Quarta-Feira, 14 Julho 2010
Estado Novo
São José Almeida abriu o armário dos homossexuais na ditadura
07.07.2010 - Raquel Ribeiro
"Os Homossexuais no Estado Novo" traça a homossexualidade (masculina e feminina) durante o Estado Novo, reescrevendo a história século XX português
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Na apresentação do livro "Os Homossexuais no Estado Novo", de São José Almeida (ed. Sextante), há um mês, no Porto, a poeta e professora universitária Ana Luísa Amaral começava por questionar, citando Judith Butler (uma das mais proeminentes investigadoras americanas em estudos "queer" e activista de direitos LGBT), qual a necessidade de se falar em direitos dos homossexuais quando a Palestina ainda estava sob domínio israelita. Resposta de Butler: "Tudo tem a ver com a violência, por isso é impossível estabelecer prioridades."
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Ao Ípsilon, Ana Luísa Amaral completou esta ideia, explicando, a propósito do livro da jornalista do PÚBLICO São José Almeida, que "a forma mais conservadora de dar prioridade a determinados assuntos é dizer que assuntos políticos, como a crise económica, são mais importantes". "Não me parece: todos eles exibem violência. Uma sociedade que resolve as suas crises económicas, mas não resolve as suas crises sociais e de identidade, é uma sociedade injusta também." Nesse sentido, continua Amaral, "Os Homossexuais no Estado Novo" é um livro "completamente político, porque os assuntos de visibilidade são sempre políticos, digam respeito aos sem-abrigo, aos homossexuais ou às mulheres".
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Esta obra começou por ser uma investigação jornalística de São José Almeida sobre como viviam os homossexuais durante o Estado Novo, publicada na revista "Pública" no Verão de 2009. A autora explica na introdução que a investigação não parou aí, ainda que este seja um princípio, "um livro inacabado", ou até uma porta que se abre para um caminho que a sociedade portuguesa deverá percorrer de forma a "revisitar a história", e "se reencontrar consigo mesma". É altura, escreve, "de Portugal começar a ajustar contas com a História".
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Uma história de Portugal
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São José Almeida colige uma pesquisa totalmente original reunindo uma série de vozes de especialistas portugueses e estrangeiros, de testemunhos pessoais, de investigações, mas também recorrendo a um enquadramento teórico, científico e jurídico das problemáticas envolvendo a homossexualidade no século XX português. António Fernando Cascais, professor na Universidade Nova de Lisboa e especialista em história da homossexualidade em Portugal , é uma das fontes fundamentais usadas pela jornalista para compor a história dos homossexuais durante a ditadura. Ao Ípsilon afirma que esta investigação "é uma incursão num terreno que não estava pura e simplesmente desbravado".
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Almeida traça a história da homossexualidade em Portugal entre 1912 (ano da Lei sobre a Mendicidade) e 1982, quando entra em vigor o novo Código Penal (de que foram eliminados os artigos 70º e 71º, referentes àqueles que "se entreguem habitualmente à pratica de vícios contra a natureza"). A autora mostra como a homossexualidade é a "sexualidade transgressora numa sociedade patriarcal", sublinhando dois eixos no contexto português: um referente à "diferença de classe social, a diversidade de tratamento para quem é das elites e das aristocracias do regime e para quem é do povo"; e outro relacionado com os não-ditos, os silenciamentos, a "inexistência de uma identidade" que permita uma noção de comunidade, "partilha de grupo", comum durante estes anos. Ouvindo um número considerável de testemunhas que contam, em primeira mão, as suas experiências vividas sob a ditadura, São José Almeida demonstra os dois pesos e as duas medidas do regime relativamente aos homossexuais (das elites e das classes baixas), tendo em conta como a "repressão e a exclusão social a que estavam votados no Estado Novo levavam a que a sua vivência - em que a sexualidade ocupa um lugar central, como em todas as pessoas - fosse relegada para uma semi-clandestinidade, uma espécie de submundo, muitas vezes identificados como os 'bas-fonds' e o crime".
