Vasco Neves
Maria Dolores espera vaga num lar. Será a primeira vez que sairá de Vila Berta. Tem 93 anos
Histórias
As vilas e os pátios que Lisboa esconde
Na Graça, uma vila ruiu este mês. São precisos muitos dedos para contar todas as que existem na capital. A Domingo foi espreitar.
- 16 Maio 2010 - Correio da Manhã
No miolo de Alfama, num bairro com cheiro de aldeia, um gancho em ferro "do antigamente" resiste a todas as obras – rezam os moradores que era ali que os carrascos enforcavam os condenados. Será o único vestígio de um passado tão longínquo que ninguém que ali mora pode dizer com certeza que naquele pátio se encontravam mais do que as cavalariças do antigo Palácio do Conde Andeiro.
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Até porque os moradores do Pátio do Carrasco não se fiam nas desgraças apesar de saberem as lendas de cor. São gente que ali nasceu, ali cresceu e ali deu à luz. Gente que dá sal e azeite, que empresta brasas para assar sardinhas e que até serve um "copinho" de água se a sede do vizinho o justificar. Lisboa esconde vilas e pátios como este nas ruelas e calçadas. Seriam mil em 1992, ano em que uma centena foi considerada de interesse patrimonial pela autarquia. A antiga vila situada nas Escadinhas da Graça, na rua Damasceno Monteiro – que ruiu no início do mês – não constava da lista a recuperar.
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O Carrasco sim. "Temos muito orgulho do nosso pátio, primamos por ter tudo bonito e adoramos quando os turistas tiram fotografias". Um anúncio de uma marca de refrigerantes foi inclusive aqui filmado – uma rodagem que insuflou o ego aos moradores. Em época de Santos Populares, quando o cheiro das sardinhas que os vizinhos assam em conjunto convida os visitantes a entrar, o difícil "é explicar que isto não é nenhum restaurante típico". É Fernanda Campos quem o conta. Em 59 anos de vida, passou 15 fora do pátio onde nasceu, num casamento que a levou dali para fora mas terminou em divórcio.
A tia, Maria Susete, de 80 anos, é a mais antiga moradora do bairro. O filho, que morava no 5, "casou com a moça do 3, namorada desde a infância" e só não moram na zona "porque as casas são pequenas e caras". Tirando a juventude, que escolhe fazer vida nos subúrbios, os que já foram é porque não voltam nunca mais. "Do nosso tempo já morreu muita gente aqui do pátio", conta a prima de Fernanda, Gabriela Rua, de 65, que no Pátio criou quatro filhos. "Esta casa está na minha família há pelo menos 100 anos". Em regime de arrendamento, tal como a maioria das casas que ali convergem. "Os meus irmãos saíram todos, alguns até para o estrangeiro, eu fiquei sempre. Nem me imagino a sair do sítio onde sempre morei".
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93 ANOS NA VILA
Maria Dolores não mora em Alfama – mas na Graça, numa vila de onde também nunca saiu. Nem mesmo o casamento tardio, aos 40 anos, lhe alterou a morada. Só agora, com 96 anos, prepara a mudança. "E não é lá para o outro lado", diz, referindo-se à morte. "É para o Lar dos Inválidos do Comércio, estou à espera de uma vaga". Será a primeira vez em 93 anos que sairá da Vila Berta – onde mora desde os três. Vai ter saudades da vila onde brincou, namorou, casou – e onde perdeu partes do coração à medida que iam desaparecendo os seus. "Mas não sou muito apegada aos bens materiais, também já não vejo bem, por isso aquilo que me vai fazer mais falta é o meu afilhado", que lhe faz companhia à noite.
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Se saísse amiúde de casa a idosa encontrar-se ia várias vezes com Estêvão Tojal, bisneto do fundador da Vila Berta, que mora na ‘Casa da Quinta’, a maior do bairro. Segundo conta o arquitecto, "o nome da Vila, que existe desde 1900, deve-se ao facto do Joaquim Francisco Tojal ter tido apenas uma filha mulher, Berta". A influência do início do século vê-se no uso do ferro – "era a única vila de carácter essencialmente imobiliário e não operário, como as demais. Foi dividida em duas frentes: uma mais nobre, a zona das varandas, a outra menos. O meu bisavô era um investidor ligado à construção civil e ainda estão na posse da família cerca de 40 a 50% dos prédios".
