Entrada Agência Brasil de Fato Entrevistas “A pobreza extrema do Haiti é uma construção histórica bi-centenária”
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por Admin última modificação 2010-01-21 12:11
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Segundo o historiador Mário Maestri, séculos de intervenção colonialista e imperialista sobre o país caribenho geraram a miséria que hoje potencializa os efeitos do terremoto do dia 12
21/01/2010
Igor Ojeda
da Redação
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Se existe uma análise com a qual todos os meios de comunicação do mundo concordam em relação ao tremor de terra ocorrido no dia 12 no Haiti é a que diz que se o país fosse menos pobre, os efeitos do desastre seriam menores. As causas dessa pobreza, no entanto, muito raramente são explicadas. De acordo com o historiador Mário Maestri, professor do Programa de Pós Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (UPF), do Rio Grande do Sul, o subdesenvolvimento haitiano tem suas raízes na extrema dependência em que a nação do Caribe foi permanentemente mantida pelas potências coloniais e imperialistas.
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Nesta entrevista ao Brasil de Fato, Maestri analisa as causas estruturais da pobreza e do êxodo rural no Haiti – que, ao gerar moradias precárias nas cidades, também contribuiu para o agravamento das consequências do terremoto –, a responsabilidade da missão de paz da ONU comandada pelo Brasil, o envio de militares pelos EUA e os riscos do processo de reconstrução do país. “A reconstrução pode constituir balão de ensaio para uma gestão não-nacional de territórios por órgãos internacionais, não-estatais etc. As grandes catástrofes são os melhores momentos para o capital realizar reorganizações estruturais de populações e recursos”.
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Brasil de Fato – A grande mídia, nacional e internacional, vem insistindo que a extrema pobreza do Haiti fez agravar as consequências do terremoto. No entanto, a mesma imprensa não diz quais são as causas dessa pobreza. Por que o Haiti é o país de menor IDH do hemisfério ocidental?
Mário Maestri – A pobreza extrema do Haiti é uma construção histórica bi-centenária, produto da incessante intervenção colonialista e imperialista, em boa parte devido precisamente a ter sido o Haiti a primeira e única nação negreira onde os trabalhadores escravizados insurrecionados obtiveram a liberdade, em 1804. Isso após derrotar expedições militares francesas, inglesas e espanholas. Ao se transformar no segundo Estado americano a obter a independência, após os EUA, e o primeiro a abolir a escravidão, o Haiti passou a ser temido, pois poderia servir como exemplo para os cativos americanos. Foi objeto de bloqueio quase total, desde seus primeiros anos, pelas nações metropolitanas e americanas independentes. Já em 1825, foi obrigado a pagar, sob pena de agressão militar, pesadíssima indenização à França. Conheceu nas décadas seguintes intervenções militares dos EUA, que, mesmo após a desocupação, em 1934, transformaram o país em semi-colônia, sobretudo através das sinistras ditaduras dos Duvaliers, Papa-Doc e seu filho [entre 1957 e 1986].
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Algumas análises indicam que a grande quantidade de haitianos vivendo em Porto Príncipe, em casas amontoadas nas favelas, foi um dos fatores que determinaram um alto número de vítimas do terremoto. Por que se chegou a essa situação de forte migração do campo para a cidade?
O regime histórico da propriedade da terra no Haiti foi a plantagem escravista. Com a revolução de 1804, houve importante divisão de latifúndios em lotes unifamiliares, que retomaram as tradições camponesas negro-africanas, ensejando independência alimentar. Isto não produzia excedentes mercantilizáveis. As intervenções imperialistas, com a colaboração das frágeis e corruptas elites negras e mulatas, desdobraram-se para metamorfosear a agricultura familiar-camponesa em mercantil. Levantes camponeses foram duramente reprimidos, para reconstituir a grande propriedade. A expropriação da terra e a reversão para produtos comerciais ensejou enorme migração urbana, nascida também da depredação do meio ambiente, com o desmatamento selvagem para a produção de carvão vegetal, com o aumento do seu uso como combustível doméstico, imposto pelo imperialismo. As enormes massas de miseráveis urbanos são vistas como mão-de-obra extremamente barata para as indústrias maquiladoras que se estabeleceram no Haiti. As forças brasileiras e da ONU têm reprimido duramente as manifestações pelo aumento do ínfimo salário mínimo.