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Este trabalho mostra, assim, como a história dos homossexuais no Estado Novo é, no fundo, coincidente com a história do próprio país durante esse período e da resistência ao regime. "Evidentemente que os homossexuais, enquanto grupo, nunca é apenas aquilo que é: é aquilo que é mais o que lhe acontece. É uma história do país durante esse período, uma história do regime e das suas características", explica Cascais.
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Ana Luísa Amaral diz que a obra "dá voz às vozes que estiveram em silêncio durante esse período", e são os testemunhos que a professora diz poderem vir a ser úteis nas suas aulas de Introdução aos Estudos Feministas, na Universidade do Porto, por exemplo: "Alguns testemunhos são muito importantes, pungentes, até. Esta disciplina pode sensibilizar os alunos para questões sobre o outro, aprender a ver o outro como um semelhante. Quem está ali podia ser eu. Mas [os testemunhos] também [servem] para os alunos se chocarem e se sensibilizarem com a estupidez da violência pela qual estas pessoas tiveram de passar." A noção de testemunho é sublinhada por Cascais que diz que "Os Homossexuais no Estado Novo" é, em termos metodológicos, "uma história oral, na primeira pessoa". Mas há uma "relevância histórico-política" que tem que ver com a "dar voz a quem não a tinha, reescrever a história noutros termos que não nos existentes: os do silenciamento, do enviesamento, dando rosto a estereótipos, humanizando-os."
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Poetas e escritores, pioneiros
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Salientando sempre a diferença de classes que se estabelecia na "comunidade" homossexual em Portugal (entre aspas porque, precisamente, essa comunidade não existia enquanto tal), a autora recorre a exemplos das artes e da literatura que, até certo ponto, foram pioneiros de uma forma de sentir a sexualidade durante a ditadura (António Botto, Eugénio de Andrade, Mário de Cesariny, Natália Correia, João Villaret, entre muitos outros). Essa é também a leitura de Eduardo Pitta no livro "Fractura - A condição homossexual na literatura portuguesa contemporânea" (2003), onde textos de autores portugueses são analisados segundo uma perspectiva "gay" ou "queer".
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Nos anos 20, "uma nova ordem se anuncia", com a censura dos livros e posterior ostracização dos poetas Judith Teixeira, Raul Leal e António Botto. Botto foi saneado e exilou-se no Brasil no final dos anos 40. Citando Cascais, a autora escreve: "A partir daí, a homossexualidade exprime-se na literatura de forma cifrada, críptica. [...] Ninguém queria ter a sorte de Botto e de Teixeira, o próprio Eugénio de Andrade disse que não queria pagar em vida o que Botto pagou." Só mais tarde, na geração dos surrealistas com Cesariny (o "único homossexual português?", pergunta ironicamente Almeida), com Natália Correia e Ary dos Santos haveria uma maior abertura (social e até política) relativamente à homossexualidade.
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A referência a figuras de proa da literatura portuguesa pode ser polémica, nomeadamente no que diz respeito ao caso Jorge de Sena, já falecido, mas cuja família está ainda hoje viva. Ana Luísa Amaral diz que o livro de Almeida levanta a questão dos limites entre o público e o privado de "forma interessante": até que ponto, pergunta Amaral, "é que se deve questionar a eventual homossexualidade de Jorge de Sena partindo ou de entrevistas, ou do texto do autor? É complexo e polémico. Essa questão é saudável porque pode levantar um debate interessante sobre a crítica literária em Portugal."
