Público - 15.04.2010 - José Manuel Fernandes
Quando Irene Pimentel começou a estudar a vida do Cardeal Cerejeira tinha dele uma ideia pré-concebida: uma alma gémea de Salazar e a outra face de uma moeda em que Estado Novo e Igreja Católica formavam um todo. Mas descobriu um homem mais complexo, mais dividido. E que teve uma relação muitas vezes tensa com o seu amigo de Coimbra.
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No 12º aniversário do 28 de Maio, em 1938, Carneiro Pacheco, o ministro da Educação Nacional de Salazar, organizou em Lisboa um desfile da recém-criada Mocidade Portuguesa. Como mandavam as regras, enviou um convite ao Cardeal Patriarca de então, Manuel Gonçalves Cerejeira. Dificilmente a carta que recebeu na volta do correio podia ser mais violenta.
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O chefe da Igreja de Lisboa, e figura maior da Igreja portuguesa, não só lhe comunicou que não estaria presente, como o verberou por ter convidado para a cerimónia uma delegação da Juventude Hitleriana. Isso, escreveu Cerejeira, era "não só ofensivo e perigoso para a consciência católica portuguesa, mas também pouco digno da altivez nacional, sabido o inferior conceito que os alemães têm de nós, filhos (segundo eles) duma raça inferior e negróide".
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Em 1938, numa altura em que o regime vivia uma fase dourada e, aqui ao lado, em Espanha, os alemães ainda combatiam ao lado das tropas de Franco contra a República, poucos portugueses teriam condições e coragem para escrever uma carta daquelas, e nenhum outro o poderia fazer sem correr o risco de ser preso. Mas Cerejeira era uma excepção. Não era apenas o "príncipe da Igreja portuguesa", era também o velho companheiro de Salazar, o amigo que conhecera em Coimbra no já longínquo ano de 1911, ambos atraídos pela militância católica.
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Primeiro como estudantes, depois como professores, ambos vivendo, a partir de 1914, no Convento dos Grilos, Salazar e Cerejeira eram mais do que amigos e cúmplices: um no Estado, outro da Igreja, haviam conseguido tornar-se nas suas figuras dominantes. O que estava a acontecer em 1938, nove anos depois de Cerejeira se ter tornado Cardeal Patriarca e seis após Salazar se ter tornado, por fim, presidente do Conselho de Ministros, entre aqueles dois homens que tudo parecia unir?
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"O choque entre Cerejeira e Carneiro Pacheco a propósito da criação da Mocidade Portuguesa correspondeu à maior crise que o Cardeal teve com o Estado Novo", considera Irene Flunser Pimentel, autora da biografia "Cardeal Cerejeira - O Príncipe da Igreja". Nada lhe agradava nesse projecto, pois "via no movimento algo de muito parecido com o nazismo" e combateu ferozmente a ideia de, para a constituir, se dissolver o escutismo católico. Mas o que o incomodou mesmo foi essa vinda a Portugal de elementos da Juventude Hitleriana. Na época a Mocidade Portuguesa era dirigida por Nobre Guedes, um germanófilo que depois ocuparia o lugar de embaixador em Berlim, pois Marcello Caetano, anglófilo, só lhe sucederia em 1940. E, sobre o regime nazi, Cerejeira nunca teve dúvidas: tratava-se de um totalitarismo pagão quase ao nível do totalitarismo comunista. De resto, nesse mesmo ano de 1938 faria um discurso ao clero do Patriarcado onde condenou o totalitarismo por querer absorver "toda a actividade do indivíduo" e se referiu, em particular, ao nazismo, acusando-o de reclamar para si próprio a condição de divino e de pretender substituir a "concepção cristã pela 'Weltanschauung racista'".
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"A forma como define o totalitarismo é uma forma moderna", diz-nos Irene Pimentel. "Tão moderna que cheguei a pensar referir no livro as suas semelhanças com os escritos de Hanna Arendt dos anos 50. Só que aquilo foi feito em 1938".
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A difícil Concordata de 1940
Mas se a crise de 1938 - que coincide também com momentos difíceis na negociação da Concordata entre o Estado português e o Vaticano, que só seria aprovada em 1940 - terá sido uma das mais agudas na relação entre Cerejeira e o Estado Novo, não foi a única e revela um Cardeal bem diferente do que a historiadora imaginara antes de iniciar a sua investigação.
