Discurso de Lula da Silva (excerto)

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segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Um dos melhores e um dos maiores de entre nós



Celestino de Castro, arquitecto (1920-2007)
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Um dos melhores e um dos maiores de entre nós
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Quando, em 1996, era inaugurada no Centro de Trabalho Vitória a única exposição retrospectiva da obra de Celestino de Castro realizada até hoje em Portugal, alguém afirmou: «Toda a gente sabe que Celestino de Castro é um homem excepcional. Nem toda a gente sabe que Celestino de Castro é um arquitecto excepcional.»

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Hoje, que deixámos de o ter entre nós, mais importante ainda é, para o próprio Partido, valorizar justamente a dimensão deste militante de exemplar firmeza, coragem e modéstia, a sua integridade, coerência e envergadura intelectual, o seu excepcional talento, o seu lugar muito destacado entre os grandes nomes da arquitectura em Portugal.
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Celestino Joaquim de Abreu Castro é uma das mais importantes figuras pioneiras do Movimento Moderno na arquitectura portuguesa. E esse facto ainda é mais assinalável se se tiver em conta que o número das suas obras construídas é relativamente reduzido e que se concentram em pouco mais de uma década (1948-1963) os projectos, ainda de juventude, que lhe garantem desde logo esse lugar hoje unanimemente reconhecido por críticos e historiadores.
A moradia na Rua Santos Pousada, no Porto (1948/1950) trabalho que apresentou para obtenção do diploma de arquitecto, constitui uma fulgurante primeira obra. Celestino de Castro irrompe na arquitectura portuguesa como uma personalidade inteiramente amadurecida e com a firmeza de convicção que será sempre o seu mais marcante traço individual.

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A moradia na Rua do Amial, no Porto (projecto de 1949, construção 1950/1952), é a sua obra seguinte. Se a anterior manifestara uma personalidade amadurecida, este projecto será ainda mais marcante. Sendo ambas obras que se inserem nos princípios do Movimento Moderno, elas manifestam uma inteligência arquitectónica inteiramente própria. Não se trata de seguir e de ilustrar um conjunto de princípios codificados (planta livre, fachada livre, janelas rasgadas na horizontal, cobertura em terraço ajardinado, cuidado estudo da insolação), mas de os utilizar para resolver um programa arquitectónico concreto num lugar específico, recorrendo a uma solução construtiva que combina a utilização arrojada de uma estrutura em betão armado com vernáculas paredes resistentes em alvenaria de blocos de granito (vernáculas, mas que Júlio Pomar na Rua do Amial pintará de azul cobalto, contrastando com laranja com que pinta os brise-soleil em betão). No espaço de dois anos, e com dois pequenos edifícios de habitação, Celestino de Castro abrira um horizonte novo à arquitectura portuguesa.

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Naturalmente que este horizonte não se abre apenas com estes dois edifícios. Celestino de Castro é um dos mais jovens membros de uma brilhante geração que integra figuras como Keil do Amaral, Viana de Lima, Lobão Vital, Januário Godinho, João Simões e posteriormente Costa Martins, Pires Martins, Vítor Palla, Matos Veloso, Bento de Almeida, Formosinho Sanches, Pedro Cid, João Abel Manta e vários outros, cujo papel é muito destacado não apenas enquanto projectistas de grande talento, mas enquanto homens de cultura, na sua maioria progressistas, intervenientes defensores e dinamizadores da aplicação no nosso país das concepções do Movimento Moderno, dos princípios racionais e progressistas da Carta de Atenas (cuja primeira tradução integral para português é feita por Celestino de Castro, juntamente com Francisco Castro Rodrigues), procurando trazer à arquitectura portuguesa uma radical renovação estética e ética.

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Uma geração que se bateu em defesa de uma arquitectura capaz de em simultâneo utilizar novos recursos técnicos e novos processos construtivos, proporcionar um quadro construído socialmente transformador e melhor, e incorporar valores longamente construídos pela genuína tradição vernácula e popular. A essa geração se deve muito do que existe de melhor na arquitectura e no urbanismo português do século XX.

Intensa actividade

Entre 1948 e 1963 Celestino de Castro tem uma intensa e diversificada actividade. Participa em concursos, em alguns dos quais é premiado. O projecto apresentado ao concurso Lusalite, aberto pela revista Arquitectura (não construído) é uma das suas obras mais notáveis. Trabalha vários estudos de escala urbanística (Avenida dos Estados Unidos, plano de conjunto e dos edifícios de habitação do lado sul, 1951/1952; Almada, trabalho no Gabinete de Urbanização, do qual resulta o desenho da avenida que ainda hoje é o grande elemento estruturante da cidade, 1958/1960; Lisboa, Plano Geral da Célula B de Olivais-Sul e acompanhamento das equipas de projecto dos edifícios, 1961/1962). Vários dos seus projectos são publicados na revista Arquitectura, que Vítor Palla recuperara e de que era director desde 1952. Publica artigos de opinião. É um importante dinamizador da sua organização de classe profissional, tendo tido um destacado papel no histórico Congresso de 1948 do Sindicato Nacional dos Arquitectos, que formula uma orientação social e esteticamente progressista e isola os defensores da retrógrada concepção de uma arquitectura de «feição nacional». Esse seu empenho associativo será retomado depois do 25 de Abril, com uma combativa intervenção nos processos de transformação do sindicato corporativo em associação de interesse público, sendo eleito para diversos órgãos do Sindicato Nacional dos Arquitectos e da Associação dos Arquitectos Portugueses que lhe sucedeu.

