A morte de Augusto Boal virou notícia de destaque neste final de semana. Curiosamente, porém, o dramaturgo e diretor tinha sumido da imprensa brasileira nos últimos anos, como se nada andasse fazendo. Não foi sem algum susto que li a notícia de sua morte. Conversei com Boal há cerca de um mês, dias antes de sua partida para Paris, onde recebeu uma homenagem na Unesco. A despeito da doença, ele soava, ao telefone, cheio de vitalidade e planos. Reproduzo, a seguir, a reportagem que foi publicada na revista CartaCapital. Ao que me consta, foi a última longa entrevista concedida por ele.
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por Ana Paula Sousa
para o Terra Magazine
ATIVISTA TEATRAL
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Foi no Thèatre de Ville, em Paris, que Augusto Boal celebrou, na sexta-feira 27 de março, o Dia Mundial do Teatro. Homenageado pela Unesco, o diretor, dramaturgo e ensaísta brasileiro via o trabalho que realiza desde os anos 1960 ser mundialmente aplaudido.
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O Teatro do Oprimido, o método que Boal desenvolve desde os anos 1960, é tão conhecido quanto impalpável. Muita gente já ouviu falar dele. Mas o que é, de fato, esse teatro que se propõe a ser, a um só tempo, arte, ação social e movimento político?
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Boal, ex-integrante do Teatro de Arena e escritor incansável, diz, na entrevista a seguir, que se trata de uma ação capaz de transformar a sociedade e de fazer à estética dominante.
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Em poucas palavras, como o senhor definiria o Teatro do Oprimido?
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Boal: Defendemos que todos nós podemos fazer teatro, que todos podemos ser personagens, de fato, de nossas próprias vidas.
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Por que temos de seguir a estética determinada pela classe dominante? O Teatro do Oprimido traz consigo a estética do oprimido. Ou seja, queremos que as pessoas retomem suas próprias palavras, imagens e sons.
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Na prática, isso significa o que?
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Boal: Significa compreender que, hoje, todas as formas de expressão e comunicação estão nas mãos dos opressores.
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O que a televisão oferece é um crime estético. E ainda acham estranho que alguém saia matando 15 pessoas de uma só vez. O cérebro das pessoas está impregnado dessas imagens.
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As rádios também repetem o mesmo som o tempo todo. Sem falar no tecno, que desregula até marca-passo, e é pior que ouvir gente quebrando tijolo em construção.
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O que a gente quer, no Teatro do Oprimido, é lutar nesses três campos : palavra, imagem e som.
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Nos dê um exemplo desse trabalho. Como ele é feito, que resultados proporciona?
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Boal: O Teatro do Oprimido é seguido, por exemplo, pelo MST. Há uns 10 anos, eles fundaram um grupo e quase 30 camponeses vieram conhecer o nosso trabalho. Passamos pra eles tudo que podíamos.
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Eles não vieram para consumir uma técnica, mas para receber instrumentos que pudessem usar em suas terras. Essa é também a ideia do Teatro do Oprimido ponto-a-ponto, que difunde o trabalho pelo Brasil. Temos multiplicadores do que fazemos aqui no Rio de Janeiro. Estamos em 16 Estados.
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O que significa, para uma organização como o MST, ter grupos de teatro?
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Boal: Significa ter o direito de tratar de certos assuntos a partir da visão deles, expor uma visão dos acontecimentos que não é aquela dos jornais, que coloca o MST como um bando de brutamontes.
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O teatro permite que o pensamento que está por trás do movimento seja exposto, retrabalhado.
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Em linhas gerais, qual a sua avaliação do teatro brasileiro hoje?
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Boal: Existe um mundo de teatros no Brasil. Nunca vi um espetáculo no Amazonas ou no Pará, então não posso avaliar.
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O que posso dizer é que a Lei Rouanet assassinou a criatividade do teatro.
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Ao transferir do governo, que representa o povo, para as empresas a decisão de onde investir, a Lei substitui o pensamento criativo pelo publicitário. Essa lei tem que acabar.
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Muitos produtores dizem exatamente o oposto: se acabar a lei, acaba o teatro.
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Boal: Não é a verdade. Há muitos grupos produzindo por aí. Esse dinheiro da lei deveria ser transferido para um fundo.
