Discurso de Lula da Silva (excerto)

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quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Dez dias em Moscou: Um reencontro doloroso

Mundo

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Vermelho - 19 de Agosto de 2009 - 17h30

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O que sentirei no reencontro? A pergunta, enquanto o avião corria pela pista do aeroporto Domodedovo, em Moscou, incomodou-me por repetida. Desembocava no vazio.
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Por Miguel Urbano Rodrigues

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Voltava a Moscou 15 anos após a última visita realizada como membro de uma delegação da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. Nessa época a Rússia, em transição para o capitalismo, vivia dias caóticos.
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Agora, transcorridas 24 horas, ainda tenho dificuldade em arrumar ideias e interpretar emoções, em inserir numa reflexão coerente o que vejo e sinto.

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Estou numa esplanada do GUM (Magazine Principal Universal, em português), na Praça Vermelha, em frente ao Mausoléu de Lênin. Sobre o Grande Palácio ondeia a bandeira atual da Rússia. Nela figura, por decisão recente, a águia bicéfala dos Romanov. A guarda de honra, que antes era permanente, foi retirada.
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Nada corresponde ao esperado, embora tudo na expectativa fosse vago, indefinível. As surpresas encadeiam-se numa cadeia desordenada.
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Na memória o que ficou gravado não foram imagens e sentimentos de passagens pela cidade na agonia da perestroika e no início do consulado de Iéltsin. O que permanece como referência, como termo de comparação, é a lembrança da Moscou que visitei mais de uma dúzia de vezes quando era a capital da URSS, um país que desapareceu.
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O dia está luminoso, quase não há nuvens num céu muito azul, e o sol quente da manhã incide sobre o zimbório da catedral de São Basílio.
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Há pouca gente ainda a circular pela Praça e na lonjura adivinho as cúpulas douradas de algumas das brancas catedrais do Kremlin.
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Pagamos, minha companheira e eu, 2.500 rublos, o equivalente a 56 euros, por duas saladas, uma cerveja — estrangeira porque não serviam russa — uma água mineral e dois cafés.
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Foi o primeiro alerta, para não esquecer que Moscou é hoje a cidade mais cara da Europa.
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O GUM, que conhecera como gigantesco centro comercial onde tudo era barato, assumiu a fisionomia de um shopping onde transnacionais da União Europeia e dos EUA vendem produtos de luxo.
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Na Arbat e na nova Arbat
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Voltei à Arbat num domingo frio e ventoso. Ao entrar na rua que aparecia aos forasteiros como um ex libris da velha Moscou tive inicialmente a sensação de que o tempo havia parado ao avistar, vindo do metrô da Smolenskaya, o palacete verde onde Puchkin viveu tempos de felicidade com a mulher, Natália Gontcharova.
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A ilusão logo se desfez.
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Alguns artistas expunham, como antes, os seus quadros no meio da rua e pintavam retratos de turistas.
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Mas a atmosfera da Arbat transmutara-se. A modernidade transformadora exibia-se nos terraços de estilo francês dos cafés, dos restaurantes de cozinha italiana, asiática, até americana, na decoração dos estabelecimentos de souvenirs, mas também na secura dos vendedores, na frieza das empregadas de todas as lojas.
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Choque maior foi o sentido depois, ao descer a antiga avenida Kalinin. Mudou de nome como muitas ruas e cidades. Trocaram-no para Nova Arbat. Reconheci, imutáveis, os enormes edifícios da época soviética. Mas, caminhando pelas calçadas – talvez as mais largas do mundo – a sensação de que pisava terreno desconhecido foi imediata. A publicidade, antes inexistente, agride hoje o forasteiro.
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Os cassinos da avenida foram fechados recentemente por decisão de Medvedev no cumprimento de uma lei que era desrespeitada. O jogo passou a ser permitido somente em quatro cidades do país. Mas as fachadas berrantes dos casinos ainda não foram alteradas. Ali perdiam-se e ganhavam-se milhões na roleta e no pôquer e as máquinas caça-níqueis eram um sorvedouro de dinheiro.
