República
Um pintor nas trincheiras
Sousa Lopes foi o único pintor a acompanhar o Corpo Expedicionário Português na Primeira Guerra Mundial. Foi ele quem pediu ao ministro da Guerra que o deixasse ir para a frente francesa e, lá chegado, foi a custo que se instalou nas trincheiras. A Rendição é a sua obra maior. Por Carlos Silveira.
Em Agosto de 1917, num país agitado pela mobilização da guerra, o pintor Adriano Sousa Lopes é nomeado pelo governo da República oficial-artista do Corpo Expedicionário Português (CEP), na frente ocidental da Grande Guerra. Desde Fevereiro que sucessivos contingentes de soldados portugueses chegavam ao Norte de França, para defender uma área situada na planície do rio Lys, sector militar que não excedia os 18 quilómetros na primeira linha, e que se integrava autonomamente na frente do Primeiro Exército Britânico.
Numa operação inédita, mais de 55 mil portugueses serão mobilizados até ao final da guerra, em Novembro de 1918. Antes de partir para França, o artista anuncia publicamente as suas intenções ao jornal O Século: "Em primeiro lugar, é uma obra de propaganda do nosso esforço militar. Eu passaria a colaborar em várias revistas estrangeiras, que ilustraria com assuntos da vida do nosso Exército em campanha", explica ao repórter do jornal. "É justo que de todo o sacrifício que o país faz, comparticipando na guerra, algum benefício colha."
Era uma oportunidade única para Adriano Sousa Lopes (1879-1944), pintor até esse ano de 1917 desconhecido do público português. Uma situação que, aliás, se repete nos nossos dias: a última exposição da sua obra, na Fundação Gulbenkian, foi há 30 anos. Só recentemente voltou a ser falado, quando em Março de 2007 protagonizou uma das vendas mais altas de uma pintura portuguesa em leilão. Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929), amigo pintor a quem sucedeu como director do Museu Nacional de Arte Contemporânea, via-o como "um moderno respeitador do passado", e tinha razão. Pintor de sólida formação académica, e elegendo os impressionistas franceses como mestres, Sousa Lopes trilhou um percurso independente na arte portuguesa da primeira metade do século XX.
Exposição de sucesso
Nascido em Vidigal, no concelho de Leiria, o pintor vivia em Paris desde 1903, para onde fora estudar como pensionista do Estado no estrangeiro, e, desde Agosto de 1914, assiste à mobilização geral que a guerra provoca na sociedade francesa. Chega a voluntariar-se como enfermeiro nos hospitais militares da cidade, onde realiza apontamentos que grava a água-forte.
Mas o ano de 1917 é um momento-chave na carreira: a sua primeira exposição individual é um sucesso de crítica e de público, patente desde Janeiro na Sociedade Nacional de Belas-Artes, em Lisboa. O Presidente da República Bernardino Machado visita a exposição e adquire vários trabalhos. O jornal O Século chega a noticiar o roubo de um quadro durante a exposição, uma das inúmeras vistas pintadas em Veneza.
Nos meses em que permanece na capital, a sua actividade em prol da participação na guerra é imparável: nas salas da exposição organiza um serão de arte em benefício das famílias dos soldados, onde o próprio canta árias de Beethoven, e realiza com o jornal O Século um sorteio de um retrato da sua autoria, desenhado a carvão.
Aproveitando esta visibilidade, Sousa Lopes empenha-se tenazmente em conseguir ir para a frente de batalha. A proposta é formalizada numa carta que escreve em Abril ao ministro da Guerra, major Norton de Matos, conservada no Arquivo Histórico Militar: "Ouso solicitar de V. Ex.ª a honra de me conceder um posto honorífico nas fileiras do Corpo Expedicionário Português, confiando-me o encargo de documentar artisticamente a participação de Portugal na Guerra europeia, podendo esta ser metodicamente feita e orientada por V. Ex.ª", escreve ao ministro. E mais à frente precisa o seu pedido: "A fim de realizar este plano em cuja execução porei o maior fervor patriótico, rogo a V.ª Ex.ª que me seja abonado um soldo correspondente ao posto de capitão em campanha (...)."