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A verba do fundo seria distribuída de acordo com a avaliação de comissões constituídas pela sociedade. A Lei não incentiva companhias como a minha, ou as de Zé Celso (Martinez Corrêa), Antunes Filho, Aderbal (Freire Filho) ou grupos como o Tapa.
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Ela só funciona para projetos isolados, individualistas. Se eu depender do apoio de uma empresa de macarrão, como vou produzir uma peça como Ralé, de Gorki, que fala sobre a fome?
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Qual a sua avaliação do Ministério da Cultura?
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Boal: Desde que o Gilberto Gil assumiu, temos, pela primeira vez, um Ministério da Cultura. Antes, até houve pessoas interessantes na pasta, mas nunca um Ministério de fato.
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Também acho que, pela primeira vez, deixou-se de pensar em cultura apenas como erudição, no sentido dos grandes clássicos literários, dos grandes pintores. O governo indicou que o Brasil deveria se apropriar do que já existia, daquilo que o povo faz.
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A cultura não é apenas o que o povo consome, é também o que o povo produz. Os pontos de cultura são isso, eles apoiam o que já existia.
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O Teatro do Oprimido também foi beneficiado, não?
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Boal: Sim, e o Gil disse até que servimos de inspiração para os pontos de cultura. Mas também trabalhamos com outros Ministérios, como Educação e Saúde.
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Fizemos um trabalho em escolas de cinco cidades, nas proximidades do Rio, e vimos o poder de transformação que o teatro exerceu sobre os alunos.
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Nos dê um exemplo dessa transformação proporcionada pelo teatro.
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No caso dos hospitais psiquiátricos, há uma diminuição absurda no consumo de medicamentos. Trabalhamos com a saúde e não com a doença mental.
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Procuramos ativar a parte saudável do cérebro doente, estimulá-lo no que tem de vivo e criativo. Com isso, o teatro é capaz de devolver ao convívio social alguém que tinha se isolado. Nas comunidades carentes acontece o mesmo.
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Os programas populares da televisão são um massacre, impedem que as pessoas percebam o que está dentro delas. Elas apenas consomem o que lhes é imposto. O Teatro do Oprimido procura ajudá-las a encontrar seus próprios meios de expressão.
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Que episódios, nessas andanças, mostraram ao senhor o sentido do seu trabalho?
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Boal: Vários. Me lembro de um presídio, no interior de São Paulo, que funcionava como um leprosário. A população da cidade queria o isolamento total daqueles presos.
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Resolvemos fazer uma peça de teatro, com os presos, no meio de uma praça pública, e um morador era chamado para entrar em cena. Isso amenizou aquela relação conflituosa e violenta.
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Também de lembro de um preso, que era engraçado, e, numa cena, fez uma menina de 10 anos rir. A menina foi elogiá-lo. Ele se vira pra mim e diz: “É a primeira vez na minha vida que alguém me diz que eu sirvo para a alguma coisa”.
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O senhor receberá, na França, uma homenagem da Unesco. Aqui no Brasil o senhor se considera reconhecido?
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Boal: Sou reconhecido no meu trabalho, mas pela mídia, não. A imprensa só se interessaria pelo nosso grupo se formássemos três bailarinos que fossem dançar no Bolshoi.
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A mídia gosta de campeões. Campeão de Fórmula 1, filme campeão de bilheteria, qualquer coisa que chegue na frente, que represente a vitória. Mas o ser humano não é cavalo de corrida.
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Nos anos 1950, o senhor fez parte do Teatro de Arena, que teve grande projeção e, ao seguir o caminho do Teatro do Oprimido, mudou o rumo da sua carreira. Foi consciente essa escolha?
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Boal: Totalmente. A escolha individualista nunca esteve no meu horizonte.
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Quando era pequeno e trabalhava na padaria do meu pai, eu via aqueles operários que passavam o dia com um pão com manteiga e uma média e pensava: “Isso não pode continuar assim”. Eu acredito na solidariedade.
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Estou com 78 anos. Isso é muito tempo. Foi outro dia que nasci e não deu tempo de fazer nem metade do que eu queria.
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Mas, mesmo com todas as dificuldades, o Teatro do Oprimido me realizou.
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Cidadão não é aquele que vive em sociedade, cidadão é aquele que transforma. E acredito que o Teatro do Oprimido tenha deixado alguma coisa para o mundo.
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in Vermelho . 3 DE MAIO DE 2009 - 19h24
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