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"Eu tinha uma imagem mais simplista, a preto e branco, pensava que a Igreja tinha servido o regime e que o regime se tinha servido dela, ponto", conta-nos. "Pensava que Salazar era unha e carne com Cerejeira desde Coimbra, desde o tempo em tinham vivido no Convento dos Grilos, e não imaginava que tivessem tido divergências".
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Mas tiveram. Não só por serem diferentes - a Cerejeira nem enquanto novo se conhece inclinação para um namorico, a Salazar conhecem-se algumas relações com mulheres, se bem que menos vivazes do que hoje se quer fazer crer; Cerejeira viajou pelo mundo e gostava de andar de avião (foi o primeiro Cardeal a utilizar esse meio de transporte para ir a Roma participar num conclave para eleger o Papa), Salazar só se deslocou a Espanha e uma só viagem de avião levou-o a não querer repetir a experiência -, mas por prosseguirem agendas diferentes.
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"Cerejeira defendia, antes do mais, a sua Igreja, e defendia o regime na medida em que considerava que o Estado Novo a defenderia melhor, sobretudo depois do que se passara no período republicano", explica a autora. "Um bom exemplo disso foram as dificuldades na negociação da Concordata."
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Na verdade, apesar da ideia feita de que a Concordata de 1940 representou uma rendição do Estado português perante a Santa Sé, Salazar esteve longe de ser generoso. Tanto na substância dos princípios como na prática dos benefícios. A Concordata acertou o contencioso relativo aos bens da Igreja que tinham sido expropriados pelo Liberalismo e pela República, mas o presidente do Conselho que construíra o seu mito em torno do rigor nas contas públicas ficou muito aquém do que lhe pediam. Da mesma forma a Concordata não colocava o Estado a pagar os salários aos membros do clero, como sucedia - e ainda sucede - noutros estados europeus, ficando o Clero, como notaria o influente filósofo católico Jacques Maritain, condenado a "uma gloriosa pobreza". Por fim, Salazar não cedeu à exigência da Igreja de que fosse possível realizar casamentos religiosos sem efeitos civis, mas admitiu a indissolubilidade dos matrimónios católicos.
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"Também houve muita discussão sobre o divórcio, nomeadamente sobre este ser possível nos casamentos não religiosos, mas ainda hoje não conhecemos todos os documentos para fazer uma avaliação final", acrescenta a historiadora.
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Mesmo assim, devido à convergência de interesses entre Lisboa e o Vaticano no que toca à acção missionária nas colónias portuguesas, foi assinado ao mesmo tempo um Acordo Missionário que serviu bem os interesses das partes.
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O essencial, nota Irene Pimentel, é que tanto Salazar como Cerejeira acreditavam "na separação Igreja-Estado", que o último considerava mesmo a "trave-mestra" da civilização europeia. De resto, esta ideia da separação era recorrente em Cerejeira, que desde novo proferia conferências e escrevera ensaios sobre o tema. O que nem é estranho, se considerarmos que, para os católicos que enfrentaram o jacobinismo republicano, a Lei da Separação de Afonso Costa representava não uma real separação, mas uma espécie de nacionalização da Igreja, cujas organizações locais eram apropriadas pelos militantes republicanos. A investigação mais recente tem mostrado que a forma escolhida pela Igreja para resistir a Afonso Costa se traduziu, na prática, pela real separação entre as órbitas temporais e espirituais, uma vez que se a Igreja deixou de beneficiar de quaisquer privilégios, também recusou a tutela estatal.
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As desconfianças de Salazar
Irene Pimentel situa o momento de viragem nas relações entre Cerejeira e Salazar em 1932, depois de este ter chegado a presidente do Conselho após muitos anos a trabalhar, como ministro das Finanças, à ordem de sucessivos chefes de Governo oriundos do republicanismo conservador. No momento da consagração de Salazar o velho amigo de Coimbra quis lembrar que ele "era o enviado de Deus" e que chegara onde chegara "graças ao apoio da Igreja Católica". O professor de Santa Comba reagiu de forma seca, afirmando que estava onde estava "por nomeação do Presidente da República".
