Serralves
Marlene Dumas pinta contra todos os muros
30.06.2010 - José Marmeleira
No Museu de Serralves, Marlene Dumas expõe pinturas de coisas que separam os homens, pinturas que a partir da fotografia ambicionam tornar-se imagens reais. E que, por isso, confrontam a indiferença e a imaginação do espectador. O motivo é o conflito entre Israel e a Palestina e a exposição chama-se "Contra o Muro"
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De cócoras, rodeada de sepulturas abertas, uma mulher vestida de negro olha para fotografia de filho. Uma criança caminha ao logo de uma parede que parece crescer sobre ela. Outra acena aparentemente de forma amistosa. Um homem parece ajoelhar-se receoso ou reza apenas. São figuras reduzidas a manchas, distorções cromáticas, à beira da tactilidade. Por vezes, insinuam narrativas ambíguas, mesmo quando o espectador crê distinguir o opressor da vítima. Uma coisa é certa: todas identificam claramente um contexto político - neste caso, o conflito no Médio Oriente entre israelitas e palestinianos - e esse é o primeiro novo dado que "Contra o Muro", no Museu de Serralves, com a curadoria de Ulrich Look, traz à pintura de Marlene Dumas (Cidade do Cabo, 1953). Em vez de se limitar a "transformar" em pinturas fotografias de corpos e de rostos - de crianças, jovens, actrizes, homens de raças diferentes -, como tem feito ao longo de trinta anos, a artista trabalha sobre imagens de um cenário familiar à opinião pública.
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Numa terra de ninguém
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O processo permanece o mesmo - pintura feita a partir de imagens preexistentes, a grande maioria originárias da imprensa e do jornalista, mas, avisa o comissário, "o seu trabalho não se centra na realidade das imagens veiculadas pelos media, e sim na - embora suspeita - capacidade da pintura em tornar uma imagem real".
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O lugar da fotografia na obra de Dumas ajuda a explicar tal motivação: "Apesar de nunca pintar senão a partir de uma fotografia e de respeitar o trabalho dos fotógrafos (as verdadeiras testemunhas), enquanto pintora adopta uma posição diferida. Cria uma segunda vida, uma vida imaginária para os acontecimentos. Na imaginação, encontramos as coisas como se fosse pela primeira vez".
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É neste sentido que deve ser entendida a abordagem da artista à figuração. Ainda Ulrich Loock: "Nasce do desejo de tocar no corpo. Se o corpo está morto (seja através da simples descrição de um cadáver ou da sua representação fotográfica) a pintura figurativa implica o desejo de voltar a dar uma certa vida a esse corpo".
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A exposição em Serralves não representa a estreia em Portugal da pintora sul-africana, que vive em Amesterdão desde 1976. A sua obra já tinha sido apresentada antes ao público português na exposição "Os anos 80: Uma topologia", no museu do Porto, e numa individual de desenhos em 1998 no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Mas "Contra o Muro", que em Abril teve a sua primeira versão na Galeria David Zwirner, em Nova Iorque, assinala um momento singular na produção pictórica de Dumas. Escrevia a artista no respectivo catálogo: "Desta vez o palco principal não pertence a figuras nuas e a cabeças em posição vertical, todas ampliadas, mas a estruturas arquitectónicas colocadas num espaço narrativo...que nos transportam não a uma terra sagrada, mas uma árida terra de ninguém".
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Eis o segundo novo dado que "Contra o Muro" revela: a presença de construções humanas. Muros, como o da Cisjordânia construído por Israel para se separar fisicamente da Palestina ou blocos de cimentos usados nos posto de controlo militar. Os muros são uma presença evidente nas pinturas de grande formato. Porém, aquilo que descrevem é com frequência uma decepção dirigida ao olhar e ao conhecimento. Em "O Muro" (2009) os judeus ortodoxos não se prepararam para rezar no Muro das Lamentações, fazem um pausa diante da terrível parede cuja construção foi iniciada em 1990; em "Choro do Muro" e "Lamentações do Muro" (2009), vemos homens sem rosto, encostados ao que parece ser de facto o sítio de culto religioso; numa pintura têm os braços levantados como se a meio de uma qualquer oração; na outra, são revistados contra o muro. Não é difícil evocar "El Tres de Mayo" (1808), de Francisco José de Goya, ou "L'Exécution de Maximilien" (1868) de Édouard Manet.
