À saída de Torres Vedras o rio Sizandro já está morto. É um canal de cor acastanhada que se precipita para o oceano Atlântico com rapidez.
Tínhamos sido avisados por Carla Santos-Sousa, uma bióloga de 32 anos. Vinte minutos antes, na estrada que serpenteia o Sizandro a caminho da cidade, entre a passagem de vilarejos, suiniculturas, campos verdes e cooperativas de vinho, a investigadora foi directa: "Querem ver o rio antes ou depois de Torres Vedras? Mau ou mesmo mau?" Mesmo mau.
Não é só o rio poluído, a paisagem é desoladora porque estéril de ideias. É estéril o declive artificial das margens com uma vegetação rudimentar, são inconsequentes as pedras que tentam segurar as margens do rio por baixo de uma ponte. A imaginação dos homens que não consegue fazer melhor.
"É ridículo. Já temos as ferramentas, conhecimento académico e há experiências feitas noutras partes do mundo que se podem aplicar na reabilitação deste rio", desabafa a investigadora do Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), que estuda há quase dez anos peixes fluviais, enquanto olha para a água incessante a passar. Carla Santos-Sousa é uma das muitas pessoas envolvidas no Projecto de Conservação Ex-situ de Organismos Fluviais em risco de extinção. O ruivaco-do-oeste, das cinco espécies de peixes que estão criticamente em perigo escolhidas para este projecto, é o caso mais preocupante.
O peixe só existe em Portugal, em três rios do Oeste: o Alcabrichel, o Sizandro e o Safarujo. Só em 2005 é que a equipa do ISPA, liderada pelo professor Vítor Almada, compreendeu com ajuda da genética que estas três populações pertenciam a uma espécie que está individualizada do outro ruivaco que existe mais a norte.
Mais cedo no mesmo dia, a montante de Torres Vedras, perto da aldeia Dois Portos, quando Carla nos mostra um Achondrostoma occidentale nas suas mãos, o que ela vê é "uma linhagem independente com cinco milhões de anos de evolução". E tudo se perderá se não for feita a reabilitação dos rios.
O Sizandro que passa em Dois Portos ainda é outro - mais calmo, selvagem e mais limpo, apesar dos canos de esgotos vindos das habitações. A paragem reservou boas surpresas à bióloga, que repete a técnica que já aplicou em dezenas de rios portugueses, de norte a sul. Da bagageira do carro saem umas jardineiras de borracha com botas incorporadas e uma mochila com uma bateria de carro ligada a um aparelho eléctrico. A investigadora vai à caça.
Liga o aparelho a um camaroeiro e solta um fio directamente para a água. Escolhe um fundão à esquerda para fazer a primeira tentativa. "Ninguém toca na água", avisa. Descarga eléctrica. Salta uma enguia para a rede que acaba num balde preto com água. Mais descargas. No fundão, onde normalmente os peixes se protegem no Inverno contra a velocidade do rio e sobrevivem no Verão às secas, nada. "Não há peixes", diz a bióloga, enquanto se ouve uma ovelha a balir para os lados do amieiro que está do outro lado da margem.
Mas não desiste, anda uns metros para baixo e instala-se a seguir a uns mini-rápidos para voltar a fazer uso dos 16 quilos que leva às costas na mochila. Desta vez é diferente e quando olhamos já Carla tem vários ruivacos-do-oeste na rede. "Quando dei o primeiro choque, vieram logo uns 50!" No balde contamos 13, três não aguentaram a descarga e morreram.
A bióloga segura um exemplar e faz-nos uma descrição física da espécie: um adulto alcança uns nove centímetros, tem nas costas um padrão oliváceo que é muito diferente da barriga branca e manchas laranjas na base de todas as barbatanas.
Abril é época de reprodução e só agora é possível distinguir os machos das fêmeas. Carla diz-nos para passarmos o dedo pela cabeça do macho e confirmamos a existência de tubérculos: pontos rijos que aparecem agora e servem para estimular a fêmea. "Aqui está outra fêmea bastante cheia", mostra-nos a bióloga, acrescentando que largam centenas de ovos.
Perguntamos se está contente com o número de peixes que encontrou: "É muito bom, não estava à espera."
Cada curso tem um ecossistema próprio e vive em isolamento. Do ponto de vista biológico, mesmo falando da mesma espécie, quando se perde uma população de um rio, perde-se uma riqueza genética única, que teve uma evolução distinta de tudo o resto.