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Entrei em dois centros comerciais super luxuosos onde as lojas de grandes costureiros de Paris e Roma e de perfumes famosos chamam a atenção. Os preços são astronômicos. Vi expostos casacos de peles cujo custo excedia 500.000 rublos (11.200 euros). Numa loja de vinhos – há hoje dezenas em Moscou - uma garrafa de Bordeaux de nome para mim desconhecido era oferecida pela bagatela de 45.000 rublos ( 1.000 euros). Outras custam mais de 20.000 rublos (445 euros).
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Alguns supermercados funcionam durante as 24 horas do dia.
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Num parque de estacionamento da Nova Arbat os carros luxuosos eram mais numerosos do que os comuns. Vi ali Bentleys, Porsches, Mercedes, Jaguares, Ferraris, Volvos, BMW, Mercedes, Lexus e Infinitis japoneses, alguns de modelos inexistentes em Portugal. Disseram-me que em Moscou há mais Rolls Royce do que no Reino Unido.
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Para surpresa minha há hoje em circulação mais carros importados do que russos. Das marcas tradicionais, segundo me informaram, somente continuam em produção o Volga e o Lada.
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Mas as contradições na capital são tamanhas que na Sadovaya, a primeira circular, muito perto da Nova Arbat, um outro supermercado vendia cerveja russa barata, excelentes vinhos chilenos a 200 rublos (4,4 euros) e legumes e frutas a preços comparáveis aos portugueses.
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Como foi possível?
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Não ocorreu na história contemporânea acontecimento comparável ao terremoto social que assinalou o desaparecimento da União Soviética.
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A transição do capitalismo para o socialismo, difícil e imperfeita, caraterizara-se por uma exacerbada e prolongada luta de classes.
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A transição do socialismo para o capitalismo, essa foi rápida, caótica, selvagem.
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Li milhares de páginas sobre esse período de barbárie. Em duas visitas breves, em 1993 e 1994, testemunhei o início da transformação da sociedade.
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Conhecia os fatos, mas não a herança.
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Com frequência, veteranos comunistas perguntam em Portugal: "Como foi possível?"
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No reencontro com amigos russos — jornalistas, ex-diplomatas, tradutores — escutei, nas respostas a uma infinidade de perguntas, versões do sismo social nem sempre coincidentes nos pormenores mas que não diferiam muito no tocante aos efeitos do vendaval contra-revolucionário e ao quadro em que se desenvolveu o capitalismo selvagem.
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Na destruição das estruturas econômicas do Estado Soviético foi tudo tão rápido, absurdo e violento que a imaginação tem dificuldade em acompanhar o processo.
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A Moscou dos bilionários e dos pobres, separados por uma classe média anêmica que sobrevive recorrendo ao duplo e triplo emprego, nasceu na atmosfera caótica da barbárie social incentivada e tutelada por Iéltsin após o fim da URSS.
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A destruição da propriedade social, empreendida sob a direção de uma burocracia que havia renunciado há muito aos princípios e valores do socialismo, concretizou-se através de mecanismos criminosos concebidos para permitir a acumulação em tempo brevíssimo de fortunas colossais.
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O sistema dos vouchers foi apresentado ao Ocidente como uma opção democrática destinada a transformar os trabalhadores em proprietários das suas empresas. Na prática funcionou como instrumento de concentração de riqueza e poder nas mãos de uma classe dominante de tipo mafioso.
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A desordem imperante, o desabar da Segurança Social, o desaparecimento de direitos e garantias, o desemprego galopante, o desabastecimento, carências generalizadas contribuíram para que em tempo mínimo os trabalhadores vendessem por preço vil os vouchers recebidos, para eles papéis sem valor.