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"O que em 1932 Salazar diz a Cerejeira é que quem manda no Estado é ele, e quem manda na Igreja é o Cardeal, mas que a partir desse momento os seus caminhos se separavam", sublinha Pimentel. "É certo que a principal fonte pela qual conhecemos este momento de tensão é [a biografia de Salazar escrita por] Franco Nogueira, mas trata-se de uma fonte credível. Para além de que este relato é coerente com o que se passou depois entre a Igreja e o regime".
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Na verdade Salazar - que Irene Pimentel suspeita ter-se afastado do catolicismo no final da vida, tal como terá sucedido com Marcello Caetano - nunca subordina a sua agenda política aos desejos de Cerejeira. Talvez o exemplo mais eloquente da falta de colaboração do Estado Novo num projecto que o Cardeal Patriarca alimentava desde sempre tenha sido a demora na criação da Universidade Católica. O bispo de Lisboa formulou esse desejo ainda nos anos 20, nunca deixou de se bater pela concretização desse sonho desde que ascendeu a Cardeal, mas só o veria concretizado no ocaso da vida, no final dos anos 60.
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Para o prelado a criação da Universidade foi sempre peça central na sua visão sobre uma desejada recristianização da sociedade portuguesa, que nunca dissociou da existência de uma elite católica culta e influente. A construção do Seminário dos Olivais, em que se empenhou a fundo, era outra das pedras sobre as quais queria reerguer uma Igreja de novo poderosa.
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Ora, Salazar sempre desconfiou do projecto universitário de Cerejeira, e este sempre teve de explicar que não pretendia entrar em concorrência com a Universidade pública. Mais: o arranque das faculdades que não se dedicavam à Teologia e à Filosofia - como a de Economia - só acabaria por ocorrer depois de entregar a D. António Ribeiro o seu lugar como Cardeal Patriarca.
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"Para Cerejeira a abertura dos primeiros núcleos da Universidade terá mesmo constituído uma das poucas coisas boas do seu final de mandato", concretiza Irene Pimentel. "Abriu em 1968, um dos anos em que mais desgostos teve ao sentir que tudo corria mal à sua volta na Igreja portuguesa, sobretudo ao sentir que já não tinha mão na sua evolução".
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Face à Pide e aos católicos progressistas
Manuel Cerejeira, apesar do seu brilho como Académico e até da modernidade de muitas das suas opiniões e tomadas de posição - a ele se deve a consagração dos artistas modernistas como edificadores de Igrejas, patronato que muitos problemas lhe criou aquando da construção, ainda na década de 30, da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, em Lisboa -, era um homem do seu tempo. E isto quer dizer que era um católico fortemente marcado pelas experiências traumáticas da I República e da emergência do comunismo na Rússia. Por isso era não só anticomunista como tinha com a Maçonaria uma relação obsessiva. Curiosamente ao contrário do que sucedeu com Salazar, de quem quase não se encontram frases contra a Maçonaria.
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Irene Pimentel considera que isso talvez se deva ao facto de, "enquanto Cerejeira era de uma linha anti-maçónica, católica, integrista, Salazar, como político, teve de lidar com vários amigos influentes, como Bissaya Barreto, que eram maçons e que ele queria que entrassem, como entraram, para a União Nacional".
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Em contrapartida, tal não significou que o Cardeal apoiasse incondicionalmente a política de repressão do regime. É certo que enquanto a Pide perseguia os comunistas, Cerejeira quase compreendia, mas foram numerosas as situações em que pediu explicações ou intercedeu pela sorte de presos políticos. Em 1958, depois de ter sido alertado para um caso de "suicídio" na sede da polícia política - a mulher do embaixador do Brasil viu um preso a cair de uma janela - pediu explicações ao director da Pide e, depois, em carta ao ministro do Interior Trigo de Negreiros, escreveu que só esperava que não se fizessem coisas que fossem contra os "princípios cristãos".
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Isso é, no entanto, muito pouco para conseguir controlar uma Igreja que, a partir dos anos 50, vê nascer nas organizações que o próprio Cardeal apadrinhara um catolicismo progressista que esta condenava. Isso sucederá nas juventudes católicas - onde é notável o progressivo afastamento de João Benard da Costa, alguém em quem muito apostara -, no "seu" Seminário dos Olivais, onde acaba por substituir o director mas onde não deixa de ter longas discussões com figuras como Luis Moita, à altura ainda sacerdote, ou mesmo na paróquia de Belém onde entra em choque com o padre Felicidade Alves, um intelectual que ele próprio promovera e estimava.
