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A segunda metade do século XX fica marcada por crescentes modificações na alimentação que tiveram lugar nos países ditos desenvolvidos e nos países em desenvolvimento. O desenvolvimento das populações e o aumento demográfico têm vindo a reforçar a demanda por alimento e, por conseguinte, têm conduzido a uma intensificação das actividades agrícolas e agropecuárias. Para além do crescimento populacional, da proliferação das novas tecnologias e do sistema económico liberalista vigente, as classes médias e classes baixas adquiriram um maior poder de compra, podendo assim investir em outras necessidades que não as necessidades básicas de subsistência. [1]
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As modificações das políticas económicas têm vindo a ter influências directas na qualidade nutritiva dos alimentos, tendo vindo a registar-se aumentos de alimentos pré-processados, aumentos de alimentos de origem animal e aumentos de alimentos com mais açúcar e gordura. Estas mudanças, acompanhadas pela redução da actividade física humana, têm originado significantes aumentos das taxas de doenças crónicas associadas à alimentação que incluem a obesidade, ataques cardíacos, diabetes, hipertensão e certos tipos de cancro. [2]
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Porque tem um peso fundamental na economia, o sector da agropecuária tem sido fortemente explorado. Nos Estados Unidos, um país seguido como modelo pelas suas políticas económicas e culturais, [3] a produção de carne aumentou significativamente entre 1950 e 2007, tendo vindo a estagnar o abate de animais em 9.5 mil milhões no ano de 2007 e 2008, o que se repercutiu nas práticas alimentares das populações.
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No entanto, não é unicamente a oferta da produção alimentar que determina os gostos e as escolhas gastronómicas dos consumidores. Na nossa sociedade faz parte do "senso comum" que a alimentação à base de carne de vaca, por exemplo, seja parte integrante da cadeia alimentar humana. Comer um bife de vaca é tão "natural" na nossa sociedade como comer um bife de cão é tão "natural" na China. Mas do ponto de vista dos ocidentais, esta ideia de comer animais domésticos, como o cão e o gato, com os quais (tradicionalmente) se criaram fortes laços afectivos, originam repulsa e, em muitos casos, a indignação, porque na nossa sociedade não se percepciona o cão como alimento, uma vez que é um animal convencionalmente doméstico. Por experiência empírica, ouve-se dizer, por parte de indivíduos que lidam com animais domésticos, que por vezes "só lhes falta falar" e que "têm sentimentos"; declarações que mostram o grau de relação que muitas pessoas têm com cães e gatos, o que pressupõe a existência de complexas afinidades. Já na China, cães e gatos são utilizados como alimento, o que sugere que muitos dos chineses não têm qualquer tipo de laços ou de afinidades com estes animais. Voltando às vacas, na Índia este é um animal sagrado que não está incluído nas práticas alimentares dos 1.100 milhões de habitantes. Enquanto espécies de indivíduos que habitam o planeta, há portanto uma verdadeira subordinação estrutural de todas as espécies de animais em relação à espécie humana, existindo nessa grande camada de milhares de espécies de animais umas mais subordinadas do que outras, umas mais exterminadas do que outras e algumas mais protegidas do que outras – variantes que se modificam consoante as regiões.
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A inclusão de carne na nossa alimentação é tão "natural" quanto a expectativa que se cria para que os homens sejam "naturalmente" masculinos e para que as mulheres sejam "naturalmente" femininas. Ou seja, a percepção que as sociedades têm em relação aos animais e sobre a sua inclusão, ou não inclusão, na alimentação não pode ser considerada meramente "natural", assim como não pode ser desassociada de um conjunto de convenções de códigos, crenças e práticas culturais.
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Só os humanos têm a capacidade de produzir e reproduzir valores culturais. A cultura «é o processo de produção de sentido que confere sentido não só à realidade ou natureza exterior, mas também ao sistema social de que ela faz parte e às identidades sociais e actividades diárias [como a alimentação] das pessoas pertencentes a esse sistema.» [5] As representações culturais produzem significados e enquanto discursos têm consequências porque regulam práticas sociais, condutas, estruturam identidades e definem a forma como se vêem e pensam as coisas. As representações culturais de animais só podem estar pré-dispostas sob o ponto de vista dos humanos, conferindo assim um papel determinante sobre as formas pelas quais os indivíduos humanos percepcionam os animais.