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Ex-diretores das empresas e ex-altos funcionários do Estado foram os principais beneficiários do processo de espoliação dos trabalhadores. A venda de fábricas inteiras ao estrangeiro – muitas vezes por menos de um décimo do seu valor – em negociatas escandalosas, apadrinhadas pelo Governo, facilitou também o aparecimento de uma geração de milionários. Os anos 1990 ficarão na Historia como a década das máfias, um período de caos social, durante o qual a criminalidade atingiu o auge com os grupos mafiosos a controlar o Poder Central enquanto se digladiavam no contexto do capitalismo selvagem. Quase tudo no fluir da vida econômica era ilegal. Mas a ilegalidade torrencial, por rotineira e abrangente, era tolerada, aceita como fenômeno quase natural.
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Homens e mulheres — Berezovsky, Abramovitch, a filha de Iéltsin, Tatyana Diátchenko, entre muitos outros — que anos antes viviam de modestos salários tiveram, de repente, os seus nomes inscritos na lista das grandes fortunas do mundo.
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A nova economia russa assentava, entretanto, em bases virtuais, tão desligadas da produção que ruiu instantaneamente.
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Na crise do ano 1998 veio tudo abaixo. O rublo tornou-se de um dia para outro um papel sem valor e a pobreza generalizada agravou-se em todo o pais, assumindo proporções alarmantes.
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A ascensão de Putin à Presidência ficou a assinalar o início da transformação do sistema. O sucessor de Iéltsin percebeu que era urgente por termo à fase do capitalismo selvagem, tutelado pelas máfias, e instaurar no país um capitalismo com regras e outro rosto, inspirado no modelo neoliberal ocidental. E o que ocorreu?
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A continuidade de uma política anti-social, com a peculiaridade de ser aprovada e elogiada pelos EUA e pelos governos da União Europeia.
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Assistiu-se, a partir do ano 2001, à legalização daquilo que fora roubado.
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A corrupção em larga escala não desapareceu. Assumiu novas formas. O Governo Putin ganhou a respeitabilidade de que carecia o de Iéltsin.
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Moscou, outro país
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Moscou tem oficialmente 10 milhões e meio de habitantes. É a mais populosa cidade da Europa depois da turca Istambul. Mas as estatísticas mascaram a realidade. Poucos arriscam números, mas admite-se que na capital vivam atualmente 13 milhões de pessoas. Porquê a diferença?
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Ninguém pode morar na cidade sem autorização de residência e os ilegais não constam obviamente do censo.
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Ouvi repetidamente que Moscou é atualmente um país dentro de outro, diferente, que é a Rússia.
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O comentário facilita o entendimento da contradição: uma prodigiosa concentração de riqueza na capital de um país empobrecido, terceirizado.
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Moscou é um polvo monstruoso que atrai e digere a riqueza produzida na vastidão do maior país do mundo. Ali se concentram nas mãos de uma classe de inimigos do povo os lucros do gás, do petróleo, dos diamantes, do ouro, de grande parte da mais valia que o jovem capitalismo russo consegue acumular à custa do suor e do sofrimento dos povos do território do planeta mais rico em recursos naturais.
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Mas Moscou é uma cidade de desigualdades chocantes. A prosperidade arrogante da urbe de novos-ricos, que se exibe como vitrina do século 21, é privilégio de uma pequena minoria. Na megalópolis a pobreza e mesmo a miséria coexistem com o mundo fechado da classe bilionária de raízes mafiosas.
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Nos estamentos mais baixos de uma classe média pauperizada são raros os que para sobreviver não têm de recorrer ao duplo emprego ou a biscates.
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Quase tudo o que antes nos serviços públicos era gratuito ou tinha um preço simbólico é agora pago.
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O ensino nas Universidades do Estado — as privadas são por ora inexpressivas — continua a ser teoricamente gratuito. Mas o custo das propinas atinge níveis elevadíssimos. Na Lomonossov, de Moscou, uma escola que gozava de prestígio mundial, a anuidade em algumas faculdades anda pelos 225.000 rublos (5.000 euros).