O pintor dá como exemplo a seguir a França, que contratara os seus artistas de guerra, e cita nomes como Charles Fouqueray (1869-1956) ou Lucien Jonas (1880-1947), que nesses anos enchiam as páginas das revistas de grande circulação, como a famosa L"Illustration. De facto, nas missões artísticas que organizava por períodos de poucas semanas, a República Francesa irá trazer ao campo de batalha mais de uma centena de artistas, obrigados a entregar pelo menos uma obra ao Estado. O Reino Unido, através do Imperial War Museum de Londres, nomeará cerca de 16 official war artists, e mesmo o Governo dos EUA, país que entra no conflito em 1917, nomeia no ano seguinte oito artistas para documentarem em França a acção da sua força expedicionária. Portugal salva-se pela iniciativa inédita deste pintor.
À espera na retaguarda
Na carta, Sousa Lopes estabelece ainda uma série de objectivos a cumprir, perfeitamente adequados aos serviços de propaganda do Ministério da Guerra. O pintor comprometia-se a organizar um álbum com retratos de militares e de episódios do Exército em campanha, e a realizar uma série de pinturas inspiradas nos feitos mais gloriosos do CEP, tendo o Estado no futuro direito de opção na compra. E, após a sua nomeação, parte rapidamente para França, onde chega em finais de Setembro.
A realidade da frente portuguesa era muito diferente do que imaginara. O quartel-general em Saint-Venant estava informado da sua chegada, mas não lhe dava as mínimas condições para desenvolver o seu plano. Sem salvo-conduto, nem viatura à disposição, o capitão artista tem sérias dificuldades em se deslocar pelo sector, onde havia restrições de circulação.
Nos primeiros meses, consegue reunir alguns apontamentos paisagísticos e da instrução militar nas escolas da retaguarda. Mas era preciso ir para a frente, ver aqueles soldados em acção no terreno. No quartel-general, os oficiais superiores só o vêem como um oficial de serviços extraordinários. Não poucas vezes, é confundido com o capelão militar.
André Brun (1881-1926), conhecido escritor humorista, encontrou nesses dias o pintor numa aldeia da retaguarda, e registou a sua impressão: "Vivia meio esquecido e semiabandonado. Quando tanto inútil tinha um automóvel para passear a felpa dos sobretudos ingleses, Sousa Lopes tinha que esperar que um dia uma viatura menos carregada o pudesse transportar", escreve no seu admirável relato A Malta das Trincheiras (1919). "Quando o vi em Dezembro do ano passado, não excedera ainda a linha das escolas e o seu álbum de apontamentos apenas continha esboços sem maior interesse para ele nem para a sua obra."
Desiludido, o pintor chega a pensar em desistir da missão, como confessou mais tarde numa entrevista ao jornal OSéculo: "Todos os planos que, aqui de longe, eu tinha imaginado pôr em prática, quando lá cheguei vi que os não podia realizar, e apoderou-se de mim um grande desânimo, a ponto de chegar a pensar em desistir, e voltar para Portugal sem nada ter feito."
Em Janeiro de 1918, o artista decide arriscar-se directamente nos sectores da frente, pedindo hospedagem por uns dias aos comandantes que defendem as trincheiras da primeira linha. A decisão surte efeito imediato.
A Rendição, uma obra-chave
Em Ferme du Bois, situada no flanco direito do sector português, convive duas semanas com o batalhão do major André Brun, onde compõe uma das suas melhores águas-fortes, Infantaria 23 na Ferme du Bois. Nela vemos os soldados enfileirando-se para receberem a sua refeição diária num pátio em ruínas de uma herdade abandonada, utilizada como abrigo precário do subsector. Será destruída a 9 de Abril desse ano, durante a célebre Batalha de La Lys travada na frente portuguesa.
De seguida, passa uma temporada na área esquerda do sector, em Fauquissart, defendido pelo capitão Américo Olavo (1881-1927) e o seu batalhão de Infantaria 2. Durante 16 dias, acompanha o comandante madeirense nas visitas de inspecção às trincheiras, e faz inúmeros apontamentos frente ao motivo, prática de um pintor que admirava os impressionistas: a neve que cobria a paisagem desolada do sector; soldados de costas alinhados no parapeito da trincheira, espreitando o inimigo; ruínas das herdades isoladas na planície lamacenta que separava as linhas inimigas, tudo servia para preencher os seus álbuns, de que hoje restam poucos desenhos em colecções públicas.