Projecto com quatro anos
"Cada rio é uma ilha, os princípios biológicos que se aplicam a uma ilha aplicam-se aqui a um rio", explica a investigadora, enquanto devolve ao rio os ruivacos-do-oeste, a enguia e a água do balde e depois de ter medido o oxigénio, o pH, a temperatura, a condutividade e a concentração de oxigénio no rio. Os parâmetros estão bons. "Temos grande disponibilidade de água, daqui a um mês as condições mudam radicalmente." E é tempo de deixar o Sizandro.
Além da poluição, a seca é outro problema que afecta estes rios e a sobrevivência deste peixe. Desde a seca de 2005 que não se encontra o ruivaco no rio Safarujo, que com os seus 20 quilómetros é o mais pequeno dos três cursos de água onde vive a espécie.
Vítor Almada arrancou com a ideia do projecto na sequência da famosa seca de 2005. "O projecto surgiu porque havia espécies que estavam muito em perigo", explica Vítor Almada por telefone, que reuniu à equipa do ISPA o Aquário Vasco da Gama e a Quercus - Associação Nacional de Conservação da Natureza.
O primeiro passo era garantir a conservação das espécies através da reprodução em cativeiro e garantir a reintrodução no habitat natural, depois de os rios serem recuperados. Além do ruivaco-do-oeste, a boga- portuguesa (Iberochondrostoma lusitanicum), a boga- do-sudoeste (Iberochondrostoma almacai) e duas espécies de escalo que só existem em Portugal, o Squalius torgalensis e o Squalius aradensis.
O primeiro protocolo foi feito em 2006. Às três instituições juntaram-se a Faculdade de Medicina Veterinária de Lisboa, a Câmara de Figueiró dos Vinhos e a EDP - a empresa termina a sua ligação com o projecto a 1 de Junho depois de um apoio de três anos. "Temos dinheiro até ao final do ano", disse Paulo Lucas, da Quercus; a partir daí continuam com fundos próprios da associação. "Uma eventual extensão do projecto está dependente de uma candidatura ao Fundo EDP para a Biodiversidade", disse por email Gilda Sousa, do departamento de comunicação da EDP.
Luz no cativeiro
No Aquário Vasco da Gama, subimos até ao terraço do edifício que recicla a água salgada, de onde se avista o Tejo e ao fundo Lisboa. Às 10h30 da manhã, o sol aquece a água dos vários tanques cheios de peixinhos.
Onde é que está o ruivaco-do-oeste? Do lado do rio, no tanque mais à direita, 265 indivíduos nadam num espaço com plantas que filtram a água, lugares para se esconderem feitos de rede e tijolos, vasos cheios de seixos para as fêmeas colocarem os ovos. O habitat mais natural possível dentro de um tanque rectangular com cerca de três metros quadrados.
Fátima Gil está colada ao tanque e remexe as pedrinhas dos vasos. "Uma forma de se dar com os ovos do ruivaco-do-oeste é apalpar as coisas", explica a bióloga, que trabalha no museu há 22 anos. Encontra primeiro um ovo com um aspecto envelhecido, já morto. Procura mais e anos de experiência com a reprodução de peixes em cativeiro não a deixam ficar mal. Colado a um seixo está um ovo pequenino, de um branco translúcido, com um ar decididamente vivo. "Vêem-se dois pontos pretos brilhantes que são os olhos do embrião. Se utilizássemos uma lupa, até se conseguia ver o coração a bater."
O Aquário Vasco da Gama também serviu para Alexandrina Pipa aprender as bases da reprodução em cativeiro, durante o mês que esteve em Lisboa, antes de voltar à aldeia de Campelo, perto de Figueiró dos Vinhos. É aí que ficam as instalações onde se fará a reprodução a longo prazo do ruivaco-do-oeste. Com a ajuda da câmara, que cedeu as instalações, o projecto investiu 35 mil euros para recuperar os tanques da Estação Aquícola de Campelo.
Mais de 500
Encontramos Alexandrina, que é voluntária da Quercus há 12 anos, na estação de comboio da Caxarias. No caminho até Campelo, vai explicando as espécies vegetais da paisagem. Vêem-se muitos Quercus faginea, o carvalho-português que nos últimos 20 anos tem vindo a substituir antigas zonas de cultivo. Mas existem também azinheiras, medronheiros, pilriteiros, além do tradicional pinhal e das manchas de eucalipto, onde Alexandrina diz que já viu veados e javalis.