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A situação criada pela corrupção no Ensino suscita tantas críticas que Medvedev numa reunião com os lideres dos grupos parlamentares representados na Duma sugeriu há dias a constituição de uma Comissão Especial incumbida de estudar o problema e propor medidas que permitam o acesso à universidade aos filhos dos trabalhadores que hoje nelas não podem ingressar por falta de recursos. O ensino superior voltou a ser, como na época imperial, privilégio de uma elite.
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Na saúde o panorama não é muito diferente.
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O antigo sistema ruiu. Pela lei os cuidados de saúde são ainda gratuitos. Mas os hospitais não a cumprem. Fora das urgências quase tudo é pago. A corrupção envolve funcionários administrativos, médicos, enfermeiros, a totalidade dos serviços.
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Os medicamentos são caríssimos.
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Para que serve a lei?
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Uma legislação abundantíssima ficou a assinalar na Rússia a transição para o capitalismo. Foram redigidas, aprovadas e promulgadas milhares de leis.
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A maioria não é cumprida.
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No que se refere aos salários, os trabalhadores encontram-se na prática desarmados perante o patronato. Não existe um salário mínimo nacional. Em seu lugar o Poder Local, estabelece em cada região um mínimo de sobrevivência que na maioria das cidades é inferior a 3.000 rublos mensais (67 euros). Essa quantia, não chega para uma má alimentação.
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A lei estabelece o 13º salário. Mas em milhares de empresas os trabalhadores não o recebem. Os lay-off são frequentes e muitos empresários não pagam sequer o salário do mês a trabalhadores que tomam férias.
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As demissões, coletivas ou individuais, não são dificultadas por mecanismos minimamente eficazes. Os sindicatos são incapazes de defender os direitos dos trabalhadores. Foram reduzidos à condição de organizações de fachada que não cumprem a sua função social.
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Tentei informar-me com amigos sobre a escala dos salários em diferentes atividades profissionais. Mas não consegui ir longe. Em primeiro lugar os salários em Moscou são muito mais elevados do que em qualquer outra das grandes cidades, incluindo São Petersburgo, a antiga Leningrado.
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Soube que a maioria das empresas, para evitar impostos, paga uma parte do vencimento por fora. Muitos patrões retêm percentagens do salário estipulado com os trabalhadores.
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As disparidades, entretanto, são enormes tanto no setor público, como no privado.
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Um general de quatro estrelas ou um magistrado no topo da carreira poderá atingir uns 80.000 rublos (um pouco menos de 1.800 euros). Um médico, um engenheiro ou um professor universitário ganham metade disso.
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Daí o alastramento da corrupção, uma lava que escorre pelo conjunto da sociedade.
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Há controle de preços em alguns produtos. Mas é ficcional. Verifiquei que o mesmo produto é vendido ao público em cada supermercado por preços muito diferentes, em alguns casos por quase o dobro ou metade do afixado numa loja próxima.
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Um amigo de Orel, cidade a uns 360 quilômetros a sudoeste de Moscou, mostrou-me a folha dos salários pagos no complexo açucareiro local que emprega cerca de 800 trabalhadores. Ali o diretor tem um salário de 35.000 rublos (780 euros); os carregadores de sacos de 50 quilos, em turnos de 12 horas, trabalho devastador para a saúde, recebem 30.000 (uns 670 euros); o engenheiro-chefe ganha 25.000 (550 euros); os economistas 17.000 (380 euros); os operários da refinaria 8.000 (180 euros); os capatazes e os serralheiros também 8.000, o mínimo é de 4.000 (90 euros).
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A disparidade com Moscou é considerável.
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Perguntei-lhe como conseguem sobreviver com salários tão baixos, sendo tão alto o custo de vida.