De repente, uma cena inesperada surge-lhe diante dos olhos: entre a neve, vê um grupo de soldados a sair de uma trincheira, cobertos com pelicos alentejanos. O impacto no pintor é imediato. "Veja o meu amigo, como isto é interessante, o que este pequenino canto dá!!!", diz o pintor para Olavo, que registou o entusiasmo no seu livro Na Grande Guerra (1919). "Soldados vindos das linhas, cobertos com peles que os protegem do frio, enlameados, as caras mal rapadas, um ar de esmagadora fadiga... Esta saída da trincheira, o primeiro cotovelo que lhe descortinamos ao fundo e estes homens que saem, quase definem as linhas e a sua vida."
É o seu grande quadro, A Rendição, que o pintor acabava de descrever, no exacto momento em que a ideia se formava frente àquele grupo de soldados. Na versão final, é uma composição com mais de 12 metros de comprimento, terminada em 1923, hoje visível no Museu Militar de Lisboa. É uma obra- chave, que faz a síntese da experiência do pintor em França, confrontado com a dura realidade que o CEP vivia no sector português.
Não há aqui nenhum feito glorioso que inicialmente planeara registar, mas apenas o quotidiano trágico destes soldados camponeses, que caminham exaustos e curvados sob o peso das mochilas e dos mantimentos. O pintor insufla grandiosidade às figuras, pintadas maiores que o natural e apresentadas como num friso clássico, modelo que o pintor inglês John Singer Sargent (1856-1925) também irá utilizar, nesse mesmo ano, na sua famosa obra Gaseados, hoje no Imperial War Museum.
À cabeça deste penoso cortejo, o artista retrata Américo Olavo, numa homenagem ao camarada que o acolhera nas trincheiras do seu sector. Plasticamente, há um notável equilíbrio entre os tons terras das figuras e os empastamentos brancos, sugerindo um imenso sudário de neve que cobre a planície e a estrada lamacenta. O quartel-general não gosta da composição, como Brun fez questão de registar no seu livro: "(...) os altos galões lhe tinham aconselhado a que pusesse de parte, pois o movimento da malta, voltando à tona da vida, não era feito em formatura regulamentar!" Mas o nosso pintor não iria ceder: tinha finalmente encontrado um tema poderoso, que simbolizava na perfeição o sacrifício humano da guerra de trincheiras.
Projecto comemorativo
Após o Armistício, Sousa Lopes é agraciado com o grau de cavaleiro de Santiago de Espada, juntamente com o fotógrafo oficial do CEP, Arnaldo Garcez (1885-1964). Em 1919, começa a abrir uma série de gravuras a água-forte sobre a experiência de guerra, apresentando algumas no Salão de Paris desse ano.
Nas décadas de 1920 e 30, pinta uma série de seis telas, que hoje acompanham A Rendição nas salas do museu. Nelas, o projecto comemorativo e retórico é mais evidente do que nas gravuras, encenando a resistência lusa durante a batalha de 9 de Abril, tragédia que é uma peça central na narrativa portuguesa da guerra.
Nessa manhã, a 2.ª Divisão do CEP é esmagada na primeira linha por uma ofensiva em larga escala do Exército alemão, oito divisões com 136 mil homens atacam o sector, após uma preparação maciça de artilharia. Metade dos 16 mil oficiais e praças portugueses são mortos ou feitos prisioneiros.
Numa das pinturas, Marcha para a Primeira Linha, vê-se um pelotão de soldados de Infantaria 15 que marcham energicamente, e em formatura regulamentar, em direcção ao reduto de Lacouture, onde alguns portugueses iriam resistir ao avanço inimigo até ao final da manhã de dia 10. Atravessam uma aldeia atingida pela artilharia alemã, com edifícios ardendo, e cujos civis estão a ser evacuados para a retaguarda, sob um céu amarelado tingido pelas labaredas e pelo gás.
Com a Destruição de um Obus, tem-se uma rara imagem desse combate desigual: no fragor da batalha, e brandindo uma picareta nas duas mãos, o soldado José Alves, artilheiro da 5.ª Bateria de Le Touret, tenta destruir num acto de desespero a sua peça de artilharia, para que não caia nas mãos dos soldados inimigos, que rapidamente tomam conta da trincheira e o atingem mortalmente à baioneta.