A ribeira do Alge, que passa por Campelo, uma aldeia com menos de 30 habitantes, alimenta continuamente os viveiros. Na estação, só se ouve a água a correr. "Apostámos mais na recuperação dos tanques do que no edifício", explica a técnica.
Cá fora, há vários tanques muito maiores do que os do Aquário Vasco da Gama. Um deles, com cerca de nove metros de comprimento e três de largura, está pronto para receber a boga-portuguesa que vem do aquário de Lisboa. Só falta a temperatura da água subir mais um pouco.
Os moradores de dois dos nove tanques são ruivacos-do-oeste, um com exemplares do rio Sizandro, o outro do Alcabrichel, que chegaram a 31 de Março de 2009. Já desovaram no ano passado. Há 400 jovens de Alcabrichel e entre 150 e 200 do Sizandro, que ainda não se conseguiram contar. "Eu espero que, se não for este ano, seja para o próximo que se faça a reintrodução destes peixes na natureza", explica Alexandrina Pipa. "Não faz sentido fazer reintrodução, se o local ficar com as mesmas condições que existiam", defende.
À espera do Alcabrichel
Voltámos para o concelho de Torres Vedras, mas agora estamos a torrar ao sol, junto à margem do rio Alcabrichel, um calor insuportável. À nossa frente está parte do troço de 1500 metros do rio que corre por baixo da ponte do Ramalhal, a norte de Torres Vedras, até à ponte da A8.
Paulo Lucas, o responsável da Quercus pelo projecto, aponta para o cano do esgoto de onde corre um risco viscoso e castanho, tira fotografias e desabafa: "Isto é inacreditável."
O projecto da Quercus para a reabilitação do rio Alcabrichel ainda tem que ser aprovado pela Administração da Região Hidrográfica do Tejo, mas deverá avançar.
O futuro do ruivaco-do-oeste vai começar aqui - é esta fatia de 300 metros do rio que vai sofrer uma intervenção de reabilitação.
Mas o líquido castanho que corre constantemente do esgoto e se dissolve no ribeiro, com o cheiro indiscutível de uma suinicultura, compromete tudo. "Há alguma decantação dos materiais sólidos, mas a carga poluente é elevadíssima", explica o ambientalista de 41 anos que trabalha na Câmara Municipal de Ourém. O esgoto é uma fonte de matéria orgânica, faz explodir o crescimento de microrganismos que consomem o oxigénio e tornam inviável a existência do ruivaco. "Já pedimos uma solução para esta suinicultura. Só colocamos aqui os peixes quando o problema estiver resolvido."
Antes disso, contudo, há muito trabalho a fazer. O Alcabrichel é mais um exemplo de um rio encanado. O início dos trabalhos será em Junho: alargar as margens entre seis a sete metros para cada lado; retirar o canavial com cinco metros de altura; plantar salgueiros, choupos-negros, espécies autóctones que criam raízes, filtram o rio e dão sombra aos fundões, que no Verão são a salvação das populações de peixes. No final de Novembro, Paulo Lucas espera ter a primeira fase terminada. Os 300 metros de reabilitação vão custar 50 mil euros e o ambientalista calcula que vão ser necessários mais cinco anos de trabalho e 200 mil euros por ano para o Alcabrichel voltar ao que era, quando se podia tomar banho no rio.
Peixes no lago
O Sizandro vai ter que esperar. Apesar da melhoria da cobertura da rede de esgotos domésticos que passou de cerca de 50 por cento em 2000 para 75 por cento em 2010, só no final de 2011 o vereador Carlos Bernardes, vice-presidente da Câmara de Torres Vedras, espera ter 90 por cento das casas do concelho com os esgotos tratados. Mesmo assim, o tratamento dos resíduos da indústria agro-pecuária continua a léguas do necessário e em 2009 o Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos lançou um relatório onde o Sizandro, com leituras feitas já perto da foz, era dos rios mais poluídos do país.
Junto à entrada do rio em Torres Vedras, onde o leito está cimentado, há quem diga que o Sizandro está mais limpo do que era, depois do encerramento da destilaria de Runa, há uns anos. José Anselmo Gregório, um ferroviário de 59 anos, lembra-se de outro rio: "Dantes não estava cimentado, havia fundões onde a malta apanhava peixe. Tomava-se banho no rio." Já voltou a ver peixes na cidade, diz sentado num banco da estação de comboios.
Mostra-nos um pequeno lago ao lado do muro da estação. A água tem uma película de algas verdes. Com uma mangueira afasta as algas e aponta. Um peixe-vermelho grande passa. Ao lado, mais pequenos, com uma cor escura no dorso e brancos na barriga, ruivacos-do-oeste. Estão lá.
