Até 23 de novembro de 1970, Woodstockera como a Caixa de Pandora para um jovem que vivia em Porto Alegre e sentia o sangue ferver ao riff de uma guitarra. O que todos ouviram no festival realizado numa fazenda do interior do Estado de Nova York, ao longo de três dias de agosto de 1969, já era bem familiar – o impacto sonoro não tardou a fazer eco mundo afora na forma do triplo bolachão de vinil que rodava sem parar no toca-discos e de mão em mão na turma. Mas ninguém nessas bandas tinha noção do que realmente havia se passado no olho do furacão. .
Festival reuniu 500 mil pessoas
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Da grandiosidade do evento que reuniu meio milhão de pessoas numa celebração à música, à paz e ao amor – na ordem ao gosto do espectador –, se fazia ideia pela presença no palco de gigantes como Jimi Hendrix e The Who, por fotografias e reportagens que chegavam com o atraso típico da pré-história da globalização. A coisa toda só “bateu” mesmo quando Woodstock, o documentário lançado em março de 1970 nos EUA, estreou em quatro sessões diárias no Cine Premier, esquina da Borges de Medeiros com Demétrio Ribeiro – o velho Capitólio com o nome que ostentava à época. O 23 de novembro de 1970 caiu numa segunda-feira, dia de troca na programação.
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“Como estamos muito longe, você, eu, nós todos, desta experiência com a liberdade, prefiro falar pela voz dos outros”. Começava assim o comentário do arquiteto Cláudio Ferlauto nas páginas da seção de Variedades de Zero Hora, dias antes. Em seu texto, Ferlauto, que gostava de compartilhar sua boa informação com amigos jornalistas, compilava análises de publicações estrangeiras sobre a importância e o impacto de Woodstock, festival e filme, tanto na carreira dos artistas que subiram ao palco quanto na indústria de consumo que crescia mirando no público jovem. A liberdade referida por Ferlauto era algo intangível aos que viviam no Brasil sob garrote da ditadura militar, na fase mais violenta da repressão. Assistir a Woodstock naquele momento era como abrir a janela de um quarto escuro e vislumbrar um jardim ensolarado, no qual podia se deitar e rolar apenas em sonho. Ao longo de quase três horas, a sala do cinema se transformava em portal de acesso a outra dimensão – com entrada liberada aos maiores de 18 anos tão-somente. O desbunde se dava com a imagem em movimento do ídolo, com o ninguém é de ninguém do sexo livre, com os hippies pelados enrolando um baseado para relaxar ou a visão daqueles doidões viajando numa trip de ácido para lá de Marrakesh, sem passagem de volta garantida.
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— Até então não se tinha noção do tamanho e de todo o significado do festival — diz o músico e radialista Mutuca, menos conhecido por Carlos Eduardo Weyrauch, 63 anos.
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— Quando o filme chegou é que se viu Woodstock como algo gigantesca, que despertou na nossa geração a consciência de pertencer a uma tribo. Filosofia oriental, alimentação natural e ecologia são temas atuais fermentados em Woodstock. Foi algo único, que representou a ruptura entre gerações. Ocorreu sob circunstâncias que não se repetiriam mais.
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Polícia dos EUA era repressiva
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Woodstock, o festival, foi realizado em 15, 16 e 17 de agosto de 1969, entre à chegada do homem à Lua (20 de julho) e a tragédia de Altamont, o concerto organizado pelos Rolling Stones que afundou o alto astral bicho-grilo em violência e morte (6 de dezembro). Woodstock, o documentário, estreou na Capital um ano e três meses depois. O tricampeonato da Seleção no México (21 de junho) e a posse de Emílio Garrastazu Médici como o general da vez (30 de outubro) simbolizavam momentos de euforia e apreensão naquela mesma temporada.
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Em meio ao temor que inibia manifestações políticas, a tradição roqueira da cidade e a nascente cultura hippie se cruzavam em festivais musicais como os promovidos na Faculdade de Arquitetura da UFRGS. Protestar também era fazer barulho.
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— Era um contraste muito grande entre a liberdade que Woodstock representava e o que a gente vivia aqui, onde um cara podia apanhar na rua só por ser cabeludo — lembra Mutuca, um dos organizadores desses festivais que desafiavam a vigilância da censura.
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Quando o documentário chegou ao Cine Premier, o programa era mais um happening que sessão de cinema. A plateia vivia uma catarse com direito a gritos, aplausos e até uma arriscada fumacinha na sala:
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— Por muito anos Woodstock se tornou programa obrigatório para os jovens e um filme disputado pela salas alternativas, como o Bristol — lembra o crítico de cinema de ZH à época, Hiron Goidanich, 75, o Goida. — Quando estreou aqui, Jimi Hendrix e Janis Joplin recém tinham morrido, o que aumentou anda mais simbologia do filme.
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E numa daquelas ironias da História — que escancarava o contraponto entre a realidade daqui e das democracias um passo adiante após a efervescência cultural e política da virada da década —, Woodstock desembarcou na Capital ao lado de Médici, que chegava à cidade para comemorar a vitória governista da Arena no pleito de 15 de novembro.
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— Nessa época, reunir mais de cinco em um grupo era chamar confusão — diz o radialista Júlio Fürst, 60, que saiu da sessão de Woodstock inspirado para dar uma sacudida na cena cultural de Porto Alegre.
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O sucesso do filme ajudou Fürst a incrementar as vendas do LP com a trilha em sua loja de discos no Moinhos de Vento. Mas seu grande projeto se realizaria anos depois, em 1975, quando ele, já na linha de frente da rádio Continental, a voz do rock em Porto Alegre, conseguiu realizar a série de espetáculos coletivos Vivendo a Vida de Lee – que teve como ponto alto a reunião, em agosto daquele ano, de 18 bandas e mais de 5 mil pessoas num histórico espetáculo no Araújo Vianna.
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— Porto Alegre tinha uma tradição de festivais universitários. Mas, assim como em Woodstock, queríamos os músicos profissionais de destaque na cidade que representavam diferente gêneros — relembra Fürst.
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Quem viveu e sentiu Woodstock no epicentro da revolução pode não ter demorado tanto a sentir seu impacto, mas também não se deu conta no ato daquilo que estava presenciando. Paulo Roberto Marcolla Araújo, professor do departamento de Letras da Unisc, em Santa Cruz do Sul, estava lá. Aos 56 anos, ele relembra a aventura dos 16. Estudava em Nova York e, com um grupo de amigos, foi até Bethel em um dos dias do festival. A gurizada queria só ficar observando a agitação. Até ver um grupo passando por uma cerca derrubada.
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— Acabamos entrando e ficamos circulando lá dentro por algumas horas. Eu sabia que era um evento importante, mas não poderia imaginar ali a proporção que ganharia. O que se notava de forma mais evidente era o clima de protesto contra a Guerra de Vietnã.
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Araújo voltou para Rio Pardo em 1971, com um punhado de bons discos e boas histórias. Mudou-se para Porto Alegre, e o tempo maturou a experiência de ter visto a História acontecer de tão perto. Quando se fala da liberdade de expressão nos EUA em contraponto à repressão no Brasil, ele lembra que não era bem assim:
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— Lá a polícia também baixava o pau nos estudantes.
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A cada vez que aperta o play no DVD de Woodstock, lembranças de 40 anos atrás parecem forçar o olho de Araújo a procurar na multidão algum sinal daquele guri de Rio Pardo que por instantes fez parte do imenso sonho coletivo embalado por paz, amor e rock’n’roll.
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Fonte: Zero Hora
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in Vermalho - 1 DE AGOSTO DE 2009 - 12h19
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