Enric Vives-Rubio
Exposição
A I República durou apenas 16 anos, mas são 16 anos cheios de protagonistas, golpes e contra-golpes, grupos, partidos, associações, ideias novas, novos protagonistas, mudanças históricas. Na Cordoaria, em Lisboa. há cabines de aviões, praças do Rossio e trincheiras da I guerra para tornar curta uma longa história.
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Entramos, e na primeira sala Portugal asfixia.
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"Asfixiava-se", conta-nos o texto na parede. Era desta forma que, em 1909, Raul Proença resumia o estado de espírito do país num texto publicado no jornal "A Vanguarda". "O Governo de João Franco, esse execrável criminoso político, esse nevropata perigoso, sem uma ideia nem um afecto, tinha atingido o cúmulo do despotismo. Pairava sobre a pátria portuguesa uma aflição, que oprimia e que sufocava. A vontade de rir fora-se. Sob este céu clemente e azul só ficara a vontade das lágrimas ou a vontade da revolta."
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Começa assim, ainda no estrebuchar da monarquia, a contar-se a história da república no enorme espaço da Cordoaria Nacional, em "Viva a República!", exposição inserida nas comemorações do Centenário da República, comissariada pelo historiador Luís Farinha e com design de Henrique Cayatte.
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Figuras de homens e rapazes saídos de uma fotografia de Joshua Benoliel de um comício republicano cresceram e encavalitaram-se no topo de uma divisória em tamanho natural feita de tábuas de madeira, onde cartazes publicitários aos licores da Fábrica Âncora ou à "lexívia hygiénica" se misturam com panfletos apelando ao voto nas eleições municipais. Numa parede negra destaca-se: "A Revolução é matemática e fatal". Disse-o Bernardino Machado em Julho de 1908. A mudança aproximava-se.
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Num ecrã côncavo rodam à nossa volta imagens que marcam o fim de um regime: o ultimato inglês, as tentativas de D. Carlos para recuperar legitimidade política, as dívidas da monarquia. A sucessão de acontecimentos conduz-nos a outra parede com letras brancas salpicadas de sangue: 1 de Fevereiro de 1908, 17h10, Praça do Comércio. O regicídio.
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E a história prossegue pelas longuíssimas naves da Cordoaria. O crescendo de apoio aos republicanos, sobretudo depois da conquista da Câmara de Lisboa em 1908. Fotografias, textos, filmes que estavam esquecidos nos arquivos da Cinemateca e foram agora recuperados, um mapa de Lisboa no chão com focos de luz indicando os sítios dos confrontos na noite de 4 para 5 de Outubro de 1910. A implantação da república. Uma imagem pouco nítida da família real a fugir na praia da Ericeira.
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E depois... o Rossio dentro da Cordoaria. À nossa frente ergue-se a fachada do Teatro Nacional D. Maria II, atrás de nós uma fonte. E novas salas, paredes cheias de informação - a luta contra o clero, as jovens retiradas dos conventos e restituídas às famílias, as novas escolas, os banhos às crianças pobres na Trafaria, o novo culto da educação física.
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E a guerra. As trincheiras. África. A frente europeia. Os mortos de La Lys. As divisões entre os republicanos. Sidónio Pais. A gripe espanhola. A morte de Sidónio - a foto, a toda a altura da parede, manchada de sangue. A "noite sangrenta" de 19 de Outubro de 1921 (ouvem-se tiros, cavalos relincham nas ruas), mortes, assassínios, ajustes de contas. E já faltava pouco para os anos 20, os "anos loucos", as festas e os banhistas, o modernismo, Pessoa e Almada Negreiros. E para Gago Coutinho e Sacadura Cabral se lançarem na aventura de atravessarem de avião o Atlântico Sul (temos aqui cabines com jogos de vídeo em que podemos pilotar aviões).
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E falta pouco também para a república ser derrubada - não sem resistência, é certo - e para chegar Salazar, o "mago das Finanças". O fim da aventura.
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Menos é mais
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Durou apenas 16 anos a I República portuguesa. Mas esta não é uma história fácil de contar. Foram 16 anos intensos, cheios de nomes, heróis, anti-heróis, grupos e grupúsculos, instabilidade e mudanças históricas. Nasceu aí muito do que ainda somos hoje. Mas como se conta esta história?