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Seis anos após o golpe contra Jean-Bertrand Aristide e a chegada da Minustah, a situação não melhorou. Por quê?
A intervenção militar franco-estadunidense orquestrada pelo governo Bush afastou o presidente constitucional Jean-Bertrand Aristide, em 29 de fevereiro de 2004. Ainda que ele tivesse rompido com suas antigas raízes populares e de esquerda, seu governo lutava por autonomia relativa e despertava a mobilização social. O que era inaceitável, em uma região próxima de Cuba e fundamental aos EUA. Devido ao envolvimento no Iraque, Bush 2º convocou o presidente Lula da Silva para capitanear a ocupação militar (e pagar seus custos, é claro), participando da organização de governo títere pró-imperialista. Essa ocupação deveria reorganizar a ilha segundo os interesses políticos do grande capital, sobretudo franco-estadunidense. O governo Lula da Silva aceitou o convite envenenado para fortalecer seu objetivo de ingressar, inferiorizado, sem direito, como membro do Conselho de Segurança Permanente da ONU. Foi também uma concessão à alta oficialidade das Forças Armadas brasileiras, com interesses econômicos, políticos, ideológicos na operação. Nos últimos seis anos, as tropas brasileiras comandaram a repressão, praticamente sem qualquer oposição por parte da imensa maioria dos partidos, sindicatos, organizações etc. ditos populares e de esquerda do Brasil. Deve-se destacar o silêncio do movimento negro organizado, atrelado ao governismo. A prova dos nove dessa intervenção se deu durante e sobretudo após essa terrível catástrofe, com a total ausência de Estado e de instituições haitianas autônomas, que jamais se pretendeu criar. Apenas o presidente [René] Préval funciona como testa de ferro do despudorado intervencionismo internacional em nome da solidariedade que acaba de se concluir com a ocupação militar dos EUA no país, que ignorou olimpicamente a ONU e o seu preposto brasileiro, que já não sabe mais onde se meter. Hillary [Clinton, secretária de Estado dos EUA] acaba de propor que o parlamento e o presidente dêem carta branca aos Estados Unidos nas operações!
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Fala-se em "desconcentrar" a capital, oseja, incentivar a volta da população para seus povoados de origem, de onde saíram devido à falta de oportunidades. O senhor acha isso uma boa ideia no momento? O que isso pode trazer como consequência a médio e longo prazo?
A operação humanitária tem se dado no contexto de enorme desprezo imperialista, prenhe de racismo implícito. Realidade que se registra na proposta de enviar parte da população urbana ao campo sem qualquer consulta à mesma! Deve-se destacar o claro corte polpotiano da proposta e que parte dessa população não tem mais raízes agrárias. Não podemos esquecer, também, que o campo não apresenta condições para incorporar os que aceitem a solução – acesso à terra, recursos contra a erosão, combate à falta de água, financiamento, ajuda durante os primeiros tempos, preços mínimos para a produção etc. Após a terrível passagem do furacão Jeanne [em 2008], a única contribuição real da chamada comunidade internacional foi a reorganização da política para reprimir os seguidores de Aristide.
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Qual sua avaliação sobre a atuação que a comunidade internacional vem tendo em relação ao terremoto no Haiti, como por exemplo o anúncio da liberação de centenas de milhões de dólares?
O que vemos, até agora, passada uma semana do desastre, é uma desassistência indiscutivelmente responsável por dezenas de milhares de mortos. Dizer que não era possível chegar aos necessitados por razões logísticas é piada. Se fosse insurreição popular desarmada, em dois dias haveria um soldado imperialista em cada esquina! No frigir dos ovos, muito se falou e pouco se fez. Até porque o objetivo era esse. Para além dos bem intencionados, há uma enorme indústria internacional, ligada ao imperialismo, formada por milhares de pequenas, médias e grandes ONGs especializadas na assistência às catástrofes que necessitam e se locupletam com tais sucessos, para financiar seus enormes aparatos administrativos que mitigam o desemprego do Primeiro Mundo. Boa parte dos fundos postos à disposição do Haiti pelos organismos internacionais, como o FMI e o Banco Mundial são empréstimos que deverão ser pagos sempre com o sangue e suor da população.