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A adaptação do comportamento do indivíduo em relação ao mercado alimentar equivale a uma adaptação do consumidor em relação ao produtor. O consumidor não se adapta em relação aos reais interesses (de ordem económica) do produtor, mas adapta-se a um conjunto de valores patenteados pelo sistema de representação cultural que estão ao serviço de quem tem a tutela da produção. O consumo de carne é, mais do que nunca, um consumo "naturalmente" cultural. E importa aos agentes produtores conservar a sua posição na estrutura económica, através da perpetuação do enraizamento destas convenções "naturais". Só através do incentivo ao consumo de animais de abate é que se podem consolidar e dogmatizar estes mecanismos "naturalmente" culturais. Daí o recurso à publicidade como um dos grandes motores das estruturas de produção. Para produzir capital económico é necessário que as estruturas de produção utilizem a estética como um instrumento ideológico a partir do qual se extraiam formas de percepção do produto, do sujeito e do mundo. A ideologia da indústria animal tem de ser sedutora e, portanto, a mística tem de ser bem composta para que durante o processo de significação de um anúncio de um produto de origem animal o sujeito se reconheça, ou seja, para que a partir de sistemas de sentido já existentes exista alguma forma de identificação entre o sujeito e o produto.
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Existem diversas formas de representar os animais da agropecuária, todas apresentam uma acção que se fecha com um happy end: os animais podem ser representados como estando sorridentes, como se insinuassem estar contentes por irem parar ao prato do consumidor; há ainda a tendência em representar o indivíduo humano consumidor como livre e consciente quando consome produtos de origem animal. Estas mensagens articulam tradicionalmente modos de relação entre géneros, amigos, família, classes sociais, situam o indivíduo em rituais sociais que legitimam o consumo de animais na alimentação. A construção de enredos que incidam sobre o consumo de animais é fundamental para instaurar uma identidade ao mercado, mas também para instaurar "identidade individual" e a auto-afirmação a um sujeito. A sedução de um anúncio vale-se pela utilização de mecanismos de associação do produto a estímulos de felicidade, ao status, a signos de prestígio (enraizados nos códigos da moda), com o fim de o sujeito criar prazer no reconhecimento em relação ao produto. Independentemente da forma como se representem os animais da agropecuária, a finalidade principal é associar a acção de consumo à acção de prazer, com o objectivo de viabilizar o consumo.
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Democratizou-se o consumo de animais mas, por outro lado, não se têm associado ao seu consumo todos os vestígios penosos que intermedeiam o processo que se inicia desde o seu nascimento até ao momento que se vêem no frigorífico do super-mercado as embalagens com alguns dos seus restos mortais. Por defeito, inerente à própria publicidade, há uma alienação do consumidor em relação à concepção destes produtos de origem animal, criados pela indústria agropecuária: não se dão a conhecer as motivações do produtor; não se dão a conhecer as consequências negativas do consumo de animais no organismo humano; não se dão a conhecer os reais processos de produção de animais (uso de ração, vacinação, adições químicas, etc.); não se fazem constar na publicidade quaisquer vestígios do sofrimento animal; não se quantificam nem se mencionam os impactos da indústria no meio ambiente.
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Os sistemas de representação cultural têm assim uma influência central nas práticas alimentares dos indivíduos humanos porque legitimam modos de socialização e posicionam o indivíduo de acordo com critérios e padrões. A cultura (dominante) torna-se então num exercício de «violência simbólica» [6] porque impõe significações como legítimas através do fundamento da sua própria força. É a universalização da ordem cultural (motivada pela economia) que a torna muito pouco mutável, fazendo com que pareça "natural", e assim comem-se determinados animais porque "faz parte da nossa cultura". Não tem sido a ética nem a sustentabilidade, mas sim a cultura que tem estipulado ao homem aquilo que na natureza é "comestível" e "não comestível".
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BAUDRILLARD, Jean; 1976; A Troca Simbólica e a Morte I ; Lisboa; Edições 70.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude; 1974; La Reproduction (Elements pour une théorie du système d´enseignement); Les Editions de Minuit.
Callinicos, Alex; " Introdução ao Capital de Karl Marx"; Revista Espaço Académico, Nº 38, s.p.,(Julho de 2004 – Mensal) ISSN 1519.6186.
FISK, John, 1990; Introdução ao Estudo da Comunicação – Porto, Edições Asa.
HARVEY, David; 2000; Condição Pós-Moderna; 9ª Ed.; S. Paulo, Edições Loyola.
Muñoz, Blanca; Sociologia de la Cultura de Masas; Universidad Carlos III, Madrid. s.p.
Reduzir o Consumo de Carne – Uma reforma Urgente docs.google.com
Livestocks Long Shadow (environmental issues and options) - http://www.fao.org/docrep/010/a0701e/a0701e00.HTM
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Notas
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1. cf. 34 Livestocks Long Shadow (environmental issues and options) http://www.fao.org/docrep/010/a0701e/a0701e00.HTM
2. Idem
3. A fast-food, ou a cultura do hamburger, é uma marca da globalização cultural da American way of life que tem vindo a fazer parte dos padrões de vida para as novas classes médias em países desenvolvidos e em desenvolvimento espalhados pelo planeta.
4. Fonte: http://www.hsus.org/farm/resources/pubs/stats_slaughter_totals.html
5. Fiske, 1990: 162, 163
6. cf. Bourdieu, Passeron; 1974: 18
[*] Activista. Investigador nas áreas da sociologia da cultura e da arte.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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