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Mas se ainda hoje alguns dos que o conheceram e, depois, saíram da Igreja lhe reconhecem algum valor - "é curioso falar hoje com muitos católicos de esquerda de então, mesmo com alguns que chegaram a ser padres, e verificar que eles não são muito críticos de Cerejeira, antes têm dele uma visão mais matizada", adianta Irene Pimentel -, noutros casos as feridas abertas sangraram abundantemente. Talvez o caso mais evidente tivesse sido o do Bispo do Porto. D. António Ferreira Gomes, que nunca perdoou a Cerejeira a sua ambiguidade quando entrou em conflito com Salazar. Mais tarde viria mesmo a acusá-lo de cumplicidades com o regime que, segundo a historiadora, o Cardeal de Lisboa nunca teve
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"O Bispo do Porto refere-se-lhe, depois da crise, de uma forma quase insolente, provocatória, e nem sequer é rigorosa. Não é verdade, por exemplo, que a Pide fosse todos os dias ao Paço de Santana, onde era o Patriarcado, para recolher informações. Cerejeira não só ficou muito magoado com essas acusações como lhe respondeu, sublinhado que nunca fazia perguntas ao poder político, e muito menos à Pide, sobre a Igreja e as pessoas da Igreja. O que é verdade".
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A sua relação com o regime era mais complexa, e por isso mais difícil. "Ele foi sempre muito prudente - excessivamente prudente - e nunca atravessou o Rubicão ao ponto de se colocar numa situação de confronto com o regime", explica a autora. Porquê? Porque, no fundo, acreditava que, depois da República, o Estado Novo servia, em última análise, e apesar das fricções, os interesses da "sua" Igreja.
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E os interesses da "sua" Igreja sempre se sobrepuseram a tudo o mais na sua longa e influente vida.
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No 12º aniversário do 28 de Maio, em 1938, Carneiro Pacheco, o ministro da Educação Nacional de Salazar, organizou em Lisboa um desfile da recém-criada Mocidade Portuguesa. Como mandavam as regras, enviou um convite ao Cardeal Patriarca de então, Manuel Gonçalves Cerejeira. Dificilmente a carta que recebeu na volta do correio podia ser mais violenta.
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O chefe da Igreja de Lisboa, e figura maior da Igreja portuguesa, não só lhe comunicou que não estaria presente, como o verberou por ter convidado para a cerimónia uma delegação da Juventude Hitleriana. Isso, escreveu Cerejeira, era "não só ofensivo e perigoso para a consciência católica portuguesa, mas também pouco digno da altivez nacional, sabido o inferior conceito que os alemães têm de nós, filhos (segundo eles) duma raça inferior e negróide".
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Em 1938, numa altura em que o regime vivia uma fase dourada e, aqui ao lado, em Espanha, os alemães ainda combatiam ao lado das tropas de Franco contra a República, poucos portugueses teriam condições e coragem para escrever uma carta daquelas, e nenhum outro o poderia fazer sem correr o risco de ser preso. Mas Cerejeira era uma excepção. Não era apenas o "príncipe da Igreja portuguesa", era também o velho companheiro de Salazar, o amigo que conhecera em Coimbra no já longínquo ano de 1911, ambos atraídos pela militância católica.
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Primeiro como estudantes, depois como professores, ambos vivendo, a partir de 1914, no Convento dos Grilos, Salazar e Cerejeira eram mais do que amigos e cúmplices: um no Estado, outro da Igreja, haviam conseguido tornar-se nas suas figuras dominantes. O que estava a acontecer em 1938, nove anos depois de Cerejeira se ter tornado Cardeal Patriarca e seis após Salazar se ter tornado, por fim, presidente do Conselho de Ministros, entre aqueles dois homens que tudo parecia unir?