Todas estas pinturas e águas-fortes formam um conjunto sem igual na arte portuguesa de novecentos, que no seu tempo suscitou grande admiração. António Ferro, vendo a exposição de 1927, escreveu que, na sombra da trincheira, o pintor descobrira "a lama e as estrelas", considerando-o decididamente um dos maiores pintores da guerra. Mais recentemente, José-Augusto França deu-lhes o destaque merecido, como "as melhores (ou as únicas) pinturas de batalha da pintura portuguesa".
Historiador (carloswebmail@gmail.com)
AmanhãO Governo de União Sagrada: A paz só chegou no fim. Por Maria José Oliveira
Esta série tem o apoio da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República
Numa operação inédita, mais de 55 mil portugueses serão mobilizados até ao final da guerra, em Novembro de 1918. Antes de partir para França, o artista anuncia publicamente as suas intenções ao jornal O Século: "Em primeiro lugar, é uma obra de propaganda do nosso esforço militar. Eu passaria a colaborar em várias revistas estrangeiras, que ilustraria com assuntos da vida do nosso Exército em campanha", explica ao repórter do jornal. "É justo que de todo o sacrifício que o país faz, comparticipando na guerra, algum benefício colha."
Era uma oportunidade única para Adriano Sousa Lopes (1879-1944), pintor até esse ano de 1917 desconhecido do público português. Uma situação que, aliás, se repete nos nossos dias: a última exposição da sua obra, na Fundação Gulbenkian, foi há 30 anos. Só recentemente voltou a ser falado, quando em Março de 2007 protagonizou uma das vendas mais altas de uma pintura portuguesa em leilão. Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929), amigo pintor a quem sucedeu como director do Museu Nacional de Arte Contemporânea, via-o como "um moderno respeitador do passado", e tinha razão. Pintor de sólida formação académica, e elegendo os impressionistas franceses como mestres, Sousa Lopes trilhou um percurso independente na arte portuguesa da primeira metade do século XX.
Exposição de sucesso
Nascido em Vidigal, no concelho de Leiria, o pintor vivia em Paris desde 1903, para onde fora estudar como pensionista do Estado no estrangeiro, e, desde Agosto de 1914, assiste à mobilização geral que a guerra provoca na sociedade francesa. Chega a voluntariar-se como enfermeiro nos hospitais militares da cidade, onde realiza apontamentos que grava a água-forte.
Mas o ano de 1917 é um momento-chave na carreira: a sua primeira exposição individual é um sucesso de crítica e de público, patente desde Janeiro na Sociedade Nacional de Belas-Artes, em Lisboa. O Presidente da República Bernardino Machado visita a exposição e adquire vários trabalhos. O jornal O Século chega a noticiar o roubo de um quadro durante a exposição, uma das inúmeras vistas pintadas em Veneza.
Nos meses em que permanece na capital, a sua actividade em prol da participação na guerra é imparável: nas salas da exposição organiza um serão de arte em benefício das famílias dos soldados, onde o próprio canta árias de Beethoven, e realiza com o jornal O Século um sorteio de um retrato da sua autoria, desenhado a carvão.
Aproveitando esta visibilidade, Sousa Lopes empenha-se tenazmente em conseguir ir para a frente de batalha. A proposta é formalizada numa carta que escreve em Abril ao ministro da Guerra, major Norton de Matos, conservada no Arquivo Histórico Militar: "Ouso solicitar de V. Ex.ª a honra de me conceder um posto honorífico nas fileiras do Corpo Expedicionário Português, confiando-me o encargo de documentar artisticamente a participação de Portugal na Guerra europeia, podendo esta ser metodicamente feita e orientada por V. Ex.ª", escreve ao ministro. E mais à frente precisa o seu pedido: "A fim de realizar este plano em cuja execução porei o maior fervor patriótico, rogo a V.ª Ex.ª que me seja abonado um soldo correspondente ao posto de capitão em campanha (...)."
O pintor dá como exemplo a seguir a França, que contratara os seus artistas de guerra, e cita nomes como Charles Fouqueray (1869-1956) ou Lucien Jonas (1880-1947), que nesses anos enchiam as páginas das revistas de grande circulação, como a famosa L"Illustration. De facto, nas missões artísticas que organizava por períodos de poucas semanas, a República Francesa irá trazer ao campo de batalha mais de uma centena de artistas, obrigados a entregar pelo menos uma obra ao Estado. O Reino Unido, através do Imperial War Museum de Londres, nomeará cerca de 16 official war artists, e mesmo o Governo dos EUA, país que entra no conflito em 1917, nomeia no ano seguinte oito artistas para documentarem em França a acção da sua força expedicionária. Portugal salva-se pela iniciativa inédita deste pintor.