Tínhamos sido avisados por Carla Santos-Sousa, uma bióloga de 32 anos. Vinte minutos antes, na estrada que serpenteia o Sizandro a caminho da cidade, entre a passagem de vilarejos, suiniculturas, campos verdes e cooperativas de vinho, a investigadora foi directa: "Querem ver o rio antes ou depois de Torres Vedras? Mau ou mesmo mau?" Mesmo mau.
Não é só o rio poluído, a paisagem é desoladora porque estéril de ideias. É estéril o declive artificial das margens com uma vegetação rudimentar, são inconsequentes as pedras que tentam segurar as margens do rio por baixo de uma ponte. A imaginação dos homens que não consegue fazer melhor.
"É ridículo. Já temos as ferramentas, conhecimento académico e há experiências feitas noutras partes do mundo que se podem aplicar na reabilitação deste rio", desabafa a investigadora do Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), que estuda há quase dez anos peixes fluviais, enquanto olha para a água incessante a passar. Carla Santos-Sousa é uma das muitas pessoas envolvidas no Projecto de Conservação Ex-situ de Organismos Fluviais em risco de extinção. O ruivaco-do-oeste, das cinco espécies de peixes que estão criticamente em perigo escolhidas para este projecto, é o caso mais preocupante.
O peixe só existe em Portugal, em três rios do Oeste: o Alcabrichel, o Sizandro e o Safarujo. Só em 2005 é que a equipa do ISPA, liderada pelo professor Vítor Almada, compreendeu com ajuda da genética que estas três populações pertenciam a uma espécie que está individualizada do outro ruivaco que existe mais a norte.
Mais cedo no mesmo dia, a montante de Torres Vedras, perto da aldeia Dois Portos, quando Carla nos mostra um Achondrostoma occidentale nas suas mãos, o que ela vê é "uma linhagem independente com cinco milhões de anos de evolução". E tudo se perderá se não for feita a reabilitação dos rios.
O Sizandro que passa em Dois Portos ainda é outro - mais calmo, selvagem e mais limpo, apesar dos canos de esgotos vindos das habitações. A paragem reservou boas surpresas à bióloga, que repete a técnica que já aplicou em dezenas de rios portugueses, de norte a sul. Da bagageira do carro saem umas jardineiras de borracha com botas incorporadas e uma mochila com uma bateria de carro ligada a um aparelho eléctrico. A investigadora vai à caça.
Liga o aparelho a um camaroeiro e solta um fio directamente para a água. Escolhe um fundão à esquerda para fazer a primeira tentativa. "Ninguém toca na água", avisa. Descarga eléctrica. Salta uma enguia para a rede que acaba num balde preto com água. Mais descargas. No fundão, onde normalmente os peixes se protegem no Inverno contra a velocidade do rio e sobrevivem no Verão às secas, nada. "Não há peixes", diz a bióloga, enquanto se ouve uma ovelha a balir para os lados do amieiro que está do outro lado da margem.
Mas não desiste, anda uns metros para baixo e instala-se a seguir a uns mini-rápidos para voltar a fazer uso dos 16 quilos que leva às costas na mochila. Desta vez é diferente e quando olhamos já Carla tem vários ruivacos-do-oeste na rede. "Quando dei o primeiro choque, vieram logo uns 50!" No balde contamos 13, três não aguentaram a descarga e morreram.
A bióloga segura um exemplar e faz-nos uma descrição física da espécie: um adulto alcança uns nove centímetros, tem nas costas um padrão oliváceo que é muito diferente da barriga branca e manchas laranjas na base de todas as barbatanas.
Abril é época de reprodução e só agora é possível distinguir os machos das fêmeas. Carla diz-nos para passarmos o dedo pela cabeça do macho e confirmamos a existência de tubérculos: pontos rijos que aparecem agora e servem para estimular a fêmea. "Aqui está outra fêmea bastante cheia", mostra-nos a bióloga, acrescentando que largam centenas de ovos.
Perguntamos se está contente com o número de peixes que encontrou: "É muito bom, não estava à espera."
Cada curso tem um ecossistema próprio e vive em isolamento. Do ponto de vista biológico, mesmo falando da mesma espécie, quando se perde uma população de um rio, perde-se uma riqueza genética única, que teve uma evolução distinta de tudo o resto.