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"O choque entre Cerejeira e Carneiro Pacheco a propósito da criação da Mocidade Portuguesa correspondeu à maior crise que o Cardeal teve com o Estado Novo", considera Irene Flunser Pimentel, autora da biografia "Cardeal Cerejeira - O Príncipe da Igreja". Nada lhe agradava nesse projecto, pois "via no movimento algo de muito parecido com o nazismo" e combateu ferozmente a ideia de, para a constituir, se dissolver o escutismo católico. Mas o que o incomodou mesmo foi essa vinda a Portugal de elementos da Juventude Hitleriana. Na época a Mocidade Portuguesa era dirigida por Nobre Guedes, um germanófilo que depois ocuparia o lugar de embaixador em Berlim, pois Marcello Caetano, anglófilo, só lhe sucederia em 1940. E, sobre o regime nazi, Cerejeira nunca teve dúvidas: tratava-se de um totalitarismo pagão quase ao nível do totalitarismo comunista. De resto, nesse mesmo ano de 1938 faria um discurso ao clero do Patriarcado onde condenou o totalitarismo por querer absorver "toda a actividade do indivíduo" e se referiu, em particular, ao nazismo, acusando-o de reclamar para si próprio a condição de divino e de pretender substituir a "concepção cristã pela 'Weltanschauung racista'".
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"A forma como define o totalitarismo é uma forma moderna", diz-nos Irene Pimentel. "Tão moderna que cheguei a pensar referir no livro as suas semelhanças com os escritos de Hanna Arendt dos anos 50. Só que aquilo foi feito em 1938".
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A difícil Concordata de 1940
Mas se a crise de 1938 - que coincide também com momentos difíceis na negociação da Concordata entre o Estado português e o Vaticano, que só seria aprovada em 1940 - terá sido uma das mais agudas na relação entre Cerejeira e o Estado Novo, não foi a única e revela um Cardeal bem diferente do que a historiadora imaginara antes de iniciar a sua investigação.
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"Eu tinha uma imagem mais simplista, a preto e branco, pensava que a Igreja tinha servido o regime e que o regime se tinha servido dela, ponto", conta-nos. "Pensava que Salazar era unha e carne com Cerejeira desde Coimbra, desde o tempo em tinham vivido no Convento dos Grilos, e não imaginava que tivessem tido divergências".
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Mas tiveram. Não só por serem diferentes - a Cerejeira nem enquanto novo se conhece inclinação para um namorico, a Salazar conhecem-se algumas relações com mulheres, se bem que menos vivazes do que hoje se quer fazer crer; Cerejeira viajou pelo mundo e gostava de andar de avião (foi o primeiro Cardeal a utilizar esse meio de transporte para ir a Roma participar num conclave para eleger o Papa), Salazar só se deslocou a Espanha e uma só viagem de avião levou-o a não querer repetir a experiência -, mas por prosseguirem agendas diferentes.
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"Cerejeira defendia, antes do mais, a sua Igreja, e defendia o regime na medida em que considerava que o Estado Novo a defenderia melhor, sobretudo depois do que se passara no período republicano", explica a autora. "Um bom exemplo disso foram as dificuldades na negociação da Concordata."
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Na verdade, apesar da ideia feita de que a Concordata de 1940 representou uma rendição do Estado português perante a Santa Sé, Salazar esteve longe de ser generoso. Tanto na substância dos princípios como na prática dos benefícios. A Concordata acertou o contencioso relativo aos bens da Igreja que tinham sido expropriados pelo Liberalismo e pela República, mas o presidente do Conselho que construíra o seu mito em torno do rigor nas contas públicas ficou muito aquém do que lhe pediam. Da mesma forma a Concordata não colocava o Estado a pagar os salários aos membros do clero, como sucedia - e ainda sucede - noutros estados europeus, ficando o Clero, como notaria o influente filósofo católico Jacques Maritain, condenado a "uma gloriosa pobreza". Por fim, Salazar não cedeu à exigência da Igreja de que fosse possível realizar casamentos religiosos sem efeitos civis, mas admitiu a indissolubilidade dos matrimónios católicos.
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"Também houve muita discussão sobre o divórcio, nomeadamente sobre este ser possível nos casamentos não religiosos, mas ainda hoje não conhecemos todos os documentos para fazer uma avaliação final", acrescenta a historiadora.
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Mesmo assim, devido à convergência de interesses entre Lisboa e o Vaticano no que toca à acção missionária nas colónias portuguesas, foi assinado ao mesmo tempo um Acordo Missionário que serviu bem os interesses das partes.