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"Os que podem – esclareceu - têm outro emprego. Quase todos possuem ali casa própria. O meu irmão não tem grandes problemas com a alimentação porque cria galinhas e cultiva legumes e frutas num terreno que recebeu quando destruíram o Sovkhós local. Mas é quase unânime a convicção de que se vivia muito melhor na época da União Soviética. Veja o meu caso, tive de emigrar para não cair na miséria..."
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A esperança ausente num presente sombrio
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Nos meus dez intensos dias moscovitas muitas horas foram ocupadas por longos passeios por ruas, praças e lugares da cidade que eu conhecera e tinha amado quando era a capital da União Soviética.
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Que procurava ao revisitar pela imaginação o passado?
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É difícil responder. Tentava talvez compreender a Rússia atual, uma sociedade atormentada, desconhecida, resultante daquilo que me aparecia como uma tragédia para a Humanidade.
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Caminhei muito pela Praça Vermelha, desci e subi diariamente a Tvierskaya, a grande rua que foi durante dois séculos para Moscou o que os Champs Elisées representam para Paris e a Avenida da Liberdade para Lisboa.
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Eu a descobri quando se chamava Gorky em homenagem ao autor de A Mãe. Fisicamente pouco nela mudou. São raros os novos edifícios que substituíram os derrubados. Mas o rosto da Tvierskaya moldada pelo capitalismo não lembra o da Gorky.
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Antes o ritmo da vida era lento. Ninguém parecia ter pressa. Agora, a multidão que a percorre, de manhã ao entardecer, neste agosto azul pouco difere, até no vestuário, daquelas que num fluxo de contornos kafkianos se movimentam nas grandes capitais do Ocidente com medo de perder cada minuto.
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Entrei em muitas lojas. Impressionou-me especialmente um supermercado que há trinta anos me chamou a atenção por estar instalado no piso térreo de um antigo palácio. A decoração das paredes e tetos, belíssima, foi mantida. Mas hoje somente ali são oferecidos ao público produtos de grande qualidade, a preços proibitivos. O estabelecimento adquiriu uma marca de classe.
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Consagrei uma tarde a revisitar hotéis onde me hospedara nas minhas frequentes visitas a Moscou.
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O velho Minsk, na Tvierskaya, já não existe. O Ucrânia e o Leningrado, remodelados, continuam, a ser inflorescencias na cidade, por terem surgido em torres da época staliniana. O Moskva, no Okhotnyi Ryad, foi demolido para ser edificado um igual no antigo espaço. O Metropol e o Nacional, construídos no início do século 20, que conheci como confortáveis mas muito modestos, são hoje cinco estrelas muito procurados pelas personalidades do jet set internacional. O Oktiabrskaya 2.º, que era o maior dos hotéis do Comitê Central, chama-se hoje Presidient e é um 4 estrelas muito procurado pelos homens de negócios.
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Revisitei, naturalmente, alguns museus.
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No da História da Rússia, instalado no gigantesco palácio vermelho de estilo gótico revivalista que fecha a Praça Vermelha do lado oposto à Catedral de São Basílio, nada mudou na aparência. É um museu que sempre me encantou. Cada salão é nele uma obra de arte, o que envolve os visitantes numa atmosfera mágica no passeio pela Historia da Rússia, desde o neolítico ao fim da autocracia czarista.
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Dediquei também horas a percorrer o Museu da História Contemporânea da Rússia. Antes chamava-se Museu da Revolução, mas um bom senso elementar, excepcionalmente, impediu que os novos governantes, ousassem reescrever a História das Revoluções de 1905 e de 1917.
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A tentativa de manipulação limitou-se a alguns parágrafos de pequenos textos em inglês colocados à entrada nas salas.
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No Museu Púchkin tive também a sensação de que o tempo havia parado. À museologia soviética falta a tecnologia e a sofisticação da francesa e da britânica. Mas aquele maravilhoso museu, nas salas dedicadas às antigas civilizações, faz recordar o Louvre e o British Museum, empurra os visitantes em cavalgada pelo tempo para a Grécia, Roma, o Egito, a Assíria, a Pérsia dos Aquemênidas. A pinacoteca é deslumbrante.