Projecto com quatro anos
"Cada rio é uma ilha, os princípios biológicos que se aplicam a uma ilha aplicam-se aqui a um rio", explica a investigadora, enquanto devolve ao rio os ruivacos-do-oeste, a enguia e a água do balde e depois de ter medido o oxigénio, o pH, a temperatura, a condutividade e a concentração de oxigénio no rio. Os parâmetros estão bons. "Temos grande disponibilidade de água, daqui a um mês as condições mudam radicalmente." E é tempo de deixar o Sizandro.
Além da poluição, a seca é outro problema que afecta estes rios e a sobrevivência deste peixe. Desde a seca de 2005 que não se encontra o ruivaco no rio Safarujo, que com os seus 20 quilómetros é o mais pequeno dos três cursos de água onde vive a espécie.
Vítor Almada arrancou com a ideia do projecto na sequência da famosa seca de 2005. "O projecto surgiu porque havia espécies que estavam muito em perigo", explica Vítor Almada por telefone, que reuniu à equipa do ISPA o Aquário Vasco da Gama e a Quercus - Associação Nacional de Conservação da Natureza.
O primeiro passo era garantir a conservação das espécies através da reprodução em cativeiro e garantir a reintrodução no habitat natural, depois de os rios serem recuperados. Além do ruivaco-do-oeste, a boga- portuguesa (Iberochondrostoma lusitanicum), a boga- do-sudoeste (Iberochondrostoma almacai) e duas espécies de escalo que só existem em Portugal, o Squalius torgalensis e o Squalius aradensis.
O primeiro protocolo foi feito em 2006. Às três instituições juntaram-se a Faculdade de Medicina Veterinária de Lisboa, a Câmara de Figueiró dos Vinhos e a EDP - a empresa termina a sua ligação com o projecto a 1 de Junho depois de um apoio de três anos. "Temos dinheiro até ao final do ano", disse Paulo Lucas, da Quercus; a partir daí continuam com fundos próprios da associação. "Uma eventual extensão do projecto está dependente de uma candidatura ao Fundo EDP para a Biodiversidade", disse por email Gilda Sousa, do departamento de comunicação da EDP.
Luz no cativeiro
No Aquário Vasco da Gama, subimos até ao terraço do edifício que recicla a água salgada, de onde se avista o Tejo e ao fundo Lisboa. Às 10h30 da manhã, o sol aquece a água dos vários tanques cheios de peixinhos.
Onde é que está o ruivaco-do-oeste? Do lado do rio, no tanque mais à direita, 265 indivíduos nadam num espaço com plantas que filtram a água, lugares para se esconderem feitos de rede e tijolos, vasos cheios de seixos para as fêmeas colocarem os ovos. O habitat mais natural possível dentro de um tanque rectangular com cerca de três metros quadrados.
Fátima Gil está colada ao tanque e remexe as pedrinhas dos vasos. "Uma forma de se dar com os ovos do ruivaco-do-oeste é apalpar as coisas", explica a bióloga, que trabalha no museu há 22 anos. Encontra primeiro um ovo com um aspecto envelhecido, já morto. Procura mais e anos de experiência com a reprodução de peixes em cativeiro não a deixam ficar mal. Colado a um seixo está um ovo pequenino, de um branco translúcido, com um ar decididamente vivo. "Vêem-se dois pontos pretos brilhantes que são os olhos do embrião. Se utilizássemos uma lupa, até se conseguia ver o coração a bater."
O Aquário Vasco da Gama também serviu para Alexandrina Pipa aprender as bases da reprodução em cativeiro, durante o mês que esteve em Lisboa, antes de voltar à aldeia de Campelo, perto de Figueiró dos Vinhos. É aí que ficam as instalações onde se fará a reprodução a longo prazo do ruivaco-do-oeste. Com a ajuda da câmara, que cedeu as instalações, o projecto investiu 35 mil euros para recuperar os tanques da Estação Aquícola de Campelo.
Mais de 500
Encontramos Alexandrina, que é voluntária da Quercus há 12 anos, na estação de comboio da Caxarias. No caminho até Campelo, vai explicando as espécies vegetais da paisagem. Vêem-se muitos Quercus faginea, o carvalho-português que nos últimos 20 anos tem vindo a substituir antigas zonas de cultivo. Mas existem também azinheiras, medronheiros, pilriteiros, além do tradicional pinhal e das manchas de eucalipto, onde Alexandrina diz que já viu veados e javalis.
A ribeira do Alge, que passa por Campelo, uma aldeia com menos de 30 habitantes, alimenta continuamente os viveiros. Na estação, só se ouve a água a correr. "Apostámos mais na recuperação dos tanques do que no edifício", explica a técnica.