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O essencial, nota Irene Pimentel, é que tanto Salazar como Cerejeira acreditavam "na separação Igreja-Estado", que o último considerava mesmo a "trave-mestra" da civilização europeia. De resto, esta ideia da separação era recorrente em Cerejeira, que desde novo proferia conferências e escrevera ensaios sobre o tema. O que nem é estranho, se considerarmos que, para os católicos que enfrentaram o jacobinismo republicano, a Lei da Separação de Afonso Costa representava não uma real separação, mas uma espécie de nacionalização da Igreja, cujas organizações locais eram apropriadas pelos militantes republicanos. A investigação mais recente tem mostrado que a forma escolhida pela Igreja para resistir a Afonso Costa se traduziu, na prática, pela real separação entre as órbitas temporais e espirituais, uma vez que se a Igreja deixou de beneficiar de quaisquer privilégios, também recusou a tutela estatal.
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As desconfianças de Salazar
Irene Pimentel situa o momento de viragem nas relações entre Cerejeira e Salazar em 1932, depois de este ter chegado a presidente do Conselho após muitos anos a trabalhar, como ministro das Finanças, à ordem de sucessivos chefes de Governo oriundos do republicanismo conservador. No momento da consagração de Salazar o velho amigo de Coimbra quis lembrar que ele "era o enviado de Deus" e que chegara onde chegara "graças ao apoio da Igreja Católica". O professor de Santa Comba reagiu de forma seca, afirmando que estava onde estava "por nomeação do Presidente da República".
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"O que em 1932 Salazar diz a Cerejeira é que quem manda no Estado é ele, e quem manda na Igreja é o Cardeal, mas que a partir desse momento os seus caminhos se separavam", sublinha Pimentel. "É certo que a principal fonte pela qual conhecemos este momento de tensão é [a biografia de Salazar escrita por] Franco Nogueira, mas trata-se de uma fonte credível. Para além de que este relato é coerente com o que se passou depois entre a Igreja e o regime".
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Na verdade Salazar - que Irene Pimentel suspeita ter-se afastado do catolicismo no final da vida, tal como terá sucedido com Marcello Caetano - nunca subordina a sua agenda política aos desejos de Cerejeira. Talvez o exemplo mais eloquente da falta de colaboração do Estado Novo num projecto que o Cardeal Patriarca alimentava desde sempre tenha sido a demora na criação da Universidade Católica. O bispo de Lisboa formulou esse desejo ainda nos anos 20, nunca deixou de se bater pela concretização desse sonho desde que ascendeu a Cardeal, mas só o veria concretizado no ocaso da vida, no final dos anos 60.
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Para o prelado a criação da Universidade foi sempre peça central na sua visão sobre uma desejada recristianização da sociedade portuguesa, que nunca dissociou da existência de uma elite católica culta e influente. A construção do Seminário dos Olivais, em que se empenhou a fundo, era outra das pedras sobre as quais queria reerguer uma Igreja de novo poderosa.
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Ora, Salazar sempre desconfiou do projecto universitário de Cerejeira, e este sempre teve de explicar que não pretendia entrar em concorrência com a Universidade pública. Mais: o arranque das faculdades que não se dedicavam à Teologia e à Filosofia - como a de Economia - só acabaria por ocorrer depois de entregar a D. António Ribeiro o seu lugar como Cardeal Patriarca.
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"Para Cerejeira a abertura dos primeiros núcleos da Universidade terá mesmo constituído uma das poucas coisas boas do seu final de mandato", concretiza Irene Pimentel. "Abriu em 1968, um dos anos em que mais desgostos teve ao sentir que tudo corria mal à sua volta na Igreja portuguesa, sobretudo ao sentir que já não tinha mão na sua evolução".
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Face à Pide e aos católicos progressistas
Manuel Cerejeira, apesar do seu brilho como Académico e até da modernidade de muitas das suas opiniões e tomadas de posição - a ele se deve a consagração dos artistas modernistas como edificadores de Igrejas, patronato que muitos problemas lhe criou aquando da construção, ainda na década de 30, da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, em Lisboa -, era um homem do seu tempo. E isto quer dizer que era um católico fortemente marcado pelas experiências traumáticas da I República e da emergência do comunismo na Rússia. Por isso era não só anticomunista como tinha com a Maçonaria uma relação obsessiva. Curiosamente ao contrário do que sucedeu com Salazar, de quem quase não se encontram frases contra a Maçonaria.