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Henrique Cayatte resume o dilema: "É um período complexo, os historiadores têm sempre toneladas de informação - como é que se torna isso numa coisa legível, interessante e compreensível para o cidadão comum, que não sabe nada do assunto?" Primeira preocupação: "Transformar em curta uma longa história". Mas "sem ferir, nunca, a pesquisa que foi feita".
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Para o designer, "o resultado deve obedecer à máxima 'menos é mais' - menos informação para mais atenção e inteligibilidade", o que significa sacrificar muita da informação recolhida, muita da pesquisa, muitas imagens. Muito do que fica de fora pode ser aproveitado no catálogo ou no site, mas não deve sobrecarregar a exposição.
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Depois é preciso criar ritmo. "Cores, sons, espacialidades, disposição de textos, ecrãs e outros elementos avulsos têm de contribuir para criar ciclos de emoção e atenção, para tentar contrariar um discurso 'plano' e sem 'chama'." Um momento de maior informação, e de seguida um espaço aberto, como a Praça do Rossio.
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Uma coisa é evidente: não é fácil resumir a república. "Podemos falar dela pelos aspectos de mais fácil abordagem, como se fez com o Corpo ou o Turismo [as duas exposições também integradas no Centenário e que estão nos dois torreões do Terreiro do Paço], e poderíamos fazer o mesmo com a Cultura ou o Desporto. Com estas abordagens simplificadas teríamos mais facilidade em chegar ao grande público", diz o comissário Luís Farinha. "Mas uma exposição sobre a parte política não é fácil porque foi um período complexo. Foi complexo antes e durante a guerra e particularmente complexo depois da guerra, numa altura em que se estava a tentar encontrar outras soluções político-partidárias e não se conseguia. Tornar estas ideias acessíveis ao público não é fácil."
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Outro problema é que, numa exposição como esta, para um público geral, é preciso contar a história do princípio. "O estudo da história de Portugal [nas escolas] não é assim tão intenso sobre este período que permita que as pessoas tenham um conhecimento efectivo do que foi a I República", explica Fernanda Rollo, comissária executiva da comissão para as comemorações.
Houve nos últimos anos muita investigação, "mas ainda não passou em larga medida para os manuais do ensino básico e secundário", lamenta Luís Farinha. "Os manuais do 9º e do 12º ano, que são os que mais tratam a república, tratam-na muitíssimo mal. Para o 12º ano há manuais que têm três ou quatro páginas. Passa-se normalmente da implantação da república para a queda da república."
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Isto leva a que "olhemos para este período com um certo olhar crítico, deformado pela leitura que foi feita pela historiografia do regime que veio a seguir [o Estado Novo]", constata o comissário. "Há um conjunto de estereótipos e mitos que por vezes são difíceis de contrariar."
Um exemplo: a ideia de que a I República "não passou de um regime que utilizou de forma constante a violência, e em que os motins e as greves eram permanentes". É preciso contextualizar, defende Farinha. "Se olharmos para o sindicalismo a seguir à guerra e o virmos como uma resposta a uma sociedade onde havia falta de emprego, inflação galopante, a pneumónica, onde os conflitos sociais eram fortíssimos, estamos a ter uma perspectiva diferente das coisas. Há projectos políticos diferentes em confronto, o que vai desencadear períodos intermitentes de guerra civil. Isso é um facto indesmentível. Mas é uma primeira tentativa, falhada, de democratização da sociedade. Resumindo tudo à violência, estamos a dar uma ideia completamente deformada."
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O que é importante mostrar, defende Fernanda Rollo, é que "estamos a comemorar cem anos de uma alteração radical no modo de vida político de Portugal". Para compreendermos o que somos hoje temos que conhecer esse período histórico. "É nesse quadro que vivemos hoje, com o mesmo hino, a mesma bandeira, e, no fundo, sem nunca ter sido posto em causa o regime republicano." A I República "traz uma marca forte de modernidade e introduz uma série de propostas, algumas das quais não se chegaram a efectivar, mas que são valores e princípios determinantes até aos dias de hoje."