À espera na retaguarda
Na carta, Sousa Lopes estabelece ainda uma série de objectivos a cumprir, perfeitamente adequados aos serviços de propaganda do Ministério da Guerra. O pintor comprometia-se a organizar um álbum com retratos de militares e de episódios do Exército em campanha, e a realizar uma série de pinturas inspiradas nos feitos mais gloriosos do CEP, tendo o Estado no futuro direito de opção na compra. E, após a sua nomeação, parte rapidamente para França, onde chega em finais de Setembro.
A realidade da frente portuguesa era muito diferente do que imaginara. O quartel-general em Saint-Venant estava informado da sua chegada, mas não lhe dava as mínimas condições para desenvolver o seu plano. Sem salvo-conduto, nem viatura à disposição, o capitão artista tem sérias dificuldades em se deslocar pelo sector, onde havia restrições de circulação.
Nos primeiros meses, consegue reunir alguns apontamentos paisagísticos e da instrução militar nas escolas da retaguarda. Mas era preciso ir para a frente, ver aqueles soldados em acção no terreno. No quartel-general, os oficiais superiores só o vêem como um oficial de serviços extraordinários. Não poucas vezes, é confundido com o capelão militar.
André Brun (1881-1926), conhecido escritor humorista, encontrou nesses dias o pintor numa aldeia da retaguarda, e registou a sua impressão: "Vivia meio esquecido e semiabandonado. Quando tanto inútil tinha um automóvel para passear a felpa dos sobretudos ingleses, Sousa Lopes tinha que esperar que um dia uma viatura menos carregada o pudesse transportar", escreve no seu admirável relato A Malta das Trincheiras (1919). "Quando o vi em Dezembro do ano passado, não excedera ainda a linha das escolas e o seu álbum de apontamentos apenas continha esboços sem maior interesse para ele nem para a sua obra."
Desiludido, o pintor chega a pensar em desistir da missão, como confessou mais tarde numa entrevista ao jornal OSéculo: "Todos os planos que, aqui de longe, eu tinha imaginado pôr em prática, quando lá cheguei vi que os não podia realizar, e apoderou-se de mim um grande desânimo, a ponto de chegar a pensar em desistir, e voltar para Portugal sem nada ter feito."
Em Janeiro de 1918, o artista decide arriscar-se directamente nos sectores da frente, pedindo hospedagem por uns dias aos comandantes que defendem as trincheiras da primeira linha. A decisão surte efeito imediato.
A Rendição, uma obra-chave
Em Ferme du Bois, situada no flanco direito do sector português, convive duas semanas com o batalhão do major André Brun, onde compõe uma das suas melhores águas-fortes, Infantaria 23 na Ferme du Bois. Nela vemos os soldados enfileirando-se para receberem a sua refeição diária num pátio em ruínas de uma herdade abandonada, utilizada como abrigo precário do subsector. Será destruída a 9 de Abril desse ano, durante a célebre Batalha de La Lys travada na frente portuguesa.
De seguida, passa uma temporada na área esquerda do sector, em Fauquissart, defendido pelo capitão Américo Olavo (1881-1927) e o seu batalhão de Infantaria 2. Durante 16 dias, acompanha o comandante madeirense nas visitas de inspecção às trincheiras, e faz inúmeros apontamentos frente ao motivo, prática de um pintor que admirava os impressionistas: a neve que cobria a paisagem desolada do sector; soldados de costas alinhados no parapeito da trincheira, espreitando o inimigo; ruínas das herdades isoladas na planície lamacenta que separava as linhas inimigas, tudo servia para preencher os seus álbuns, de que hoje restam poucos desenhos em colecções públicas.