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Chegou a ter, "até ao 25 de Abril, um guarda a cargo da família, que regava também as plantas e era na nossa casa que se acendia a luz da Vila". Jorge Ferreira, funcionário da Câmara, comprou ali o seu T4 há onze anos. "Custou 15 mil contos e como queria morar na Graça achei que era uma boa oportunidade de preço". Não queria sair da freguesia porque foi lá que nasceu, curiosamente na Vila Sousa, uma outra vila, a poucos passos da Berta. Lembra-se, por isso, de "ir em garoto buscar água em garrafões à cisterna que havia num pátio por detrás". E de ouvir a mãe contar que assistiu à fuga de umas presas da Cadeia das Mónicas, que era ao virar da esquina".
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A CASA ERA UMA VACARIA
Onde hoje estão os naperons, a mobília e as memórias de 35 anos de vida "era uma vacaria. A minha casa era uma vacaria no tempo dos Agostinhos. Também foi de condes e de gente importante", repete Assunção Redondo, uma reformada de 62 anos que encontramos na Vila Sousa, em conversa de janela com uma vizinha da frente.
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"Muita gente dos antigos já foi morrendo mas quem ainda está continua a falar". A perguntar se as dores passaram, a xingar o tempo frio para Maio. No livro ‘Prédios e Vilas de Lisboa’, de Nuno Teotónio Pereira e Irene Buarque, lê-se que esta vila "constitui um caso à parte, visto tratar-se da ampliação de um antigo palácio, em cujas traseiras existe um amplo pátio – o tal onde Jorge ia buscar água – construído em 1889". Bem depois disso, já durante o século XX, houve ali uma oficina, uma padaria e a conhecida mercearia das velas, além do botequim de Natália Correia.
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Hoje já não, mas o único desabafo de Assunção não tem a ver com a renda (a idosa paga 12 euros) mas com o facto de "os carros de fora estacionarem aqui dentro, coisa que não acontecia quando tínhamos porteiro, que às cinco e tal da manhã já andava a varrer".
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COLECTIVIDADE HÁ 80 ANOS
Na íngreme travessa do Conde da Ribeira, em Alcântara, esconde-se uma vila com mais frequência de reformados que o centro de saúde. Não que lá more muita gente – actualmente duas famílias contra a dezena de outrora – mas por causa da fama da colectividade ‘Os 31 de Santo Amaro’. Diz o presidente do grupo de excursionistas, José Silva, que a vila "era antes uma cocheira do Palácio Valle-Flor, daí ainda ter os ferros onde amarravam os cavalos". Há quase um século que ali está o grupo que nasceu "por causa de um balão, que se tornou uma adega" e que hoje é sinónimo de cartas, jogo da laranjinha (uma espécie de bowling artesanal) e de dois dedos de prosa antes da noite cair e retornarem a casa.
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A dona Olinda bem os ouve na conversa – mas não se importa nada. Nos últimos anos a vizinhança tem saído a passo acelerado. "Morou aqui mais gente. Conhecíamo-nos todos, vimos os filhos uns dos outros crescer (e abalar), agora está muito sossegado". Na parte de trás da casa cria galinhas, coelhos e orienta uma horta. Os animais que compra não vêm da esquina – "vou buscá-los a Tires de autocarro, ainda hoje lá fui". Porque esta vila onde mora também tem cheiro de aldeia. Mas não exageremos na comparação.
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PÁTIO NO LUMIAR EM RISCO DE DERROCADA
Há-os castiços. Mortiços ou agitados. Com mais ou menos gente. Alguns são aproveitados para videoclips, publicidade, outros não. Mas também os há em estado tal que ninguém lá devia viver. É o caso do Pátio dos Piçarra, no Lumiar, onde ainda moram duas cabo-verdianas, Adelina Brito e Maria Sameiro, com a respectiva prole. Tomam banho na rua e despejam o penico na pia. Chove-lhes em casa. Ao défice de higiene junta-se a insegurança que sentem. "Os drogados metem-se aqui no pátio e nós cheias de medo".
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A associação de moradores do Lumiar fez pressão com a autarquia e conseguiu realojar os outros residentes. Adelina e Maria esperam: porque à data não tinham papéis.
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NOTAS
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SÉCULO XIX
Em meados do século XIX a industrialização provoca a concentração de operários. Foi o início dos pátios.
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PERIGOS
Em Fevereiro, uma casa apalaçada em Alfama ruiuL. Em Maio, foi a vila das Escadinhas da Graça.
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1.000
Das 1.000 vilas contabilizadas pela autarquia em 1992 muitas eram de particulares. "Por isso podem ter sido demolidas".
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ÚLTIMAS
As últimas iniciativas privadas de construção de vilas datam da década de 20, lê-se no estudo do arquitecto Nuno T. Pereira.
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