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Referência para uma geração
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O historiador Fernando Rosas (que não está ligado à exposição da Cordoaria, mas é um estudioso deste período) tenta explicar isso mesmo nas palestras e colóquios em que tem participado pelo país - "sinto-me quase em campanha eleitoral", brinca - neste ano de centenário da república. Confrontado com o mesmo problema de tornar curta uma história (muito) longa, chegou a uma fórmula em que tenta responder a três perguntas: Porque vence a república? O que ficou da república? Porque cai a república?
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Centremo-nos na obra que a república deixa e no que ela ainda pode significar para nós hoje. "Foi uma referência para uma geração inteira", diz Rosas. "Os constitucionalistas de 1976 aprenderam muito com a I República. O nosso regime é semi-presidencial para evitar os erros do parlamentarismo puro dessa altura. A república deixou coisas em que hoje ninguém repara mas que são definitivas: a separação do Estado e das igrejas (nem Salazar conseguiu mexer nisso); o registo civil (é preciso lembrar que todo os actos de nascimento, casamento e morte eram monopólio das paróquias católicas, e uma das batalhas mais violentas da república foi para nacionalizar o registo civil); e a obra simbólica, que é a mais importante de todos os regimes do século XX. A república vai direita ao assunto, muda o hino, a bandeira, a moeda. E faz uma revolução total na toponímia. Em todo o lado há uma Praça da República, uma avenida Almirante Reis ou Miguel Bombarda."
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Rosas é "neto de um velho republicano" e aprendeu a história da república a ouvir o avô durante os almoços das quartas-feiras em casa da mãe. "Contou-me coisas que são testemunhos irrecuperáveis. Por exemplo, a relação dos republicanos com o assassínio de Sidónio. Não há documentos nenhuns, mas lembro-me muito bem de ele me falar nisso."
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Mas se para algumas gerações, a república é a referência - "o Partido Socialista de Mário Soares vem da esquerda republicana que surge no pós-guerra", sublinha Rosas - e se há "um grupo de jovens intelectuais oriundos desse republicanismo radical que vai marcar profundamente a política portuguesa toda", as gerações mais novas já não têm esta referência tão presente. E é isso que exige que a exposição da Cordoaria seja didáctica.
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"Tínhamos como ponto de partida um período histórico extenso e muito atribulado, que podia ser exposto de muitas formas, um espaço especial - a Cordoaria Nacional - um orçamento que não podíamos ultrapassar e um calendário muito apertado", recorda Cayatte. Houve uma preocupação essencial: "Procurar ser isento e não adjectivar nem positiva nem negativamente este ou aquele período, político ou acontecimento". E "se isso é crítico no que diz respeito ao conjunto da investigação também o deve ser no design."
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Ou seja, não fazer uma leitura maniqueísta da história, não cair na tentação de apresentar heróis e anti-heróis. "Tentámos não esconder nada do que se passou - tanto quanto é possível dentro dos 400 metros da Cordoaria", afirma Luís Farinha. Uma das preocupações foi mostrar rostos. Se o rei D. Carlos é facilmente identificável, já os muitos protagonistas da república são menos conhecidos. "Quisemos que a exposição tivesse rostos. Se há época no século XX em que há grandes movimentos de massas, em que muita coisa se passa na rua, é na república. Toda essa movimentação traz milhares de rostos anónimos, traz uma mudança grande das elites. Em 1911 não está nos órgãos políticos praticamente ninguém que estava nos anos anteriores. Desse ponto de vista podemos compará-la ao 25 de Abril."
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A opção foi, em cada um dos núcleos em que se divide a exposição, destacar "uma personalidade que pudesse ser a mais significativa." Na sala que conta a noite de 4 para 5 de Outubro, por exemplo, "só podia ser o rosto de Machado dos Santos, é indiscutível, não há mais ninguém na Rotunda a não ser ele" (o militar que não desistiu quando os outros achavam que a revolução estava perdida).
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Material gráfico não faltou. "Há fotografias excelentes", continua o comissário. "Um terço da exposição é do [Joshua] Benoliel, um fotógrafo fantástico. Havia na época um fotojornalismo de grande qualidade. E a imprensa vai trazer novidades ao nível do tratamento gráfico". Tudo isto inspirou a equipa que montou a exposição. "O taipal que está no início [com os homens empoleirados] foi inspirado numa fotografia de Benoliel de um comício na avenida D. Amélia, onde hoje começa a Almirante Reis, a zona onde na altura havia todos os comícios."