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Entre 1955 e 1961 participa no histórico «Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal», integrando a equipa do Algarve (Equipa n.º 6, Celestino de Castro, Pires Martins, Fernando Torres), recolhendo também material na Bacia do Sado com Huertas Lobo, e trabalhando na maquete do livro da 1.ª edição.

Militante exemplar

Toda esta notável actividade é interrompida em 1963. E a razão porque este jovem arquitecto, que se vinha afirmando como uma das mais destacadas, se não a mais destacada, figura da sua geração vê interrompida a sua carreira é merecedora de toda a admiração, não apenas pelo arquitecto, mas pelo homem corajoso e de carácter, pelo revolucionário: a carreira profissional de Celestino de Castro em Portugal é interrompida porque, em 1963, se vê na necessidade de passar à clandestinidade e depois, em 1965, a exilar-se, perseguido pelo regime fascista.

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Celestino de Castro é um militante comunista exemplar. Aderindo ao PCP em 1953 pela mão de José Dias Coelho, toda a sua vida é a trajectória de um percurso pessoal, profissional, ético, intelectual e político de admirável coerência, coragem e verticalidade. Celestino de Castro deve ser lembrado não apenas como um excepcional arquitecto, mas também como uma grande figura moral da resistência e do regime democrático, e da vida e história do PCP, ao qual dedicou todas as suas invulgares qualidades de inteligência e de carácter.

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É um dos mais activos participantes do movimento cultural progressista que consegue uma importante dinâmica, sobretudo a partir das estruturas do MUD, no período posterior ao final da II Guerra Mundial. Participa na organização e na dinamização e expõe trabalhos seus em todas as Exposições Gerais de Artes Plásticas entre 1946 e 1956.

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Exilado em Paris desde 1965, exerce a sua actividade profissional em colaboração com diversos colegas franceses: Lucien Billard, André Mahé, Lucien Laborie, e com Christian Langlois, no «Service des Batiments et Jardins du Sénat».

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Desempenha intensa actividade política e partidária, incluindo em tarefas de apoio à Direcção do Partido. Só volta a Portugal imediatamente a seguir ao 25 de Abril de 1974, no mesmo avião em que viaja Álvaro Cunhal. Regressará definitivamente em Setembro do mesmo ano.

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Retoma a sua actividade profissional, prossegue a sua empenhada intervenção cívica e política, a sua exemplar acção de militante comunista. Realiza importantes projectos, nomeadamente o Hospital Distrital de Guimarães e o Pavilhão de Consultas Externas do Hospital de Santo António no Porto. Trabalha no Gabinete de Projecto da Festa do Avante!, durante cerca de uma década a tempo inteiro. O visitante da Atalaia, hoje, poderá reconhecer uma parte desse imenso trabalho não assinado no progressivo ordenamento e infraestruturação geral do terreno, no desenho da praça central, no belo lago na zona da várzea, em muitos dos pequenos e grandes pormenores que tornam a Festa não apenas um magnífico e inesquecível encontro, mas um encontro que se realiza num cenário único que combina a beleza natural com uma inteligente intervenção humana.

Um justo reconhecimento

Em 1996 o Sector Intelectual da ORL do PCP realiza uma exposição retrospectiva da obra de Celestino de Castro. Do atelier que desde antes do exílio partilhou com Hernâni Gandra saem então pela primeira vez alguns dos mais notáveis projectos, construídos e não construídos, da arquitectura portuguesa do Século XX.

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Os longos anos de exílio e a própria modéstia de Celestino de Castro tinham gerado uma situação em que muito poucas pessoas, para além da sua geração e de alguns historiadores e investigadores, tinham a justa noção da importância da sua figura e da sua obra. Essa situação já se terá alterado de algum modo. O espólio do seu atelier, que Celestino de Castro doou ao Partido, está hoje à guarda da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, responsável pela sua guarda, estudo e preservação. Mas está longe ainda de ser atribuído a Celestino de Castro todo o reconhecimento que lhe é devido. Alguma da sua obra construída, nomeadamente a preciosa moradia na Rua do Amial, foi objecto de intervenções que a desfiguraram gravemente.

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Agora que deixámos de o ter entre nós, mais urgente e importante se torna dar toda a dimensão necessária ao justo reconhecimento do excepcional arquitecto e da excepcional figura intelectual, moral e cívica, da exemplar figura de militante comunista que foi Celestino de Castro, certamente um dos melhores e um dos maiores de entre nós.
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in Avante 2007.08.23.


Foto - [Celestino de Castro à conversa com Pitum Keil do Amaral, no Congresso dos Arquitectos em Almada (Novembro de 2006)] Sandra Ramos, in site da Ordem dos Arquitectos

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