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Outras pinturas dispensam figuras, para mostrarem apenas construções e estruturas. "Em Construção" (2009), uma longa parede que se estende impassível ao longo da tela tapa a paisagem. Em "Barreira mentais", blocos de pedra, de uma transparência azul, só deixam entrever ao fundo a linha de uma estrada. Pinturas que apagam a figuração, para deixarem entrar sinais da abstracção ou, como escreve o comissário no catálogo desta exposição, "obras que desafiam a solidez da parede que define o lugar onde a imagem é apresentada, a parede do espaço expositivo ou de uma habitação". É a própria artista que num dos seus escritos enuncia que "uma pintura necessita de uma parede com que se confrontar", mesmo que, como acontece nesta exposição, de outro lado possa estar um lugar dominado pelo abandono e a dor.
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A realidade depois da pintura
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Convém lembrar que Marlene Dumas viveu de perto o Apartheid na África do Sul, experiência que inspirou "Contra o Muro" e o protesto mudo que sob uma série de pinturas é dirigido às políticas de segregação de Israel. Será então oportuno evocar aqui a incómoda classificação de arte política e fazer a inevitável pergunta: não pode esta pintura tornar-se ilustração de uma realidade?
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"Não, não existe esse risco. A realidade encontra-se já ilustrada nas fotografias preexistentes", responde o comissário. "E a pintura transforma a realidade ilustrada numa realidade da imaginação. Podemos chamar [estas pinturas] de arte política não apenas porque descrevem estruturas que condicionam a vida em comum de povos em conflito, mas também porque, e sobretudo, Marlene Dumas, enquanto pintora, se envolve nesse conflito: constrói na sua pintura um muro, contra o discurso politicamente correcto, e tornando-o inevitável torna inevitável a necessidade da sua destruição".
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Disse Marlene Dumas durante a apresentação em Nova Iorque, na Galeria David Zwirner: "Sou contra o muro. Não sou contra o Estado de Israel ou o Estado da Palestina, mas sou contra o muro". A clareza e a afirmação da posição revêem-se em "O Sono da Razão", auto-retrato da artista, incapaz de mudar politicamente o mundo, por isso seu involuntário cúmplice, mas capaz de enriquecer a sua memória colectiva através da imaginação (cite-se o Goya de "Desastres de La Guerra", de 1810-20 ou, numa latitude distinta, o Matisse que viveu sob o Regime de Vichy).
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No Museu de Serralves, reúnem-se à volta de 40 pinturas datadas da década anterior (mais 20 das que as expostas em Nova Iorque) e a maior parte dá conta do modo como Dumas lidou na sua pintura com o conflito no Médio Oriente. Para além da arquitectura e do betão, a artista pintou rostos e corpos de pessoas que viveram de perto a guerra ("Criança a acenar") ou que nela perderam familiares (a mulher que olha a foto do filho em "A mãe", 2009) ou a vida (mártires e terroristas em "Homem morto", 1988, "Rapariga morta", 2002). Outras pinturas revelam incursões por temas aparentemente mais prosaicos, pacíficos ou clássicos. É o caso do retrato de uma oliveira ou das naturezas-mortas "Caridade" (2010), com as suas rosas escurecidas, e "As vinhas da Ira" (2009).
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Finalmente, restam imagens ambíguas de corpos. Em "Ressurreição" (2003/09), o torso de um homem caído para trás, a boca aberta. Um morto que ressuscita com o "milagre" da pintura? Um ferido? Uma estátua? Como as outras imagens resulta de uma tensão entre a documentação fotográfica e o espaço imaginário da pintura; tensão que se propõe atravessar toda a exposição contra os limites ontológicos da pintura e os muros e as divisões construídas pelos homens.