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O "caso" Sena diz respeito à suposta homossexualidade do autor de "Sinais de Fogo", ainda hoje tido por vários especialistas como um dos romances pioneiros da literatura "queer" em Portugal. Citando Fernando Dacosta, a autora escreve: "[Sena] casou. Fazia, praticamente, um filho por ano, o que é uma atitude muito normal nos homossexuais. Conheci-o". Dacosta conta (corroborado por Eduardo Pitta) que Sena foi expulso da Marinha por ter sido apanhado com um rapaz. O conto de Sena, "Grã-Canária", incluído em "As Andanças do Demónio" é, "nesse sentido, autobiográfico", conta Pitta à autora. São José Almeida explica como a polémica estalou em 1982 quando o "Expresso" apresentou um trabalho de Arnaldo Saraiva sobre a homossexualidade em Jorge de Sena. Grupos de intelectuais escreveram cartas inflamadas (e indignadas) sobre o assunto. Para a autora, o "caso" Sena é, por isso, exemplar de toda a sua investigação: "Pela forma como tem sido interpretado e pelas polémicas que tem gerado, [Sena] é demonstrativo de como os passos para identificar as referências que permitam a construção de uma identidade 'gay' em Portugal são, muitas vezes, impossíveis de dar até muito tarde no século XX português".
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Mulheres e linguagem
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Além da história oral, o enquadramento científico e jurídico do homossexual é uma das mais-valias do livro de Almeida. Com base nas teorias de Egas Moniz e Asdrúbal António de Aguiar, da década de 20 do século passado, a autora explica que a homossexualidade era "vista como doença, que pode e deve ser tratada, e como perversão, que tem de ser corrigida, a bem da nova ordem social burguesa". Essa percepção (e as categorias desenvolvidas a partir desta) dominou o discurso oficial na ditadura.
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Para Ana Luísa Amaral, este enquadramento é uma primeira contribuição para a criação de "um léxico inclusivo para a cidadania". Isto quer dizer que "designações, categorias, o próprio conceito de homossexual e a sua naturalização, conceitos que dizem respeito às sexualidades, tornam-se abertos a toda a sociedade". O livro mostra, portanto, "como se esboroaram essas categorias e é um novo léxico que se vai construir". Cascais concorda: "Normalmente, os homossexuais não têm história, têm uma tipologia de doença, têm uma patologia." Com este livro, "isto está desfeito. A outra coisa que está desfeita é o preconceito histórico de que uma história dos homossexuais diz apenas respeito aos homossexuais, é uma micro-história ou a história de uma minoria. Ora, não há histórias só de minorias, porque as minorias nunca estão isoladas."
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Anna Klobucka, investigadora de Estudos Portugueses na Universidade de Massachusetts-Dartmouth, nos Estados Unidos, tem-se debruçado sobre questões de género e teorias feminista e "queer" na literatura portuguesa. "Do meu ponto de vista, que é também o da minha agenda de pesquisa e daquilo que me interessa pessoalmente, o que me parece mais útil e original [neste livro] é que permite desenvolver uma perspectiva de análise muito mais bem informada sobre o que se poderia chamar, segundo o livro de Eve Sedgwick, a 'epistemologia do armário português'." A ideia de "armário" (ou neste caso da sua "abertura", com o livro de Almeida) é, diz Klobucka, "um fenómeno universal no ocidente" que tem a ver com a relação que a homossexualidade estabelece com o (in)cumprimento "das regras em vários contextos culturais". Mas há diferenças entre países e épocas: "Usar fontes que se baseiam na realidade dos EUA ou da Inglaterra, ou mesmo de Espanha, para pensar e analisar o caso português é deslocado." O contexto português "é bastante distinto de outros que tenho estudado em obras teóricas e isso é muito precioso".
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O "armário" aqui aberto está na voz dos testemunhos, mas também no facto de Almeida tentar estabelecer sempre uma certa paridade entre a homossexualidade feminina e masculina. A autora escreve que, na história, a "mulher surge sempre como segunda figura", e a "concepção do lesbianismo" é decalcada da dos homens. Nesse sentido, tanto para Klobucka como para Ana Luísa Amaral o capítulo dedicado ao lesbianismo, "Mas isso existe?", é relevante. Klobucka afirma que a autora "faz muito com o pouco material que tem", dando máxima "inclusividade à esfera do lesbianismo que é particularmente invisível e usualmente mal documentada por comparação à homossexualidade masculina na cultura portuguesa". Klobucka acrescenta ainda que "a situação das mulheres portuguesas durante o Estado Novo era muito diferente do estatuto social dos homens e naturalmente a questão homossexual também tem de ser construída de uma forma diferente".
