Discurso de Lula da Silva (excerto)

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segunda-feira, 20 de julho de 2009

A poesia é traduzível?

ENSAIOS
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Segunda-feira, 20/7/2009
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Ivan Junqueira
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Gostaria de iniciar esta conferência com duas perguntas que me parecem cruciais: 1) em que consiste, exatamente, a arte de traduzir?; e 2) seria a poesia traduzível? Antes de respondê-las, porém, conviria tecer aqui umas tantas considerações que, de certa forma, já envolvem uma espécie de resposta. Os vocábulos "traduzir", "tradutor" e "tradução" têm sua origem no latim traducere ou transducere, ou traductio e traductor, que possuíam sentido diverso, mas continham a ideia fundamental de "fazer passar, pôr em outro lugar". Essas raízes são as mesmas que se encontram no francês, no espanhol e no italiano. Em nossa, língua, além dos termos "traduzir", "tradução" e "tradutor", encontramos ainda "trasladar", "transladador" e "trasladação", como está registrado na edição de 1813 do velho Dicionário Moraes, com o mesmo sentido e idêntica origem dos equivalentes em língua inglesa: transfero, transfers, transtuli e transfere. Tais vocábulos chegaram por intermédio do francês arcaico translater àquele idiota, no qual tinham o sentido de "conduzir, levar através de", ou seja, "transferir", que ainda hoje se emprega para designar a transferência de um bispo de seu bispado. E veja-se que translator, translatoris já existam em latim com a acepção de "aquele que leva para outro lugar". Apenas em alemão a origem não é latina, mas o significado fundamente é o mesmo: o prefixo über ("além, noutra parte") + setzen ("pôr, colocar").
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Como se pode ver, em todos esses casos o sentido capital é o de "transferir, transportar", isto é, "levar de um ponto para outro", e daí "passar de uma língua para outra", que é, ao fim de contas, "traduzir". Cabe agora dar uma resposta àquela primeira pergunta: em que consiste, exatamente, a arte de traduzir? Vou me valer neste passo das definições e conceitos que Abgar Renault, um de nossos mais notáveis tradutores de poesia, reuniu na "Introdução" que escreveu à sua obra Poesia: tradução e versão (Rio de Janeiro, Record, 1994). Vale a pena recordar que muitos desses conceitos e definições tratam de traduções literárias, algumas especificamente da tradução de poesia. E observe-se que alguns dos autores aqui citados emitem opiniões sobre o valor e a possibilidade, que chegam a negar, da tradução. Vejamos então que opiniões contraditórias são estas.
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Comecemos por Dante Alighieri: "Nada que seja harmonizado pelo vínculo das Musas pode ser passado do que lhe é próprio para outra língua sem destruir toda a sua doçura." Em seguida, Cervantes: "A tradução de uma língua para outra é como olhar pelo avesso de uma tapeçaria flamenga." Mais adiante, Samuel Johnson: "A poesia não pode ser traduzida. Um tradutor tem que ser como o autor do original: não lhe cabe superá-lo." Já Horácio nos diz: "Como bom tradutor, não traduzirás palavra por palavra." Em seu ceticismo, sentencia Wilhelm von Humboldt: "Toda tradução parece-me simplesmente uma tentativa de levar a cabo uma tarefa impossível." O poeta romântico inglês Shelley o endossa: "Transportar de uma língua para outra criações de um poeta equivale a lançar uma violeta num cadinho para descobrir o princípio formal de sua cor e de seu odor." Mas Goethe dele discorda quando afirma: "Diga-se o que quiser da inexatidão da tradução, ela continua sendo uma das ocupações mais importantes e dignas de todos os assuntos mundiais." Mais exigente, John Conington pondera: "Uma tradução deve esforçar-se não só por dizer o que disse o autor no original, mas também como o disse." Joseph Hilaire Belloc, por sua vez, aconselha: "Leia o original de modo cabal; transporte para a sua língua o efeito produzido em seu espírito; confira-o com o original para aproximar-se mais dele sem sacrificar sua pureza." E Croce, finalmente, observa: "Traduções não-estéticas são simples comentários. Há uma relativa possibilidade de traduções, não como reproduções, mas como produção de expressões similares. Uma boa tradução tem valor original como uma obra de arte."