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De cócoras, rodeada de sepulturas abertas, uma mulher vestida de negro olha para fotografia de filho. Uma criança caminha ao logo de uma parede que parece crescer sobre ela. Outra acena aparentemente de forma amistosa. Um homem parece ajoelhar-se receoso ou reza apenas. São figuras reduzidas a manchas, distorções cromáticas, à beira da tactilidade. Por vezes, insinuam narrativas ambíguas, mesmo quando o espectador crê distinguir o opressor da vítima. Uma coisa é certa: todas identificam claramente um contexto político - neste caso, o conflito no Médio Oriente entre israelitas e palestinianos - e esse é o primeiro novo dado que "Contra o Muro", no Museu de Serralves, com a curadoria de Ulrich Look, traz à pintura de Marlene Dumas (Cidade do Cabo, 1953). Em vez de se limitar a "transformar" em pinturas fotografias de corpos e de rostos - de crianças, jovens, actrizes, homens de raças diferentes -, como tem feito ao longo de trinta anos, a artista trabalha sobre imagens de um cenário familiar à opinião pública.
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Numa terra de ninguém
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O processo permanece o mesmo - pintura feita a partir de imagens preexistentes, a grande maioria originárias da imprensa e do jornalista, mas, avisa o comissário, "o seu trabalho não se centra na realidade das imagens veiculadas pelos media, e sim na - embora suspeita - capacidade da pintura em tornar uma imagem real".
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O lugar da fotografia na obra de Dumas ajuda a explicar tal motivação: "Apesar de nunca pintar senão a partir de uma fotografia e de respeitar o trabalho dos fotógrafos (as verdadeiras testemunhas), enquanto pintora adopta uma posição diferida. Cria uma segunda vida, uma vida imaginária para os acontecimentos. Na imaginação, encontramos as coisas como se fosse pela primeira vez".
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É neste sentido que deve ser entendida a abordagem da artista à figuração. Ainda Ulrich Loock: "Nasce do desejo de tocar no corpo. Se o corpo está morto (seja através da simples descrição de um cadáver ou da sua representação fotográfica) a pintura figurativa implica o desejo de voltar a dar uma certa vida a esse corpo".
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A exposição em Serralves não representa a estreia em Portugal da pintora sul-africana, que vive em Amesterdão desde 1976. A sua obra já tinha sido apresentada antes ao público português na exposição "Os anos 80: Uma topologia", no museu do Porto, e numa individual de desenhos em 1998 no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Mas "Contra o Muro", que em Abril teve a sua primeira versão na Galeria David Zwirner, em Nova Iorque, assinala um momento singular na produção pictórica de Dumas. Escrevia a artista no respectivo catálogo: "Desta vez o palco principal não pertence a figuras nuas e a cabeças em posição vertical, todas ampliadas, mas a estruturas arquitectónicas colocadas num espaço narrativo...que nos transportam não a uma terra sagrada, mas uma árida terra de ninguém".
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Eis o segundo novo dado que "Contra o Muro" revela: a presença de construções humanas. Muros, como o da Cisjordânia construído por Israel para se separar fisicamente da Palestina ou blocos de cimentos usados nos posto de controlo militar. Os muros são uma presença evidente nas pinturas de grande formato. Porém, aquilo que descrevem é com frequência uma decepção dirigida ao olhar e ao conhecimento. Em "O Muro" (2009) os judeus ortodoxos não se prepararam para rezar no Muro das Lamentações, fazem um pausa diante da terrível parede cuja construção foi iniciada em 1990; em "Choro do Muro" e "Lamentações do Muro" (2009), vemos homens sem rosto, encostados ao que parece ser de facto o sítio de culto religioso; numa pintura têm os braços levantados como se a meio de uma qualquer oração; na outra, são revistados contra o muro. Não é difícil evocar "El Tres de Mayo" (1808), de Francisco José de Goya, ou "L'Exécution de Maximilien" (1868) de Édouard Manet.