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O mais complicado foi o último núcleo, que conta o confuso período que se seguiu à queda da república em 28 de Maio de 1926. Foram anos de golpes e contra-golpes, durante os quais a república tentou resistir. "Aí tivemos o cuidado de pôr em confronto sempre um projecto de esquerda e um de direita, de um lado os seareiros [da revista Seara Nova], e do outro os nacionalistas, exactamente com o mesmo peso."
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Mas não passou ainda o tempo suficiente para que o olhar sobre a república possa ser consensual. Para Rosas, um dos "cinco pecados capitais" que levaram à queda do regime foi a decisão de entrar na I Guerra. "Foi inteiramente suicidária, uma loucura total. Ainda hoje tenho a maior das dificuldades em entender como é que políticos responsáveis lançaram um país rural, quase sem indústria, naquilo que era o conflito tecnologicamente mais sofisticado que a humanidade tinha conhecido."
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Luís Farinha tem outro olhar. "Interessa-me compreender aquele projecto, que é nacionalista, colonialista. Os republicanos têm uma estratégia clara que é a de ancorar o desenvolvimento do país em três margens do Atlântico: Portugal, Angola e o Brasil. E é a partir das colónias que se acende a ideia de que estas se vão perder se Portugal não entrar no conflito europeu. A república encara o projecto ultramarino como central para a existência do país: Portugal só é possível com as colónias."
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Mas se o grafismo e a estética da república foram uma influência da exposição, houve outras características daquele período determinantes para o olhar dos que nela trabalharam. "O mais importante é a liberdade", diz Cayatte. "De se pensar e de se debater, de se trocar pontos de vista, muitas vezes contraditórios, e de se perceber que afinal este é um tema que apaixona as pessoas. Umas a favor e outras contra. Umas contra tudo e outras a favor de tudo. Outras nem por isso."
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Esta, sublinha o designer, não é uma exposição "panfletária". "Procura perceber o que se passou e como se passou. O design tem que secundar essa preocupação. Seria um erro que tivesse resultado numa exposição 'pirotécnica' de efeitos que tivesse subjugado o que é, de facto, importante: contar a história."
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Entramos, e na primeira sala Portugal asfixia.
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"Asfixiava-se", conta-nos o texto na parede. Era desta forma que, em 1909, Raul Proença resumia o estado de espírito do país num texto publicado no jornal "A Vanguarda". "O Governo de João Franco, esse execrável criminoso político, esse nevropata perigoso, sem uma ideia nem um afecto, tinha atingido o cúmulo do despotismo. Pairava sobre a pátria portuguesa uma aflição, que oprimia e que sufocava. A vontade de rir fora-se. Sob este céu clemente e azul só ficara a vontade das lágrimas ou a vontade da revolta."
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Começa assim, ainda no estrebuchar da monarquia, a contar-se a história da república no enorme espaço da Cordoaria Nacional, em "Viva a República!", exposição inserida nas comemorações do Centenário da República, comissariada pelo historiador Luís Farinha e com design de Henrique Cayatte.
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Figuras de homens e rapazes saídos de uma fotografia de Joshua Benoliel de um comício republicano cresceram e encavalitaram-se no topo de uma divisória em tamanho natural feita de tábuas de madeira, onde cartazes publicitários aos licores da Fábrica Âncora ou à "lexívia hygiénica" se misturam com panfletos apelando ao voto nas eleições municipais. Numa parede negra destaca-se: "A Revolução é matemática e fatal". Disse-o Bernardino Machado em Julho de 1908. A mudança aproximava-se.
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Num ecrã côncavo rodam à nossa volta imagens que marcam o fim de um regime: o ultimato inglês, as tentativas de D. Carlos para recuperar legitimidade política, as dívidas da monarquia. A sucessão de acontecimentos conduz-nos a outra parede com letras brancas salpicadas de sangue: 1 de Fevereiro de 1908, 17h10, Praça do Comércio. O regicídio.
