Cultura
Vermelho -17 de Agosto de 2009 - 18h59
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Há um ano, em 16 de agosto, Dorival Caymmi morria no Rio de Janeiro, aos 94 anos. Presença cordial e canônica, o compositor baiano continua a oferecer um itinerário de sabedoria e candura em suas canções, apesar de ter deixado uma herança difusa na música popular brasileira (o que certamente lhe agradaria).
.Em entrevista ao Terra Magazine, o ensaísta e letrista Francisco Bosco, autor do livro "Dorival Caymmi", avalia "a lição de perfeição e simplicidade na articulação entre letra e melodia" deixada pelo Buda Nagô.
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"No meu entender trata-se de um projeto de civilização - mestiço, alegre, erótico, com boa dose de ócio - de que o Brasil se afastou, em parte empurrado pelo capitalismo desenfreado em nível mundial", afirma.
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Francisco Bosco ressalta que o autor de "O mar" e "Dora" foi tão radical quanto o músico João Gilberto, um dos catalizadores da Bossa Nova. "Ainda que não pareça, Caymmi é tão radical quanto João: a perfeição da relação letra/melodia é o resultado de uma paradoxal ascese sem esforço. Um rigor assim tão relaxado tem muito a ver com o projeto da bossa nova".
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Em seu ensaio publicado em 2006, Bosco faz uma síntese do cancioneiro caymmiano: "Simples, coloquiais, apimentados, dengosos, rebolados, os sambas de Caymmi possuem aquela que talvez seja a virtude maior da canção popular: provocam a vontade de ouvi-los e reouvi-los, de decorá-los (o que se faz sem se dar conta) e cantá-los e cantá-los e cantá-los. São canções que parecem anônimas, parecem ter surgido espontaneamente das igrejas, dos sobrados, das ladeiras, do dendê, do vatapá, do requebrado das baianas".
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Leia a entrevista de Francisco Bosco, concedida por email.
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Se é difícil dizer de onde veio a música de Caymmi, como já falou Chico Buarque, é possível identificar as heranças deixadas por ele na música brasileira?
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Até onde posso ver, é claro que o impacto de Caymmi nos cancionistas foi profundo: suas novidades harmônicas, seu violão, digamos, tridimensional, e sobretudo a lição de perfeição e simplicidade na articulação entre letra e melodia são aspectos que se deixam notar na obra de muitos cancionistas seus herdeiros. Entretanto não vejo ninguém cuja obra resulte direta e primordialmente de Caymmi, no mesmo sentido em que se pode dizer, por exemplo, que um Jorge Vercilo resulta de Djavan.
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Em seu livro, você diz que a palavra "dengo" é definidora da representação feminina de Caymmi. Qual é o abismo que o separa do feminino da axé music? O axé não bebe numa fonte em comum, o samba do Recôncavo Baiano?
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O abismo, no fundo, é do mundo: o mundo perdeu a inocência.
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O antropólogo Antonio Risério situou a obra de Dorival Caymmi numa Bahia "pré-industrial". A urbanização feroz do Brasil, da Bahia, com o crescimento da violência, realçou ainda mais o poético nos sambas sacudidos e nas canções praieiras?
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Sim, Risério chega a dizer que, na época que ela surgiu, a obra de Caymmi apresentou como que uma Bahia utópica para o Brasil. Hoje ela revela uma Bahia utópica para os próprios baianos. No meu entender trata-se de um projeto de civilização - mestiço, alegre, erótico, com boa dose de ócio - de que o Brasil se afastou, em parte empurrado pelo capitalismo desenfreado em nível mundial.
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Como foi sua aproximação da obra de Caymmi?
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Num primeiro momento foi quando eu era bem criança, com uns cinco anos. Meu pai (o compositor João Bosco) colocava Caymmi para eu escutar e eu me lembro de pedir sempre para ele colocar de novo, e de novo, e de novo. Depois seria impossível dizer quando me aproximei, pois Caymmi é como a linguagem: algo que está aí desde sempre.
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O talento dele como intérprete das próprias canções não é pouco destacado?
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Não percebo isso. Concordo com Risério que não há nada melhor do que Caymmi par lui-même. Os sambas sacudidos e os sambas-canção ainda deixam-se interpretar bem por outros, mas quando se trata das praieiras... Acho que só o próprio mar poderia interpretar O mar melhor que Caymmi.
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Há uma leitura de que o Rio de Janeiro é quase que ausente no cancioneiro caymmiano. A fase do "samba-canção" contradiz essa leitura? Foi uma escolha consciente a de "desprezar" as belezas geográficas?
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Deleuze, o filósofo, diria que Caymmi canta um devir-Bahia, isto é, suas canções não recordam um lugar, mas materializam um bloco de sensações, de afetos, que presentificam uma Bahia. A Bahia está para Caymmi como Combray para Proust. Isso me parece o mais importante, e nada tem a ver com desprezar as belezas do Rio (que, depois, nos sambas-canção, como você sugere, ele chegaria a cantar). É que a fonte da obra dele é a Bahia.
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João Gilberto sempre se mostrou devedor a Caymmi, mas o que define essa proximidade? A concisão caymmiana é uma dessas influências?
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Sim, a concisão, a simplicidade, o tempero incomparável, e uma concepção radical da canção.