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Na apresentação do livro "Os Homossexuais no Estado Novo", de São José Almeida (ed. Sextante), há um mês, no Porto, a poeta e professora universitária Ana Luísa Amaral começava por questionar, citando Judith Butler (uma das mais proeminentes investigadoras americanas em estudos "queer" e activista de direitos LGBT), qual a necessidade de se falar em direitos dos homossexuais quando a Palestina ainda estava sob domínio israelita. Resposta de Butler: "Tudo tem a ver com a violência, por isso é impossível estabelecer prioridades."
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Ao Ípsilon, Ana Luísa Amaral completou esta ideia, explicando, a propósito do livro da jornalista do PÚBLICO São José Almeida, que "a forma mais conservadora de dar prioridade a determinados assuntos é dizer que assuntos políticos, como a crise económica, são mais importantes". "Não me parece: todos eles exibem violência. Uma sociedade que resolve as suas crises económicas, mas não resolve as suas crises sociais e de identidade, é uma sociedade injusta também." Nesse sentido, continua Amaral, "Os Homossexuais no Estado Novo" é um livro "completamente político, porque os assuntos de visibilidade são sempre políticos, digam respeito aos sem-abrigo, aos homossexuais ou às mulheres".
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Esta obra começou por ser uma investigação jornalística de São José Almeida sobre como viviam os homossexuais durante o Estado Novo, publicada na revista "Pública" no Verão de 2009. A autora explica na introdução que a investigação não parou aí, ainda que este seja um princípio, "um livro inacabado", ou até uma porta que se abre para um caminho que a sociedade portuguesa deverá percorrer de forma a "revisitar a história", e "se reencontrar consigo mesma". É altura, escreve, "de Portugal começar a ajustar contas com a História".
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Uma história de Portugal
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São José Almeida colige uma pesquisa totalmente original reunindo uma série de vozes de especialistas portugueses e estrangeiros, de testemunhos pessoais, de investigações, mas também recorrendo a um enquadramento teórico, científico e jurídico das problemáticas envolvendo a homossexualidade no século XX português. António Fernando Cascais, professor na Universidade Nova de Lisboa e especialista em história da homossexualidade em Portugal , é uma das fontes fundamentais usadas pela jornalista para compor a história dos homossexuais durante a ditadura. Ao Ípsilon afirma que esta investigação "é uma incursão num terreno que não estava pura e simplesmente desbravado".
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Almeida traça a história da homossexualidade em Portugal entre 1912 (ano da Lei sobre a Mendicidade) e 1982, quando entra em vigor o novo Código Penal (de que foram eliminados os artigos 70º e 71º, referentes àqueles que "se entreguem habitualmente à pratica de vícios contra a natureza"). A autora mostra como a homossexualidade é a "sexualidade transgressora numa sociedade patriarcal", sublinhando dois eixos no contexto português: um referente à "diferença de classe social, a diversidade de tratamento para quem é das elites e das aristocracias do regime e para quem é do povo"; e outro relacionado com os não-ditos, os silenciamentos, a "inexistência de uma identidade" que permita uma noção de comunidade, "partilha de grupo", comum durante estes anos. Ouvindo um número considerável de testemunhas que contam, em primeira mão, as suas experiências vividas sob a ditadura, São José Almeida demonstra os dois pesos e as duas medidas do regime relativamente aos homossexuais (das elites e das classes baixas), tendo em conta como a "repressão e a exclusão social a que estavam votados no Estado Novo levavam a que a sua vivência - em que a sexualidade ocupa um lugar central, como em todas as pessoas - fosse relegada para uma semi-clandestinidade, uma espécie de submundo, muitas vezes identificados como os 'bas-fonds' e o crime".