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E a história prossegue pelas longuíssimas naves da Cordoaria. O crescendo de apoio aos republicanos, sobretudo depois da conquista da Câmara de Lisboa em 1908. Fotografias, textos, filmes que estavam esquecidos nos arquivos da Cinemateca e foram agora recuperados, um mapa de Lisboa no chão com focos de luz indicando os sítios dos confrontos na noite de 4 para 5 de Outubro de 1910. A implantação da república. Uma imagem pouco nítida da família real a fugir na praia da Ericeira.
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E depois... o Rossio dentro da Cordoaria. À nossa frente ergue-se a fachada do Teatro Nacional D. Maria II, atrás de nós uma fonte. E novas salas, paredes cheias de informação - a luta contra o clero, as jovens retiradas dos conventos e restituídas às famílias, as novas escolas, os banhos às crianças pobres na Trafaria, o novo culto da educação física.
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E a guerra. As trincheiras. África. A frente europeia. Os mortos de La Lys. As divisões entre os republicanos. Sidónio Pais. A gripe espanhola. A morte de Sidónio - a foto, a toda a altura da parede, manchada de sangue. A "noite sangrenta" de 19 de Outubro de 1921 (ouvem-se tiros, cavalos relincham nas ruas), mortes, assassínios, ajustes de contas. E já faltava pouco para os anos 20, os "anos loucos", as festas e os banhistas, o modernismo, Pessoa e Almada Negreiros. E para Gago Coutinho e Sacadura Cabral se lançarem na aventura de atravessarem de avião o Atlântico Sul (temos aqui cabines com jogos de vídeo em que podemos pilotar aviões).
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E falta pouco também para a república ser derrubada - não sem resistência, é certo - e para chegar Salazar, o "mago das Finanças". O fim da aventura.
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Menos é mais
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Durou apenas 16 anos a I República portuguesa. Mas esta não é uma história fácil de contar. Foram 16 anos intensos, cheios de nomes, heróis, anti-heróis, grupos e grupúsculos, instabilidade e mudanças históricas. Nasceu aí muito do que ainda somos hoje. Mas como se conta esta história?
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Henrique Cayatte resume o dilema: "É um período complexo, os historiadores têm sempre toneladas de informação - como é que se torna isso numa coisa legível, interessante e compreensível para o cidadão comum, que não sabe nada do assunto?" Primeira preocupação: "Transformar em curta uma longa história". Mas "sem ferir, nunca, a pesquisa que foi feita".
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Para o designer, "o resultado deve obedecer à máxima 'menos é mais' - menos informação para mais atenção e inteligibilidade", o que significa sacrificar muita da informação recolhida, muita da pesquisa, muitas imagens. Muito do que fica de fora pode ser aproveitado no catálogo ou no site, mas não deve sobrecarregar a exposição.
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Depois é preciso criar ritmo. "Cores, sons, espacialidades, disposição de textos, ecrãs e outros elementos avulsos têm de contribuir para criar ciclos de emoção e atenção, para tentar contrariar um discurso 'plano' e sem 'chama'." Um momento de maior informação, e de seguida um espaço aberto, como a Praça do Rossio.
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Uma coisa é evidente: não é fácil resumir a república. "Podemos falar dela pelos aspectos de mais fácil abordagem, como se fez com o Corpo ou o Turismo [as duas exposições também integradas no Centenário e que estão nos dois torreões do Terreiro do Paço], e poderíamos fazer o mesmo com a Cultura ou o Desporto. Com estas abordagens simplificadas teríamos mais facilidade em chegar ao grande público", diz o comissário Luís Farinha. "Mas uma exposição sobre a parte política não é fácil porque foi um período complexo. Foi complexo antes e durante a guerra e particularmente complexo depois da guerra, numa altura em que se estava a tentar encontrar outras soluções político-partidárias e não se conseguia. Tornar estas ideias acessíveis ao público não é fácil."
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Outro problema é que, numa exposição como esta, para um público geral, é preciso contar a história do princípio. "O estudo da história de Portugal [nas escolas] não é assim tão intenso sobre este período que permita que as pessoas tenham um conhecimento efectivo do que foi a I República", explica Fernanda Rollo, comissária executiva da comissão para as comemorações.