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Irene Pimentel considera que isso talvez se deva ao facto de, "enquanto Cerejeira era de uma linha anti-maçónica, católica, integrista, Salazar, como político, teve de lidar com vários amigos influentes, como Bissaya Barreto, que eram maçons e que ele queria que entrassem, como entraram, para a União Nacional".
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Em contrapartida, tal não significou que o Cardeal apoiasse incondicionalmente a política de repressão do regime. É certo que enquanto a Pide perseguia os comunistas, Cerejeira quase compreendia, mas foram numerosas as situações em que pediu explicações ou intercedeu pela sorte de presos políticos. Em 1958, depois de ter sido alertado para um caso de "suicídio" na sede da polícia política - a mulher do embaixador do Brasil viu um preso a cair de uma janela - pediu explicações ao director da Pide e, depois, em carta ao ministro do Interior Trigo de Negreiros, escreveu que só esperava que não se fizessem coisas que fossem contra os "princípios cristãos".
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Isso é, no entanto, muito pouco para conseguir controlar uma Igreja que, a partir dos anos 50, vê nascer nas organizações que o próprio Cardeal apadrinhara um catolicismo progressista que esta condenava. Isso sucederá nas juventudes católicas - onde é notável o progressivo afastamento de João Benard da Costa, alguém em quem muito apostara -, no "seu" Seminário dos Olivais, onde acaba por substituir o director mas onde não deixa de ter longas discussões com figuras como Luis Moita, à altura ainda sacerdote, ou mesmo na paróquia de Belém onde entra em choque com o padre Felicidade Alves, um intelectual que ele próprio promovera e estimava.
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Mas se ainda hoje alguns dos que o conheceram e, depois, saíram da Igreja lhe reconhecem algum valor - "é curioso falar hoje com muitos católicos de esquerda de então, mesmo com alguns que chegaram a ser padres, e verificar que eles não são muito críticos de Cerejeira, antes têm dele uma visão mais matizada", adianta Irene Pimentel -, noutros casos as feridas abertas sangraram abundantemente. Talvez o caso mais evidente tivesse sido o do Bispo do Porto. D. António Ferreira Gomes, que nunca perdoou a Cerejeira a sua ambiguidade quando entrou em conflito com Salazar. Mais tarde viria mesmo a acusá-lo de cumplicidades com o regime que, segundo a historiadora, o Cardeal de Lisboa nunca teve
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"O Bispo do Porto refere-se-lhe, depois da crise, de uma forma quase insolente, provocatória, e nem sequer é rigorosa. Não é verdade, por exemplo, que a Pide fosse todos os dias ao Paço de Santana, onde era o Patriarcado, para recolher informações. Cerejeira não só ficou muito magoado com essas acusações como lhe respondeu, sublinhado que nunca fazia perguntas ao poder político, e muito menos à Pide, sobre a Igreja e as pessoas da Igreja. O que é verdade".
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A sua relação com o regime era mais complexa, e por isso mais difícil. "Ele foi sempre muito prudente - excessivamente prudente - e nunca atravessou o Rubicão ao ponto de se colocar numa situação de confronto com o regime", explica a autora. Porquê? Porque, no fundo, acreditava que, depois da República, o Estado Novo servia, em última análise, e apesar das fricções, os interesses da "sua" Igreja.
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E os interesses da "sua" Igreja sempre se sobrepuseram a tudo o mais na sua longa e influente vida.
Comentários
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17.04.2010 - 18:52 - JN, Amadora
A Igreja Católica utiliza a estratégia de colar-se aos poderosos dos países, seja ele de ditaduras de esquerda ou direita, democracias, o melhor que sabem e podem. A ICAR coloca-se fora dos princípios políticos. Não os tem. O que lhes interessa é estar presente junto do Poder e de quem manda e, se puder, influenciar.
17.04.2010 - 16:10 - Alexandre Pais, Berças
De onde vem o nome de Cerejeira? Soa a nome de cristão-novo. Também Salazar era descendente de espenhóis fixados há menos de três séculos em Portugal.
17.04.2010 - 15:10 - JSM, Lisboa
Os interesses da Igreja e do Estado Novo sempre coincidiram!!! Em to das as cerimónias lá estava o Cerejeira ao lado de Salazar. Eram as Missões, eram os seminários, foi a Concordata que fez recuar o progresso laico da I República!!! Esta historiadora é uma perigosa revisionista!
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