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Outras pinturas dispensam figuras, para mostrarem apenas construções e estruturas. "Em Construção" (2009), uma longa parede que se estende impassível ao longo da tela tapa a paisagem. Em "Barreira mentais", blocos de pedra, de uma transparência azul, só deixam entrever ao fundo a linha de uma estrada. Pinturas que apagam a figuração, para deixarem entrar sinais da abstracção ou, como escreve o comissário no catálogo desta exposição, "obras que desafiam a solidez da parede que define o lugar onde a imagem é apresentada, a parede do espaço expositivo ou de uma habitação". É a própria artista que num dos seus escritos enuncia que "uma pintura necessita de uma parede com que se confrontar", mesmo que, como acontece nesta exposição, de outro lado possa estar um lugar dominado pelo abandono e a dor.
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A realidade depois da pintura
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Convém lembrar que Marlene Dumas viveu de perto o Apartheid na África do Sul, experiência que inspirou "Contra o Muro" e o protesto mudo que sob uma série de pinturas é dirigido às políticas de segregação de Israel. Será então oportuno evocar aqui a incómoda classificação de arte política e fazer a inevitável pergunta: não pode esta pintura tornar-se ilustração de uma realidade?
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"Não, não existe esse risco. A realidade encontra-se já ilustrada nas fotografias preexistentes", responde o comissário. "E a pintura transforma a realidade ilustrada numa realidade da imaginação. Podemos chamar [estas pinturas] de arte política não apenas porque descrevem estruturas que condicionam a vida em comum de povos em conflito, mas também porque, e sobretudo, Marlene Dumas, enquanto pintora, se envolve nesse conflito: constrói na sua pintura um muro, contra o discurso politicamente correcto, e tornando-o inevitável torna inevitável a necessidade da sua destruição".
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Disse Marlene Dumas durante a apresentação em Nova Iorque, na Galeria David Zwirner: "Sou contra o muro. Não sou contra o Estado de Israel ou o Estado da Palestina, mas sou contra o muro". A clareza e a afirmação da posição revêem-se em "O Sono da Razão", auto-retrato da artista, incapaz de mudar politicamente o mundo, por isso seu involuntário cúmplice, mas capaz de enriquecer a sua memória colectiva através da imaginação (cite-se o Goya de "Desastres de La Guerra", de 1810-20 ou, numa latitude distinta, o Matisse que viveu sob o Regime de Vichy).
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No Museu de Serralves, reúnem-se à volta de 40 pinturas datadas da década anterior (mais 20 das que as expostas em Nova Iorque) e a maior parte dá conta do modo como Dumas lidou na sua pintura com o conflito no Médio Oriente. Para além da arquitectura e do betão, a artista pintou rostos e corpos de pessoas que viveram de perto a guerra ("Criança a acenar") ou que nela perderam familiares (a mulher que olha a foto do filho em "A mãe", 2009) ou a vida (mártires e terroristas em "Homem morto", 1988, "Rapariga morta", 2002). Outras pinturas revelam incursões por temas aparentemente mais prosaicos, pacíficos ou clássicos. É o caso do retrato de uma oliveira ou das naturezas-mortas "Caridade" (2010), com as suas rosas escurecidas, e "As vinhas da Ira" (2009).
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Finalmente, restam imagens ambíguas de corpos. Em "Ressurreição" (2003/09), o torso de um homem caído para trás, a boca aberta. Um morto que ressuscita com o "milagre" da pintura? Um ferido? Uma estátua? Como as outras imagens resulta de uma tensão entre a documentação fotográfica e o espaço imaginário da pintura; tensão que se propõe atravessar toda a exposição contra os limites ontológicos da pintura e os muros e as divisões construídas pelos homens.
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