Houve nos últimos anos muita investigação, "mas ainda não passou em larga medida para os manuais do ensino básico e secundário", lamenta Luís Farinha. "Os manuais do 9º e do 12º ano, que são os que mais tratam a república, tratam-na muitíssimo mal. Para o 12º ano há manuais que têm três ou quatro páginas. Passa-se normalmente da implantação da república para a queda da república."
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Isto leva a que "olhemos para este período com um certo olhar crítico, deformado pela leitura que foi feita pela historiografia do regime que veio a seguir [o Estado Novo]", constata o comissário. "Há um conjunto de estereótipos e mitos que por vezes são difíceis de contrariar."
Um exemplo: a ideia de que a I República "não passou de um regime que utilizou de forma constante a violência, e em que os motins e as greves eram permanentes". É preciso contextualizar, defende Farinha. "Se olharmos para o sindicalismo a seguir à guerra e o virmos como uma resposta a uma sociedade onde havia falta de emprego, inflação galopante, a pneumónica, onde os conflitos sociais eram fortíssimos, estamos a ter uma perspectiva diferente das coisas. Há projectos políticos diferentes em confronto, o que vai desencadear períodos intermitentes de guerra civil. Isso é um facto indesmentível. Mas é uma primeira tentativa, falhada, de democratização da sociedade. Resumindo tudo à violência, estamos a dar uma ideia completamente deformada."
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O que é importante mostrar, defende Fernanda Rollo, é que "estamos a comemorar cem anos de uma alteração radical no modo de vida político de Portugal". Para compreendermos o que somos hoje temos que conhecer esse período histórico. "É nesse quadro que vivemos hoje, com o mesmo hino, a mesma bandeira, e, no fundo, sem nunca ter sido posto em causa o regime republicano." A I República "traz uma marca forte de modernidade e introduz uma série de propostas, algumas das quais não se chegaram a efectivar, mas que são valores e princípios determinantes até aos dias de hoje."
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Referência para uma geração
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O historiador Fernando Rosas (que não está ligado à exposição da Cordoaria, mas é um estudioso deste período) tenta explicar isso mesmo nas palestras e colóquios em que tem participado pelo país - "sinto-me quase em campanha eleitoral", brinca - neste ano de centenário da república. Confrontado com o mesmo problema de tornar curta uma história (muito) longa, chegou a uma fórmula em que tenta responder a três perguntas: Porque vence a república? O que ficou da república? Porque cai a república?
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Centremo-nos na obra que a república deixa e no que ela ainda pode significar para nós hoje. "Foi uma referência para uma geração inteira", diz Rosas. "Os constitucionalistas de 1976 aprenderam muito com a I República. O nosso regime é semi-presidencial para evitar os erros do parlamentarismo puro dessa altura. A república deixou coisas em que hoje ninguém repara mas que são definitivas: a separação do Estado e das igrejas (nem Salazar conseguiu mexer nisso); o registo civil (é preciso lembrar que todo os actos de nascimento, casamento e morte eram monopólio das paróquias católicas, e uma das batalhas mais violentas da república foi para nacionalizar o registo civil); e a obra simbólica, que é a mais importante de todos os regimes do século XX. A república vai direita ao assunto, muda o hino, a bandeira, a moeda. E faz uma revolução total na toponímia. Em todo o lado há uma Praça da República, uma avenida Almirante Reis ou Miguel Bombarda."
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Rosas é "neto de um velho republicano" e aprendeu a história da república a ouvir o avô durante os almoços das quartas-feiras em casa da mãe. "Contou-me coisas que são testemunhos irrecuperáveis. Por exemplo, a relação dos republicanos com o assassínio de Sidónio. Não há documentos nenhuns, mas lembro-me muito bem de ele me falar nisso."
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Mas se para algumas gerações, a república é a referência - "o Partido Socialista de Mário Soares vem da esquerda republicana que surge no pós-guerra", sublinha Rosas - e se há "um grupo de jovens intelectuais oriundos desse republicanismo radical que vai marcar profundamente a política portuguesa toda", as gerações mais novas já não têm esta referência tão presente. E é isso que exige que a exposição da Cordoaria seja didáctica.