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À parte o ceticismo de alguns e a boa vontade de outros, a primeira exigência que se deve fazer a um tradutor de poesia é a de que ele seja um poeta, pois somente assim poderá enfrentar os desafios técnicos específicos desse gênero literário, como os do ritmo, da estrutura sintático-verbal, dos esquemas métricos e rímicos, da linguagem metalógica, do jogo de imagens e metáforas e de todos os outros elementos que constituem a retórica poética. Isto não quer dizer, necessariamente, que a tradução de poesia seja mais difícil que a dos textos em prosa, que têm também sua especificidade e suas armadilhas próprias. Lembro aqui a dificuldade que devem ter enfrentado os tradutores de Joyce ou Guimarães Rosa, para ficar apenas com estes dois. Mas há uma outra exigência, e não menos crucial: a do duplo domínio do idioma para o qual se irá realizar a tradução e do idioma em que se encontra escrito o texto a ser traduzido. São as assim designadas, respectivamente, língua de chegada e língua de partida. Talvez o erro capital neste ponto seja o fato de que, de um modo geral, saber o tradutor o seu próprio idioma nacional é considerado com o devido apreço, muito embora seja verdade que a ninguém é concedido o miraculoso privilégio de bem conhecer uma língua estrangeira sem conhecer a sua própria. Aliás, pelas oportunidades e confrontos vocabulares e sintáticos que oferece, a tradução transforma-se num veículo de notável eficácia para o conhecimento da própria língua nacional. E aqui caberia relembrar o que disse Goethe sobre o assunto: "Wer nur eine Sprache Kennt, Kennt nichts. Eine Sprache ist ein neur Geist." Em bom português: "Quem sabe somente uma língua nada sabe. Uma língua é um novo espírito."
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Outra questão a ser abordada na tradução de poesia reside no fato de que, ao lidar com duas línguas, o tradutor está mais sujeito do que qualquer outro intelectual a contaminar-se e a contaminar o idioma para o qual está fazendo a tradução. Essa contaminação, ou estranhamento, pode ocorrer, sem dúvida, entre a língua do tradutor e qualquer outra com a qual esteja lidando, mas, nos tempos que correm, o idioma que envolve mais desafios é o inglês, por ser o veículo de expressão universal em razão de vários motivos, entre os quais o fato de ser a língua nacional de povos muito poderosos do ponto de vista cultural, literário, econômico, científico e tecnológico. Além de sua intrínseca e difusa polissemia, as palavras inglesas de origem latina enganam mais do que as outras exatamente por se assemelharem às da nossa língua procedentes da mesma fonte e que, em geral, não guardam nenhuma identidade de sentido entre si. São conhecidas com faux amis. Mas outra família muito numerosa de "falsos amigos" nada tem a ver com a língua latina: são apenas palavras que enganam amiúde por seu aspecto morfológico falsamente português.
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Problema também delicado na tradução de poesia é o da literalidade, que não deve ser confundida com aquilo que costumamos definir como tradução isotópica. Se partirmos do princípio de que não há ― e não pode haver ― traduções estritamente literais, pois não apenas a forma, mas também, e principalmente, o conteúdo são irredutíveis a um traslado literal para outra língua, concluiremos que toda tradução é uma busca de equivalências entre aquilo que escreveu o homo faber no original e aquilo que resgatou o homo ludens em sua tradução, ou seja, aquele que nos serve a poesia "alheia". A rigor e sem exagero, a tradução exige esforço mais extenso e intenso do que a criação propriamente dita, sobretudo quando se trata do traslado de textos poéticos, nos quais, além de todas as especificidades a que já aludimos, resta ainda ao tradutor o desafio de interpretar o pensamento do autor, sem falar nos problemas de atmosfera poética, que é necessário recriar em outra língua, e, intimamente vinculado a estes, o da escolha do vocabulário, pois há palavras que podem suscitar uma sugestão poética em determinada língua e em outra, não, caso se trate de uma tradução literal. É nesse resgate de equivalências que reside o mérito de qualquer tradução. E pode-se dizer até que a maior virtude de qualquer espécie de tradução é não dar nunca a impressão de que o foi.