De repente, uma cena inesperada surge-lhe diante dos olhos: entre a neve, vê um grupo de soldados a sair de uma trincheira, cobertos com pelicos alentejanos. O impacto no pintor é imediato. "Veja o meu amigo, como isto é interessante, o que este pequenino canto dá!!!", diz o pintor para Olavo, que registou o entusiasmo no seu livro Na Grande Guerra (1919). "Soldados vindos das linhas, cobertos com peles que os protegem do frio, enlameados, as caras mal rapadas, um ar de esmagadora fadiga... Esta saída da trincheira, o primeiro cotovelo que lhe descortinamos ao fundo e estes homens que saem, quase definem as linhas e a sua vida."
É o seu grande quadro, A Rendição, que o pintor acabava de descrever, no exacto momento em que a ideia se formava frente àquele grupo de soldados. Na versão final, é uma composição com mais de 12 metros de comprimento, terminada em 1923, hoje visível no Museu Militar de Lisboa. É uma obra- chave, que faz a síntese da experiência do pintor em França, confrontado com a dura realidade que o CEP vivia no sector português.
Não há aqui nenhum feito glorioso que inicialmente planeara registar, mas apenas o quotidiano trágico destes soldados camponeses, que caminham exaustos e curvados sob o peso das mochilas e dos mantimentos. O pintor insufla grandiosidade às figuras, pintadas maiores que o natural e apresentadas como num friso clássico, modelo que o pintor inglês John Singer Sargent (1856-1925) também irá utilizar, nesse mesmo ano, na sua famosa obra Gaseados, hoje no Imperial War Museum.
À cabeça deste penoso cortejo, o artista retrata Américo Olavo, numa homenagem ao camarada que o acolhera nas trincheiras do seu sector. Plasticamente, há um notável equilíbrio entre os tons terras das figuras e os empastamentos brancos, sugerindo um imenso sudário de neve que cobre a planície e a estrada lamacenta. O quartel-general não gosta da composição, como Brun fez questão de registar no seu livro: "(...) os altos galões lhe tinham aconselhado a que pusesse de parte, pois o movimento da malta, voltando à tona da vida, não era feito em formatura regulamentar!" Mas o nosso pintor não iria ceder: tinha finalmente encontrado um tema poderoso, que simbolizava na perfeição o sacrifício humano da guerra de trincheiras.
Projecto comemorativo
Após o Armistício, Sousa Lopes é agraciado com o grau de cavaleiro de Santiago de Espada, juntamente com o fotógrafo oficial do CEP, Arnaldo Garcez (1885-1964). Em 1919, começa a abrir uma série de gravuras a água-forte sobre a experiência de guerra, apresentando algumas no Salão de Paris desse ano.
Nas décadas de 1920 e 30, pinta uma série de seis telas, que hoje acompanham A Rendição nas salas do museu. Nelas, o projecto comemorativo e retórico é mais evidente do que nas gravuras, encenando a resistência lusa durante a batalha de 9 de Abril, tragédia que é uma peça central na narrativa portuguesa da guerra.
Nessa manhã, a 2.ª Divisão do CEP é esmagada na primeira linha por uma ofensiva em larga escala do Exército alemão, oito divisões com 136 mil homens atacam o sector, após uma preparação maciça de artilharia. Metade dos 16 mil oficiais e praças portugueses são mortos ou feitos prisioneiros.
Numa das pinturas, Marcha para a Primeira Linha, vê-se um pelotão de soldados de Infantaria 15 que marcham energicamente, e em formatura regulamentar, em direcção ao reduto de Lacouture, onde alguns portugueses iriam resistir ao avanço inimigo até ao final da manhã de dia 10. Atravessam uma aldeia atingida pela artilharia alemã, com edifícios ardendo, e cujos civis estão a ser evacuados para a retaguarda, sob um céu amarelado tingido pelas labaredas e pelo gás.
Com a Destruição de um Obus, tem-se uma rara imagem desse combate desigual: no fragor da batalha, e brandindo uma picareta nas duas mãos, o soldado José Alves, artilheiro da 5.ª Bateria de Le Touret, tenta destruir num acto de desespero a sua peça de artilharia, para que não caia nas mãos dos soldados inimigos, que rapidamente tomam conta da trincheira e o atingem mortalmente à baioneta.
Todas estas pinturas e águas-fortes formam um conjunto sem igual na arte portuguesa de novecentos, que no seu tempo suscitou grande admiração. António Ferro, vendo a exposição de 1927, escreveu que, na sombra da trincheira, o pintor descobrira "a lama e as estrelas", considerando-o decididamente um dos maiores pintores da guerra. Mais recentemente, José-Augusto França deu-lhes o destaque merecido, como "as melhores (ou as únicas) pinturas de batalha da pintura portuguesa".