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"Tínhamos como ponto de partida um período histórico extenso e muito atribulado, que podia ser exposto de muitas formas, um espaço especial - a Cordoaria Nacional - um orçamento que não podíamos ultrapassar e um calendário muito apertado", recorda Cayatte. Houve uma preocupação essencial: "Procurar ser isento e não adjectivar nem positiva nem negativamente este ou aquele período, político ou acontecimento". E "se isso é crítico no que diz respeito ao conjunto da investigação também o deve ser no design."
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Ou seja, não fazer uma leitura maniqueísta da história, não cair na tentação de apresentar heróis e anti-heróis. "Tentámos não esconder nada do que se passou - tanto quanto é possível dentro dos 400 metros da Cordoaria", afirma Luís Farinha. Uma das preocupações foi mostrar rostos. Se o rei D. Carlos é facilmente identificável, já os muitos protagonistas da república são menos conhecidos. "Quisemos que a exposição tivesse rostos. Se há época no século XX em que há grandes movimentos de massas, em que muita coisa se passa na rua, é na república. Toda essa movimentação traz milhares de rostos anónimos, traz uma mudança grande das elites. Em 1911 não está nos órgãos políticos praticamente ninguém que estava nos anos anteriores. Desse ponto de vista podemos compará-la ao 25 de Abril."
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A opção foi, em cada um dos núcleos em que se divide a exposição, destacar "uma personalidade que pudesse ser a mais significativa." Na sala que conta a noite de 4 para 5 de Outubro, por exemplo, "só podia ser o rosto de Machado dos Santos, é indiscutível, não há mais ninguém na Rotunda a não ser ele" (o militar que não desistiu quando os outros achavam que a revolução estava perdida).
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Material gráfico não faltou. "Há fotografias excelentes", continua o comissário. "Um terço da exposição é do [Joshua] Benoliel, um fotógrafo fantástico. Havia na época um fotojornalismo de grande qualidade. E a imprensa vai trazer novidades ao nível do tratamento gráfico". Tudo isto inspirou a equipa que montou a exposição. "O taipal que está no início [com os homens empoleirados] foi inspirado numa fotografia de Benoliel de um comício na avenida D. Amélia, onde hoje começa a Almirante Reis, a zona onde na altura havia todos os comícios."
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O mais complicado foi o último núcleo, que conta o confuso período que se seguiu à queda da república em 28 de Maio de 1926. Foram anos de golpes e contra-golpes, durante os quais a república tentou resistir. "Aí tivemos o cuidado de pôr em confronto sempre um projecto de esquerda e um de direita, de um lado os seareiros [da revista Seara Nova], e do outro os nacionalistas, exactamente com o mesmo peso."
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Mas não passou ainda o tempo suficiente para que o olhar sobre a república possa ser consensual. Para Rosas, um dos "cinco pecados capitais" que levaram à queda do regime foi a decisão de entrar na I Guerra. "Foi inteiramente suicidária, uma loucura total. Ainda hoje tenho a maior das dificuldades em entender como é que políticos responsáveis lançaram um país rural, quase sem indústria, naquilo que era o conflito tecnologicamente mais sofisticado que a humanidade tinha conhecido."
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Luís Farinha tem outro olhar. "Interessa-me compreender aquele projecto, que é nacionalista, colonialista. Os republicanos têm uma estratégia clara que é a de ancorar o desenvolvimento do país em três margens do Atlântico: Portugal, Angola e o Brasil. E é a partir das colónias que se acende a ideia de que estas se vão perder se Portugal não entrar no conflito europeu. A república encara o projecto ultramarino como central para a existência do país: Portugal só é possível com as colónias."
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Mas se o grafismo e a estética da república foram uma influência da exposição, houve outras características daquele período determinantes para o olhar dos que nela trabalharam. "O mais importante é a liberdade", diz Cayatte. "De se pensar e de se debater, de se trocar pontos de vista, muitas vezes contraditórios, e de se perceber que afinal este é um tema que apaixona as pessoas. Umas a favor e outras contra. Umas contra tudo e outras a favor de tudo. Outras nem por isso."
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Esta, sublinha o designer, não é uma exposição "panfletária". "Procura perceber o que se passou e como se passou. O design tem que secundar essa preocupação. Seria um erro que tivesse resultado numa exposição 'pirotécnica' de efeitos que tivesse subjugado o que é, de facto, importante: contar a história."
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