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Ao mesmo tempo, o Haiti possui uma dívida externa de mais de 1 bilhão de dólares. Não é contraditório?
Não, não é contraditório. É necessário, para manter a dependência. Veremos que no final de tudo, essa dívida será ainda maior! Temos que lembrar que a catástrofe haitiana mantinha-se nos últimos anos, com parte da população do país comendo literalmente bolos de terra, sem que nada fosse realmente feito, a não ser controlar militarmente o país e reprimir a organização e a mobilização popular. Víamos sempre belos soldados, belos tanques, belos fuzis, funcionários bem falantes e uma enorme miséria popular.
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Há algumas críticas (inclusive de Brasil e França) em relação a um suposto controle excessivo dos EUA sobre a ajuda humanitária. Os trabalhos de resgate estão sendo organizados pelo Pentágono e pela USAID. Inclusive, alguns denunciam que, no aeroporto de Porto Príncipe, controlado pelos EUA, os estadunidenses estariam priorizando o pouso de aviões de seu país, alguns deles vindo com militares. Além disso, Obama prometeu enviar 10 mil marines ao Haiti, o que causou preocupação sobre uma eventual ocupação militar. O que o senhor pensa sobre tudo isso?
Aristide, deposto em 1991 pelo governo estadunidense republicano [de George Bush pai], voltou ao governo, em 1994, devido à intervenção patrocinada pelos democratas, de novo no governo [Bill Clinton]. A intervenção no Haiti, em 2004 foi novamente ação republicana de um país sob a presidência de Bush 2º, que contou com a oposição dos democratas, sobretudo da burguesia e da intelectualidade negra desse partido. Atualmente, no governo dos EUA se encontra um democrata negro. Se associamos isso à tradição imperialista, compreenderemos o enorme ativismo estadunidense com viés militarista. Cuba manda médicos. Os EUA, porta-aviões e marines de fuzis! Não é certo ainda o que os democratas e Obama pretendem para o Haiti. Talvez sequer eles saibam precisamente o que fazer com o sofrido país, devido ao caráter inesperado da crise. Há, porém, elementos claros. A ocupação militar do país, com tropas infinitamente maiores às da ONU, deixam claro que, nessa região, é o imperialismo estadunidense que manda. Um movimento que se associa ao retorno dos EUA à América Central e do Sul, expresso no golpe de Estado em Honduras, nas bases militares na Colômbia etc. O governo Obama teme igualmente uma imigração maciça clandestina de haitianos para os EUA. Vai ficar muito feio prender em campos de concentração uma população negra! É melhor no próprio país dela, mesmo morrendo de fome! Hoje, na região, o grande problema é a Venezuela. Certamente teremos novas bases militares dos EUA no Haiti, região estratégica, e muito barata!
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Já se começa a ouvir algumas vozes falando em reconstrução do Haiti. Quais os riscos que trazem as reconstruções depois de tragédias naturais e o que o senhor acha que pode ocorrer no Haiti?
A grande imprensa do Brasil, com destaque para a Globo, retoma a proposta internacional de tratar o Haiti como Estado falido. Ou seja, nação incapaz de se organizar e reger por si só, tendo que ser monitorada, para seu bem. Como está ocorrendo agora! Uma volta aos tempos dos protetorados. A reconstrução pode constituir balão de ensaio para uma gestão não-nacional de territórios por órgãos internacionais, não-estatais etc. As grandes catástrofes são os melhores momentos para o capital realizar reorganizações estruturais de populações e recursos. Nuvens terríveis cobrem os horizontes do povo haitiano. Os trabalhadores e todos os homens e mulheres de bem do país devem se mobilizar contra isso. A primeira exigência deve ser a imediata saída das tropas de ocupação brasileiras do Haiti, substituídas por médicos, enfermeiros, engenheiros, agrônomos. Temos que ajudar a plantar a vida, não a morte, nesse país glorioso. Se o Nelson Jobim quiser voltar fantasiado ao país sofrido, que seja de médico!
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