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Há uma outra questão sobre a qual eu gostaria de me deter aqui. Trata-se do papel histórico exercido pela tradução em certas literaturas, em especial a nossa, já que o leitor brasileiro é essencialmente monoglota. A literatura alemã, por exemplo, não seria o que é sem o Homero de Voss ou o Shakespeare de Schlegel. As traduções de Sêneca e Lucano desempenharam um papel fundamental na formação das línguas poéticas inglesa e espanhola. E as traduções do grego, do alemão e do inglês, realizadas por Chukovski, são a base da moderna literatura russa, que deve muito, ainda, ao Shakespeare de Pasternak. Em nossos dias, poetas de todas as nações competiram em traduzir Le cimetière marin, de Valéry, e não foram poucos os que traduziram, inclusive em nosso país, a poesia completa de Baudelaire, Rimbaud, Verlaine, Leopardi, Eliot, Pound, Yeats, Montale, Ungaretti, Quasimodo, Saint-John Perse e Kaváfis, além de traduções ocasionais ou incompletas de vários outros poetas de língua estrangeira que compõem hoje o cânone da literatura ocidental. Entre nós, por exemplo, não se podem esquecer as monumentais traduções que se fizeram, durante as décadas de 1940 e 1950, de autores tão cruciais quanto Balzac, Proust, Virginia Woolf, Thomas Mann, Joyce, Fielding, Somerset Maugham, Dickens e tantos outros. Pode-se dizer assim que, no decurso dessas duas décadas, o grande volume de traduções dava consistência à vida literária e, além da receptividade no que toca aos livros brasileiros, assegurava a consolidação da indústria editorial. Sem essas traduções, assim como as que viriam depois, sobretudo a partir da década de 1980, o leitor brasileiro jamais poderia ter acesso aos clássicos da literatura ocidental.
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E aqui chegamos à segunda questão que propusemos no início desta palestra. Seria a poesia traduzível? Para Manuel Bandeira, segundo penso o maior tradutor de poesia entre nós, não. Mas sua resposta envolve uma irônica contradição, pois Bandeira traduziu poesia praticamente durante toda a vida, tendo vertido para o nosso idioma poetas de várias línguas. A poesia é intraduzível na medida em que, como sublinha Dante Milano, tradutor exemplar de Dante Alighieri, Baudelaire e Mallarmé, "a linguagem de um poeta não pode ser trasladada a um outro idioma; pode-se traduzir o que ele quis dizer, mas não o que ele disse". É claro que o que ele disse em sua língua irá perder-se na tradução para qualquer outra, o que estaria de acordo com um conceito do poeta inglês Robert Frost, segundo o qual a poesia "é tudo o que se perde na tradução". E com ele concordariam, entre outros, Voltaire, Heine, Auden e Kaváfis. Auden, por exemplo, distingue muito claramente entre os elementos traduzíveis e intraduzíveis em poesia. Para ele, traduzíveis seriam os símiles e as metáforas, porque derivam não de hábitos verbais locais, mas de experiências sensoriais comuns a todos os homens". E intraduzíveis haveriam de ser, por inseparáveis de sua expressão verbal, as associações de ideias que se estabelecem entre as palavras de som semelhante mas de significado diverso (homófonas) e, no caso dos poemas líricos, seu próprio sentido quando indissoluvelmente ligado "aos sons e valores rítmicos das palavras".