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Este trabalho mostra, assim, como a história dos homossexuais no Estado Novo é, no fundo, coincidente com a história do próprio país durante esse período e da resistência ao regime. "Evidentemente que os homossexuais, enquanto grupo, nunca é apenas aquilo que é: é aquilo que é mais o que lhe acontece. É uma história do país durante esse período, uma história do regime e das suas características", explica Cascais.
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Ana Luísa Amaral diz que a obra "dá voz às vozes que estiveram em silêncio durante esse período", e são os testemunhos que a professora diz poderem vir a ser úteis nas suas aulas de Introdução aos Estudos Feministas, na Universidade do Porto, por exemplo: "Alguns testemunhos são muito importantes, pungentes, até. Esta disciplina pode sensibilizar os alunos para questões sobre o outro, aprender a ver o outro como um semelhante. Quem está ali podia ser eu. Mas [os testemunhos] também [servem] para os alunos se chocarem e se sensibilizarem com a estupidez da violência pela qual estas pessoas tiveram de passar." A noção de testemunho é sublinhada por Cascais que diz que "Os Homossexuais no Estado Novo" é, em termos metodológicos, "uma história oral, na primeira pessoa". Mas há uma "relevância histórico-política" que tem que ver com a "dar voz a quem não a tinha, reescrever a história noutros termos que não nos existentes: os do silenciamento, do enviesamento, dando rosto a estereótipos, humanizando-os."
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Poetas e escritores, pioneiros
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Salientando sempre a diferença de classes que se estabelecia na "comunidade" homossexual em Portugal (entre aspas porque, precisamente, essa comunidade não existia enquanto tal), a autora recorre a exemplos das artes e da literatura que, até certo ponto, foram pioneiros de uma forma de sentir a sexualidade durante a ditadura (António Botto, Eugénio de Andrade, Mário de Cesariny, Natália Correia, João Villaret, entre muitos outros). Essa é também a leitura de Eduardo Pitta no livro "Fractura - A condição homossexual na literatura portuguesa contemporânea" (2003), onde textos de autores portugueses são analisados segundo uma perspectiva "gay" ou "queer".
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Nos anos 20, "uma nova ordem se anuncia", com a censura dos livros e posterior ostracização dos poetas Judith Teixeira, Raul Leal e António Botto. Botto foi saneado e exilou-se no Brasil no final dos anos 40. Citando Cascais, a autora escreve: "A partir daí, a homossexualidade exprime-se na literatura de forma cifrada, críptica. [...] Ninguém queria ter a sorte de Botto e de Teixeira, o próprio Eugénio de Andrade disse que não queria pagar em vida o que Botto pagou." Só mais tarde, na geração dos surrealistas com Cesariny (o "único homossexual português?", pergunta ironicamente Almeida), com Natália Correia e Ary dos Santos haveria uma maior abertura (social e até política) relativamente à homossexualidade.
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A referência a figuras de proa da literatura portuguesa pode ser polémica, nomeadamente no que diz respeito ao caso Jorge de Sena, já falecido, mas cuja família está ainda hoje viva. Ana Luísa Amaral diz que o livro de Almeida levanta a questão dos limites entre o público e o privado de "forma interessante": até que ponto, pergunta Amaral, "é que se deve questionar a eventual homossexualidade de Jorge de Sena partindo ou de entrevistas, ou do texto do autor? É complexo e polémico. Essa questão é saudável porque pode levantar um debate interessante sobre a crítica literária em Portugal."
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O "caso" Sena diz respeito à suposta homossexualidade do autor de "Sinais de Fogo", ainda hoje tido por vários especialistas como um dos romances pioneiros da literatura "queer" em Portugal. Citando Fernando Dacosta, a autora escreve: "[Sena] casou. Fazia, praticamente, um filho por ano, o que é uma atitude muito normal nos homossexuais. Conheci-o". Dacosta conta (corroborado por Eduardo Pitta) que Sena foi expulso da Marinha por ter sido apanhado com um rapaz. O conto de Sena, "Grã-Canária", incluído em "As Andanças do Demónio" é, "nesse sentido, autobiográfico", conta Pitta à autora. São José Almeida explica como a polémica estalou em 1982 quando o "Expresso" apresentou um trabalho de Arnaldo Saraiva sobre a homossexualidade em Jorge de Sena. Grupos de intelectuais escreveram cartas inflamadas (e indignadas) sobre o assunto. Para a autora, o "caso" Sena é, por isso, exemplar de toda a sua investigação: "Pela forma como tem sido interpretado e pelas polémicas que tem gerado, [Sena] é demonstrativo de como os passos para identificar as referências que permitam a construção de uma identidade 'gay' em Portugal são, muitas vezes, impossíveis de dar até muito tarde no século XX português".