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Ainda que não pareça, Caymmi é tão radical quanto João: a perfeição da relação letra/melodia é o resultado de uma paradoxal ascese sem esforço. Um rigor assim tão relaxado tem muito a ver com o projeto da bossa nova.
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O que garante a permanência da música de Caymmi?
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O mesmo que garante a presença de todo artista num cânone: a diferença produzida por sua obra.
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Fonte: Terra Magazine
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"No meu entender trata-se de um projeto de civilização - mestiço, alegre, erótico, com boa dose de ócio - de que o Brasil se afastou, em parte empurrado pelo capitalismo desenfreado em nível mundial", afirma.
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Francisco Bosco ressalta que o autor de "O mar" e "Dora" foi tão radical quanto o músico João Gilberto, um dos catalizadores da Bossa Nova. "Ainda que não pareça, Caymmi é tão radical quanto João: a perfeição da relação letra/melodia é o resultado de uma paradoxal ascese sem esforço. Um rigor assim tão relaxado tem muito a ver com o projeto da bossa nova".
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Em seu ensaio publicado em 2006, Bosco faz uma síntese do cancioneiro caymmiano: "Simples, coloquiais, apimentados, dengosos, rebolados, os sambas de Caymmi possuem aquela que talvez seja a virtude maior da canção popular: provocam a vontade de ouvi-los e reouvi-los, de decorá-los (o que se faz sem se dar conta) e cantá-los e cantá-los e cantá-los. São canções que parecem anônimas, parecem ter surgido espontaneamente das igrejas, dos sobrados, das ladeiras, do dendê, do vatapá, do requebrado das baianas".
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Leia a entrevista de Francisco Bosco, concedida por email.
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Se é difícil dizer de onde veio a música de Caymmi, como já falou Chico Buarque, é possível identificar as heranças deixadas por ele na música brasileira?
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Até onde posso ver, é claro que o impacto de Caymmi nos cancionistas foi profundo: suas novidades harmônicas, seu violão, digamos, tridimensional, e sobretudo a lição de perfeição e simplicidade na articulação entre letra e melodia são aspectos que se deixam notar na obra de muitos cancionistas seus herdeiros. Entretanto não vejo ninguém cuja obra resulte direta e primordialmente de Caymmi, no mesmo sentido em que se pode dizer, por exemplo, que um Jorge Vercilo resulta de Djavan.
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Em seu livro, você diz que a palavra "dengo" é definidora da representação feminina de Caymmi. Qual é o abismo que o separa do feminino da axé music? O axé não bebe numa fonte em comum, o samba do Recôncavo Baiano?
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O abismo, no fundo, é do mundo: o mundo perdeu a inocência.
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O antropólogo Antonio Risério situou a obra de Dorival Caymmi numa Bahia "pré-industrial". A urbanização feroz do Brasil, da Bahia, com o crescimento da violência, realçou ainda mais o poético nos sambas sacudidos e nas canções praieiras?
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Sim, Risério chega a dizer que, na época que ela surgiu, a obra de Caymmi apresentou como que uma Bahia utópica para o Brasil. Hoje ela revela uma Bahia utópica para os próprios baianos. No meu entender trata-se de um projeto de civilização - mestiço, alegre, erótico, com boa dose de ócio - de que o Brasil se afastou, em parte empurrado pelo capitalismo desenfreado em nível mundial.
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Como foi sua aproximação da obra de Caymmi?
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Num primeiro momento foi quando eu era bem criança, com uns cinco anos. Meu pai (o compositor João Bosco) colocava Caymmi para eu escutar e eu me lembro de pedir sempre para ele colocar de novo, e de novo, e de novo. Depois seria impossível dizer quando me aproximei, pois Caymmi é como a linguagem: algo que está aí desde sempre.
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O talento dele como intérprete das próprias canções não é pouco destacado?
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Não percebo isso. Concordo com Risério que não há nada melhor do que Caymmi par lui-même. Os sambas sacudidos e os sambas-canção ainda deixam-se interpretar bem por outros, mas quando se trata das praieiras... Acho que só o próprio mar poderia interpretar O mar melhor que Caymmi.
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Há uma leitura de que o Rio de Janeiro é quase que ausente no cancioneiro caymmiano. A fase do "samba-canção" contradiz essa leitura? Foi uma escolha consciente a de "desprezar" as belezas geográficas?
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Deleuze, o filósofo, diria que Caymmi canta um devir-Bahia, isto é, suas canções não recordam um lugar, mas materializam um bloco de sensações, de afetos, que presentificam uma Bahia. A Bahia está para Caymmi como Combray para Proust. Isso me parece o mais importante, e nada tem a ver com desprezar as belezas do Rio (que, depois, nos sambas-canção, como você sugere, ele chegaria a cantar). É que a fonte da obra dele é a Bahia.
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João Gilberto sempre se mostrou devedor a Caymmi, mas o que define essa proximidade? A concisão caymmiana é uma dessas influências?
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Sim, a concisão, a simplicidade, o tempero incomparável, e uma concepção radical da canção.
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Ainda que não pareça, Caymmi é tão radical quanto João: a perfeição da relação letra/melodia é o resultado de uma paradoxal ascese sem esforço. Um rigor assim tão relaxado tem muito a ver com o projeto da bossa nova.
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O que garante a permanência da música de Caymmi?
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O mesmo que garante a presença de todo artista num cânone: a diferença produzida por sua obra.
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Fonte: Terra Magazine
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