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Estive pela primeira vez na Catedral do Salvador, um templo enorme, o maior da Rússia. Foi ressuscitado em circunstâncias que fazem dele uma aberração. O czar Alexandre I, para comemorar a vitória sobre Napoleão, decidiu em 1814 edificar em Moscou uma catedral gigantesca. Interrompida várias vezes a sua construção foi inaugurada em 1883. Em 1931 foi demolida por decreto. No lugar foi então instalada a céu aberto uma piscina de água quente na qual se nadava em pleno Inverno. O último absurdo consumou-se quando Iéltsin decidiu que a Catedral fosse reconstruída de acordo com o projeto original. A Rússia vivia então a fase do capitalismo selvagem com o povo a sofrer tremendas privações. A obra foi um sorvedouro de dinheiro. Mármores caríssimos foram importados de Itália e outros países; no interior, um autêntico museu com ícones antiquíssimos, o ouro dos altares e capelas é tanto que fere o olhar dos visitantes.
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Na manhã que por ali passei eram escassos os fiéis.
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Para quê reinventar uma Catedral como aquela, aliás sem tradições? Para quê se esbanjaram naquele capricho de Iéltsin milhões numa época de miséria?
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Todas as pessoas com quem abordei a questão coincidiram na conclusão de que a iniciativa confirma a irresponsabilidade que ficou a assinalar a passagem pelo Poder do homem que destruiu não apenas a URSS, mas a Rússia, motor do Estado desaparecido.
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Meditação no Kremlin
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Vinte anos transcorreram desde a última visita que fizera ao Mausoléu de Lênin, quando a URSS estava prestes a desagregar-se.
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Senti o desejo de voltar ali com a minha companheira. A fila era enorme. Enquanto esperávamos, apareceu uma senhora que se dirigiu a nós e aos outros estrangeiros para garantir acesso imediato, desde que lhe pagássemos cada um 10 euros. Alguns aceitaram.
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Num cálculo sumário, avaliei num mínimo de 4.000 euros mensais o que a sua atividade ilegal lhe pode proporcionar, quantia colossal num país de salários muito baixos.
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Cito o caso porque ilumina bem o funcionamento da máquina da corrupção na Rússia contemporânea. A economia paralela garante hoje a sobrevivência a muitos milhões de pessoas. Sem ela, no atual contexto, a maioria da população vegetaria na miséria. Mas o preço social desse câncer que corrói a nação é assustador.
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Caminhei durante uma hora pelo recinto do Kremlin, entre as velhas catedrais, o Grande Palácio, o Palácio dos Congressos e outros edifícios. Senti, mais uma vez que naquele espaço, fechado pelas muralhas de tijolo vermelho da fortaleza medieval, o visitante atravessa as paredes do tempo numa viagem pela história profunda dos povos da Rússia.
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No meu caso, cada setor da fortificação, cada torre, cada igreja, cada palácio me confronta com épocas e pessoas cuja passagem por ali deixou marcas na Historia da Rússia e da Humanidade. Penso em Ivan III, no rei polaco invasor, em Pedro o Grande, em Catarina II, em Napoleão, no último czar, em Kerenski, Lênin e Stalin. Contemplando o relógio da Torre do Salvador, tomo consciência de que não voltarei a Moscou, que me despeço nesta visita da cidade e da Rússia.
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Foram dias intensos, num reencontro doloroso. Insuficientes para compreender a complexidade da nova vida num país com uma cultura sem similar no mundo, muito diferente de qualquer das culturas da Europa Ocidental.
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Para sintetizar num mínimo de palavras o sentimento - balanço destes dias moscovitas direi que regressei a Portugal com a convicção de que o povo da grande cidade perdeu muito da sua antiga alegria de viver. É uma impressão na aparência absurda, mas muito forte.