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Mulheres e linguagem
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Além da história oral, o enquadramento científico e jurídico do homossexual é uma das mais-valias do livro de Almeida. Com base nas teorias de Egas Moniz e Asdrúbal António de Aguiar, da década de 20 do século passado, a autora explica que a homossexualidade era "vista como doença, que pode e deve ser tratada, e como perversão, que tem de ser corrigida, a bem da nova ordem social burguesa". Essa percepção (e as categorias desenvolvidas a partir desta) dominou o discurso oficial na ditadura.
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Para Ana Luísa Amaral, este enquadramento é uma primeira contribuição para a criação de "um léxico inclusivo para a cidadania". Isto quer dizer que "designações, categorias, o próprio conceito de homossexual e a sua naturalização, conceitos que dizem respeito às sexualidades, tornam-se abertos a toda a sociedade". O livro mostra, portanto, "como se esboroaram essas categorias e é um novo léxico que se vai construir". Cascais concorda: "Normalmente, os homossexuais não têm história, têm uma tipologia de doença, têm uma patologia." Com este livro, "isto está desfeito. A outra coisa que está desfeita é o preconceito histórico de que uma história dos homossexuais diz apenas respeito aos homossexuais, é uma micro-história ou a história de uma minoria. Ora, não há histórias só de minorias, porque as minorias nunca estão isoladas."
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Anna Klobucka, investigadora de Estudos Portugueses na Universidade de Massachusetts-Dartmouth, nos Estados Unidos, tem-se debruçado sobre questões de género e teorias feminista e "queer" na literatura portuguesa. "Do meu ponto de vista, que é também o da minha agenda de pesquisa e daquilo que me interessa pessoalmente, o que me parece mais útil e original [neste livro] é que permite desenvolver uma perspectiva de análise muito mais bem informada sobre o que se poderia chamar, segundo o livro de Eve Sedgwick, a 'epistemologia do armário português'." A ideia de "armário" (ou neste caso da sua "abertura", com o livro de Almeida) é, diz Klobucka, "um fenómeno universal no ocidente" que tem a ver com a relação que a homossexualidade estabelece com o (in)cumprimento "das regras em vários contextos culturais". Mas há diferenças entre países e épocas: "Usar fontes que se baseiam na realidade dos EUA ou da Inglaterra, ou mesmo de Espanha, para pensar e analisar o caso português é deslocado." O contexto português "é bastante distinto de outros que tenho estudado em obras teóricas e isso é muito precioso".
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O "armário" aqui aberto está na voz dos testemunhos, mas também no facto de Almeida tentar estabelecer sempre uma certa paridade entre a homossexualidade feminina e masculina. A autora escreve que, na história, a "mulher surge sempre como segunda figura", e a "concepção do lesbianismo" é decalcada da dos homens. Nesse sentido, tanto para Klobucka como para Ana Luísa Amaral o capítulo dedicado ao lesbianismo, "Mas isso existe?", é relevante. Klobucka afirma que a autora "faz muito com o pouco material que tem", dando máxima "inclusividade à esfera do lesbianismo que é particularmente invisível e usualmente mal documentada por comparação à homossexualidade masculina na cultura portuguesa". Klobucka acrescenta ainda que "a situação das mulheres portuguesas durante o Estado Novo era muito diferente do estatuto social dos homens e naturalmente a questão homossexual também tem de ser construída de uma forma diferente".
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