Historiador (carloswebmail@gmail.com)
AmanhãO Governo de União Sagrada: A paz só chegou no fim. Por Maria José Oliveira
Esta série tem o apoio da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República
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Marcha para a primeira linha (frente), por Sousa Lopes; Pormenor do quadro no Museu Militar de Portugal
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Castelo de Vide
.Uma guerra com sotaque português
A I Guerra Mundial foi a primeira batalha da República portuguesa. Catarina Mendonça Ferreira esteve nas trincheiras da exposição que explica o assunto.
Macas para transportar feridos, fardas, periscópios, marmitas, metralhadoras, medalhas, cartas e trincheiras. Entrar na exposição “I Guerra Mundial: Portugal nas Trincheiras” é quase como entrar num cenário de um filme de guerra.
Só que estes adereços não são fictícios. E a prová-lo está o sangue que ainda se vê numa maca, os diários escritos à mão por soldados com nomes portugueses, e os canhões que testemunham um dos momentos mais negros que a República portuguesa teve de enfrentar. No ano em que se comemora o primeiro centenário da República, esta exposição inédita, organizada pelo Museu da Presidência da República nos Museus da Politécnica, evoca o primeiro grande acontecimento internacional em que participou o regime instaurado em 1910.
“Cada uma das peças que aqui está conta uma história”, começa por explicar Elsa Alípio, comissária da exposição. E no antigo picadeiro do colégio dos Nobres estão cerca de 200 peças provenientes do Exército, de vários arquivos, de museus militares, da Liga de Combatentes e de muitos particulares, que reconstituem o quotidiano dos soldados que participaram na I Grande Guerra Mundial. Objectos que traçam o seu percurso desde a declaração de guerra a Portugal, em Março de 1916, até à assinatura do Tratado de Versalhes, em 1919.
Toda a exposição é marcada pelo retrato da guerra feito pelo fotógrafo Arnaldo Garcez e as gravuras de Sousa Lopes. Estes foram dois homens que acompanharam as tropas com o objectivo de registar o quotidiano dos soldados. Curioso é que as gravuras de Sousa Lopes, da altura, quase parecem os diários gráficos que se fazem hoje em dia e que estão tanto na moda. De resto, não se pode falar de uma guerra sem referir o armamento, e por isso um dos núcleos é dedicado a ele. A peça que se destaca é um canhão Schneider-Canet de 75 milímetros, peça de artilharia pesada utilizada pelo Corpo Expedicionário Português, e que é um bom exemplo do que foi a I Guerra Mundial ao nível bélico. Outros objectos que impressionam são, por exemplo, um capacete de ferro trespassado por uma bala, uma máscara de gás para cavalos ou a metralhadora Louise, a que os portugueses chamavam “luisinha”.
Uma das peças mais marcantes da exposição é um diário de um soldado oriundo de uma aldeia da Beira Alta que conta a sua experiência na primeira pessoa. “Este diário é extraordinário porque a maioria dos soldados nem sequer sabia escrever e este tem a particularidade de ter sido escrito metade em verso e metade em prosa, com muitos toques de humor”, conta Elsa Alípio. Os registos de outros nomes mais conhecidos, como Jaime Cortesão, que foi médico nesta guerra, Hernâni Cidade ou o soldado André Brun também estão em exposição.
A imersão crescente no cenário desta guerra faz-se por corredores que reconstituem uma trincheira. Antes de se passar à memória mais dolorosa da guerra – a batalha de La Lys, em que morreram muitos soldados – passa-se pelo núcleo dedicado aos cuidados de saúde. Aqui conservam-se intactas várias caixas de material cirúrgico – algumas, até, bastante macabras – , pensos rápidos, anestésicos e muitos registos de médicos, enfermeiras e doentes que viveram a primeira Grande Guerra do século XX.
A exposição “Portugal nas Trincheiras – a I Guerra da República” está nos Museus da Politécnica (R. da Escola Politécnica, 60) até 23 de Abril. Horários: terça a quinta e domingos das 10.00 às 18.00, sexta e sábado das 10.00 às 24.00. Marcação de visitas guiadas pelo tel: 21 361 4660.
terça-feira, 2 de Março de 2010
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