Gracias a Mercedes Sosa
José Carlos Ruy *Os traalhadores perdem a voz que cantava a confiança na luta e o otimismo no futuro.
Ouvi Mercedes Sosa pela primeira vez no início da década de 1970. Em 1969, um grupo de secundaristas de São Bernardo do Campo, do qual fazia parte, criou o Centro Cultural Guimarães Rosa. Era um verdadeiro biombo para a discussão cultural e política naquele período de ditadura pesada. Um dia, aí por 1972-1973, nos momentos de espera de uma apresentação do grupo de teatro do Centro Cultural, ouvi a voz maravilhosa de uma cantora que não conhecia, cujo canto tinha versos que despertaram meu interesse em saber quem era.Era ela – Mercedes Sosa. Em minha memória, virou um signo dos anos de resistência, com canções que encarei como verdadeiros hinos de confiança na luta dos trabalhadores, uma afirmação, com sonoridade cristalina, de que as profundas dificuldades daqueles anos seriam vencidas.
Era a voz de um otimismo popular, proletário, que agradecia à vida que me há dado tanto. Vida que deu “Os dois materiais que formam meu canto / e o canto de vocês que é o mesmo canto / e o canto de todos que é meu próprio canto”. São versos da chilena Violeta Parra que exprimem um sentimento de unidade contra a ditadura e de confiança no futuro. Eles foram espalhados por todos os lados pela voz de La Negra.
Era, claramente, uma cantora com posição política – e somente muito mais tarde soube que era comunista, filiada ao Partido Comunista da Argentina e militante da resistência popular desde muito jovem.
Naquela época, eu não sabia isso, mas desconfiava. Como não pensar na opção socialista e revolucionária depois de ouvir Volver a los 17, também de Violeta Parra e cantada por Mercedes Sosa? Uma leitura superficial sugere a volta à juventude. Mas sempre imaginei que a canção aludia também a outro 17, ao ativismo e iniciativa popular da Revolução Russa, um instante fecundo. Indicação do caminho da mudança em busca de um mundo melhor.
Acho que tinha razão ao interpretar assim aquelas palavras. Afinal, a própria Mercedes proclamou isso em Todo cambia (Tudo Muda). “Muda o superficial / muda também o profundo / Muda o modo de pensar / muda tudo neste mundo”. Mas há coisas que não mudam, como a lembrança, “nem a dor / de meu povo e de minha gente”. Mas “o que mudou ontem / terá que mudar amanhã / assim como mudo eu / nesta terra estranha”.
Além disso lembrou também em várias canções que a mudança tem um personagem, um protagonista. Como em Te recuerdo Amanda, em cursos versos Mercedes fala do amor e da luta dos trabalhadores e do pesado preço pago pela ousadia de lutar pela liberdade. “Lembro de você, Amanda / a rua molhada / correndo para a fábrica / onde trabalha Manuel”.
Ia sorridente, para um encontro fugaz durante um breve intervalo na jornada diária. “A vida é eterna / em cinco minutos”, que terminam ao som da sirene que chama de volta ao trabalho. Mas Manuel “partiu para a serra”, onde “caiu destroçado”. E quando a sirene chama “de volta ao trabalho / muitos não voltaram / entre eles Manuel”.
Os povos das Américas perderam sua cantora no último domingo (dia 4), quando Mercedes Sosa deixou de viver. Os trabalhadores do mundo perderam uma voz que chamava para a luta mas também para a reflexão, para o afeto. Que olhava e cantava o belo, que persiste apesar dos males e das dificuldades. Olhando o futuro que nasce na luta diária. Gracia a la vida, Gracias a Mercedes!
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