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Embora concorde com quase todas essas ponderações, e talvez com outras mais que porventura se façam, não consigo filiar-me àqueles que proclamam a sagrada intraduzibilidade dos textos poéticos. Penso até, servindo-me aqui de um paradoxo, que a poesia é traduzível justamente por não sê-lo. E sou de opinião que se poderá sempre traduzir, como quer Dante Milano, o que um poeta quis dizer. E o que significa isto? Significa, em termos genéricos, fazer com que ele consiga falar no idioma para o qual foi traduzido mediante uma trama de operações que privilegiem as correspondências sintático-verbais, que resgate a música das palavras e das ideias do autor traduzido e que, afinal, transmita a atmosfera e, mais do que isto, o espírito da obra que se trasladou para a língua. Os inimigos da tradução poética devem lembrar-se de que, diferentemente de um leitor que se põe a sonhar com o eventual sentido de uma palavra, o tradutor não opera no plano da ortonímia, e sim no da sinonímia, buscando menos a nomeação absoluta do que a nomeação aproximativa, razão pela qual o seu estatuto é, não o de criador, mas antes o de recriador. E a recriação ― ou transcrição, como pretendia Haroldo de Campos ― é a fórmula a que o linguista Roman Jakobson recorre para explicar o paradoxo da tradução poética, caracterizando-a nos termos de uma transposição interlingual, ou seja, de uma forma poética para outra. É nesse sentido de aproximação e de parentesco semântico-fonológico que deve presidir a operação de traduzir poesia.
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A tradução de poesia é também, sob certos aspectos, um proveitoso exercício de crítica paralela, pois a todo instante esse homo ludens em que consiste o tradutor ― ou o recriador, como aludimos há pouco - está diante do complexo e prismático problema da escolha, dessa escolha que se processa no plano do significado e do significante, o que envolve, como já se disse aqui, opções semânticas, fonéticas, morfológicas, sintáticas, prosódicas, rítmicas, métricas, rímicas, estróficas - enfim, um espectro ambíguo e infinito constituído pelas chamadas figuras de linguagem. E tudo isto se assemelha um pouco àquilo que poderíamos chamar de uma equação poética, o que nos lembra o paralelo proposto por Wittgenstein entre a tradução de poesia e a solução de problemas matemáticos. Diz ele: "Traduzir de uma língua para outra é uma tarefa matemática, e a tradução de um poema lírico, por exemplo, numa língua estrangeira, tem grande analogia com um problema matemático. Pode-se muito bem formular o problema de como traduzir (isto é, substituir) este jogo de palavras por um jogo de palavras equivalentes em outra língua, problema esse que poderá ser resolvido, embora não exista nenhum método sistemático de resolvê-lo." Como observa José Paulo Paes. um dos mais notáveis tradutores de poesia em nosso país, a "relevância desse símile para uma teoria da tradução de poesia está em que o conceito de equação envolve as noções complementares de equivalência e correlação de valores". Assim, "quando se concebe o poema como equação verbal, está-se apontando, creio eu, para uma correlação entre as semântica do significado e a semântica do significante cuja soma algébrica equivale à semântica global de todo o poema".
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Numa sociedade como a nossa, onde existem hoje apenas 12% de pessoas letradas, é preciso que se acredite no êxito da tradução poética, mesmo sabendo que ela não passa de uma operação de tangenciamento, pois será desse êxito que irá depender o conhecimento dos clássicos por parte do grande público, o qual, em sua esmagadora maioria, domina apenas - e precariamente - a sua própria língua. É preciso recorrer um pouco àquele conceito coleridgiano da suspension of disbelief, ou seja, abolir a descrença na impossibilidade de que a poesia possa ver venturosamente traduzida. Claro está que determinadas experiências de poetas que escreveram em outras línguas não podem ser reproduzidas no idioma de chegada. Os Four Quartets, de T.S. Eliot, por exemplo, são inspirados por experiências místicas cuja raiz o poeta acreditava ter descoberto em recordações ancestrais de sua raça inglesa. E experiências como estas não se podem repetir em nós, que pertencemos a outra língua e a outra cultura. São elas a rigor inimitáveis, e um homem de outra estirpe, de outros antecedentes históricos e de outras experiências pessoais não poderia chegar a fabricá-las, nem para si nem para os outros. Mas é aqui que intervém aquele homo ludens a que já nos referimos, e o ludus que ele pratica é o elemento de livre-arbítrio na poesia. Ludens, o poeta, nos impõe a sua poesia; ludens, o tradutor, nos impõe poesia alheia. E é esse alheio, carregado de estranhamento e de equivalências, que nos fará reviver em nossa língua boa parte daquilo que alguém nos quis dizer em outra.
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Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 7 de outubro de 2006. Integra o livro Cinzas do espólio (Record, 2009, 336 págs.), de Ivan Junqueira.
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in Digestivo Cultural
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