Cá fora, há vários tanques muito maiores do que os do Aquário Vasco da Gama. Um deles, com cerca de nove metros de comprimento e três de largura, está pronto para receber a boga-portuguesa que vem do aquário de Lisboa. Só falta a temperatura da água subir mais um pouco.
Os moradores de dois dos nove tanques são ruivacos-do-oeste, um com exemplares do rio Sizandro, o outro do Alcabrichel, que chegaram a 31 de Março de 2009. Já desovaram no ano passado. Há 400 jovens de Alcabrichel e entre 150 e 200 do Sizandro, que ainda não se conseguiram contar. "Eu espero que, se não for este ano, seja para o próximo que se faça a reintrodução destes peixes na natureza", explica Alexandrina Pipa. "Não faz sentido fazer reintrodução, se o local ficar com as mesmas condições que existiam", defende.
À espera do Alcabrichel
Voltámos para o concelho de Torres Vedras, mas agora estamos a torrar ao sol, junto à margem do rio Alcabrichel, um calor insuportável. À nossa frente está parte do troço de 1500 metros do rio que corre por baixo da ponte do Ramalhal, a norte de Torres Vedras, até à ponte da A8.
Paulo Lucas, o responsável da Quercus pelo projecto, aponta para o cano do esgoto de onde corre um risco viscoso e castanho, tira fotografias e desabafa: "Isto é inacreditável."
O projecto da Quercus para a reabilitação do rio Alcabrichel ainda tem que ser aprovado pela Administração da Região Hidrográfica do Tejo, mas deverá avançar.
O futuro do ruivaco-do-oeste vai começar aqui - é esta fatia de 300 metros do rio que vai sofrer uma intervenção de reabilitação.
Mas o líquido castanho que corre constantemente do esgoto e se dissolve no ribeiro, com o cheiro indiscutível de uma suinicultura, compromete tudo. "Há alguma decantação dos materiais sólidos, mas a carga poluente é elevadíssima", explica o ambientalista de 41 anos que trabalha na Câmara Municipal de Ourém. O esgoto é uma fonte de matéria orgânica, faz explodir o crescimento de microrganismos que consomem o oxigénio e tornam inviável a existência do ruivaco. "Já pedimos uma solução para esta suinicultura. Só colocamos aqui os peixes quando o problema estiver resolvido."
Antes disso, contudo, há muito trabalho a fazer. O Alcabrichel é mais um exemplo de um rio encanado. O início dos trabalhos será em Junho: alargar as margens entre seis a sete metros para cada lado; retirar o canavial com cinco metros de altura; plantar salgueiros, choupos-negros, espécies autóctones que criam raízes, filtram o rio e dão sombra aos fundões, que no Verão são a salvação das populações de peixes. No final de Novembro, Paulo Lucas espera ter a primeira fase terminada. Os 300 metros de reabilitação vão custar 50 mil euros e o ambientalista calcula que vão ser necessários mais cinco anos de trabalho e 200 mil euros por ano para o Alcabrichel voltar ao que era, quando se podia tomar banho no rio.
Peixes no lago
O Sizandro vai ter que esperar. Apesar da melhoria da cobertura da rede de esgotos domésticos que passou de cerca de 50 por cento em 2000 para 75 por cento em 2010, só no final de 2011 o vereador Carlos Bernardes, vice-presidente da Câmara de Torres Vedras, espera ter 90 por cento das casas do concelho com os esgotos tratados. Mesmo assim, o tratamento dos resíduos da indústria agro-pecuária continua a léguas do necessário e em 2009 o Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos lançou um relatório onde o Sizandro, com leituras feitas já perto da foz, era dos rios mais poluídos do país.
Junto à entrada do rio em Torres Vedras, onde o leito está cimentado, há quem diga que o Sizandro está mais limpo do que era, depois do encerramento da destilaria de Runa, há uns anos. José Anselmo Gregório, um ferroviário de 59 anos, lembra-se de outro rio: "Dantes não estava cimentado, havia fundões onde a malta apanhava peixe. Tomava-se banho no rio." Já voltou a ver peixes na cidade, diz sentado num banco da estação de comboios.
Mostra-nos um pequeno lago ao lado do muro da estação. A água tem uma película de algas verdes. Com uma mangueira afasta as algas e aponta. Um peixe-vermelho grande passa. Ao lado, mais pequenos, com uma cor escura no dorso e brancos na barriga, ruivacos-do-oeste. Estão lá.
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