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Falei com gente amiga e outra que conheci agora. Essas conversas e o que vi empurram-me para a conclusão de que, excetuada, no vértice, a nova classe de multimilionários e os estamentos sociais de uma burguesia em formação que leva uma existência folgada, a esmagadora maioria dos moscovitas com mais de 45 anos sente já a nostalgia da vida antiga.
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A grande cidade modernizou-se, adquiriu a fisionomia de uma megalópolis europeia cosmopolita onde ao longo do dia, a circulação de carros e pessoas é permanente, alucinatória a certas horas.
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O metrô, que se degradara nos anos de Iéltsin, recuperou a beleza e o asseio. Moscou voltou a ser uma capital muito mais limpa do que Paris ou Roma.
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Mas sobre ela, invisível, paira um manto de tristeza.
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A falta de perspectivas é real e transparente. Mesmo aqueles – e são, repito, a maioria – que no paralelo entre o presente e o passado esboçam um quadro sombrio da vida atual não acreditam numa mudança em tempo previsível. Recordam com saudade os anos da segurança no trabalho, da ausência do desemprego, das pensões, saúde e ensino garantidos, das férias pagas. Mas não vislumbram sequer a possibilidade de uma humanização do capitalismo implantado no país.
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O deslumbramento com o estilo americano de vida, que nos anos posteriores ao fim da URSS envolveu amplas camadas da juventude, cedeu o lugar a uma visão realista da cultura exportada pelos EUA. Os seus efeitos negativos continuam a pesar muito no quotidiano moscovita, mas a própria imagem do presidente Barack Obama, recebido com entusiasmo, perdeu já o poder de atração inicial. As guerras imperiais dos EUA inspiram hoje um repúdio cada vez mais generalizado.
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Nesse sentido, a política de recuperação da dignidade nacional, transparente no novo tipo de diálogo com Washington, contribuiu para o prestígio de Putin e Medvedev.
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Não falei, em contrapartida, com uma só pessoa que não manifestasse desprezo e aversão por Iéltsin. Identificam nele não apenas o coveiro da União Soviética, mas um político corrupto, submisso perante os EUA, um aventureiro ambicioso, um alcoólatra degradado.
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Com alguma surpresa minha, pouco se fala já de Gorbatchov e Kruschev. Foram quase esquecidos, ao contrário de Brejnev, recordado com saudade por muita gente.
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Apagou-se totalmente a esperança no povo russo?
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Não é essa a minha convicção.
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Mais de uma vez a velhos amigos e a gente moça ouvi, ao comentarem os males do presente, a afirmação de que a caminhada do povo russo pela História tem sido trágica, mas que sempre, após sofrimentos inenarráveis, ele encontrou maneira de sair da escuridão para a luz.
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Pensei na misérrima, famélica e atrasada Rússia medieval, indefesa perante as ininterruptas invasões de nômades asiáticos, no flagelo que foram os três séculos da ocupação de parte do país pelas hordas mongóis, nas invasões de polacos e suecos, na entrada de Napoleão em Moscou e na sua posterior derrota, nos monstruosos crimes cometidos pelos alemães nas duas guerras mundiais. Recordei os séculos da servidão. Mas quando ninguém esperava, foi também na Rússia que surgiu e venceu a primeira revolução socialista da História.
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Admito que o renascimento da nação russa, inevitável, será dialeticamente facilitado pela decadência do poder imperial dos EUA. A atual crise do capitalismo é estrutural e não cíclica como as anteriores. Tende a agravar se ao contrário do que afirmam Obama e os banqueiros de Wall Street.
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Esse naufrágio, sem data no calendário, criará condições favoráveis à emergência de um mundo multipolar. E nele o povo russo terá um papel insubstituível a desempenhar.
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Sou otimista. Ao sair do túnel, a Rússia, acredito, reencontrará a luz e o calor do sol.
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Miguel Urbano Rodrigues,
Moscou e Serpa, agosto de 2009
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Reproduzido de ODiario.Info

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Download Catedral de São Basílio
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