Cultura
É outubro em Pequim: o primeiro aniversário da Revolução Chinesa
Vermelho - 23 de Maio de 2010 - 15h20Mencius, discípulo de Confúcio e que nasceu no ano 390 antes da nossa era, escreveu: "Em primeiro lugar, está o povo; em seguida, o país. O rei é o de menos...". Pois ali estávamos nós — 72 delegações de convidados vindos de todas as partes do mundo — para vermos passar, no 1º de outubro de 1960, o grande desfile comemorativo do 11º aniversário da República Popular da Nova China.
Por Lygia Fagundes Telles, na Folha de S.Paulo
A manhã é azul. Bandeiras vermelhas com as cinco estrelas estão desfraldadas ao vento.
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Estandartes também vermelhos, com os caracteres chineses, em dourado desdobram-se nos pontos mais altos da vasta praça do Povo, defronte da famosa Porta da Paz Celestial e onde estão os balcões dos convidados.
Entre o Museu Nacional e a Assembleia, defronte de nós, gigantescos retratos de Karl Marx, Friedrich Engels, Lênin e Mao Tse-tung.
É belo de se ver a variedade incrível dos trajes dos representantes de cada país; os altos africanos, com ares assim de reis negros, ostentam túnicas e adornos singulares, contrastando na sua simplicidade com os trajes asiáticos e que em geral são suntuosos, cheios de pedrarias e dourados e tudo isso de mistura com os trajes chineses — as discretas fardas de brim azul-, que por sua vez contrastam com as nossas roupas europeias. Ouvem-se em redor as mais variadas línguas. O quadro é de um colorido vivo e raro.
Uma chinesinha debruça-se num balcão ao meu lado. Observo-a. E concluo, nesse instante, que sem dúvida alguma os chineses são bonitos, assim altos e esguios. Têm a gesticulação elegante. Pernas longas. E grandes olhos seguindo aquela linha oblíqua.
Volto minha máquina fotográfica na direção da jovem. Ela inclina a cabeça para o lado, segura delicadamente a ponta da trancinha negra e sorri um tímido sorriso fresco e claro como a manhã outonal. Diz-me, em seguida, um "merci".
Aproximo-me animada: a ponte da língua estabeleceu-se entre nós. Ocorre-me fazer-lhe perguntas simples, bem femininas. Ainda não vi nenhuma chinesa pintada, digo-lhe. Nem as jovens nem as mulheres maduras usam batom ou mesmo pó de arroz. Eis que a mulher na China abriu mão das mais elementares vaidades. Nem brincos, nem anéis, nem unhas esmaltadas...
Ela ficou séria. "O nosso povo acaba de sair de uma fase terrível e que durou dezenas e dezenas de anos", respondeu-me ela. "Não podemos nos preocupar com ninharias quando ainda há coisas tão importantes a serem cuidadas. Principalmente nós, as mulheres, nunca tivemos sequer o essencial. Então não podemos agora nos dar ao luxo de pensar no acessório, no supérfluo. Temos que trabalhar. O resto fica para depois."
Não pude deixar de sorrir. Ah! Como a jovem era parecida com o Mister Wang, nosso intérprete, de topetinho no cocuruto e fronte pensativa, a expressão tão carregada de responsabilidades! Como eram graves e compenetrados os jovens da China! Lembrei-me de uma peruana ou colombiana, que após algumas semanas de permanência em Pequim, teria se queixado certa noite ao nosso teatrólogo Guilherme Figueiredo: "Sí, sí, todo es muy bueno... ¡Pero, caramba! ¡Es preciso un poco de corrupción!...".
Desatei a rir enquanto a chinesinha, sem saber por que, riu também. Tive então vontade de dizer-lhe que aprimorar a beleza do rosto era também uma causa importante. Mas pensei: para quê? Afinal, ela era tão bonita assim mesmo com a carinha lavada, singela! Pensei nas nossas brasileirinhas adolescentes e já com os olhos bistrados.
Eis aí uma jovem, edição chinesa da nossa "Inocência", de Taunay. Ela quis saber quem era "Inocência" e expliquei-lhe então que era a heroína de um romance e que nunca houve na nossa literatura uma personagem mais doce, mais delicada, mais pura.
Sons festivos de uma marcha romperam dos alto-falantes. Palmas, vivas da multidão acenando bandeirinhas: o presidente Mao Tse-tung acabara de aparecer no palanque oficial.
Começou o desfile, um desfile sem militares, sem soldados ou armas, mas apenas com colegiais e jovens, dezenas e dezenas de jovens levando bandeiras, arcos floridos, lanternas, balões, estandartes. Enfim, um mar de flores e sedas vindo em ondas a transbordar na praça.
Jamais meus olhos viram desfile igual, verdadeira demonstração do mais alto senso estético de um povo que há cinco mil anos cultiva a beleza.
Estandartes também vermelhos, com os caracteres chineses, em dourado desdobram-se nos pontos mais altos da vasta praça do Povo, defronte da famosa Porta da Paz Celestial e onde estão os balcões dos convidados.
Entre o Museu Nacional e a Assembleia, defronte de nós, gigantescos retratos de Karl Marx, Friedrich Engels, Lênin e Mao Tse-tung.
É belo de se ver a variedade incrível dos trajes dos representantes de cada país; os altos africanos, com ares assim de reis negros, ostentam túnicas e adornos singulares, contrastando na sua simplicidade com os trajes asiáticos e que em geral são suntuosos, cheios de pedrarias e dourados e tudo isso de mistura com os trajes chineses — as discretas fardas de brim azul-, que por sua vez contrastam com as nossas roupas europeias. Ouvem-se em redor as mais variadas línguas. O quadro é de um colorido vivo e raro.
Uma chinesinha debruça-se num balcão ao meu lado. Observo-a. E concluo, nesse instante, que sem dúvida alguma os chineses são bonitos, assim altos e esguios. Têm a gesticulação elegante. Pernas longas. E grandes olhos seguindo aquela linha oblíqua.
Volto minha máquina fotográfica na direção da jovem. Ela inclina a cabeça para o lado, segura delicadamente a ponta da trancinha negra e sorri um tímido sorriso fresco e claro como a manhã outonal. Diz-me, em seguida, um "merci".
Aproximo-me animada: a ponte da língua estabeleceu-se entre nós. Ocorre-me fazer-lhe perguntas simples, bem femininas. Ainda não vi nenhuma chinesa pintada, digo-lhe. Nem as jovens nem as mulheres maduras usam batom ou mesmo pó de arroz. Eis que a mulher na China abriu mão das mais elementares vaidades. Nem brincos, nem anéis, nem unhas esmaltadas...
Ela ficou séria. "O nosso povo acaba de sair de uma fase terrível e que durou dezenas e dezenas de anos", respondeu-me ela. "Não podemos nos preocupar com ninharias quando ainda há coisas tão importantes a serem cuidadas. Principalmente nós, as mulheres, nunca tivemos sequer o essencial. Então não podemos agora nos dar ao luxo de pensar no acessório, no supérfluo. Temos que trabalhar. O resto fica para depois."
Não pude deixar de sorrir. Ah! Como a jovem era parecida com o Mister Wang, nosso intérprete, de topetinho no cocuruto e fronte pensativa, a expressão tão carregada de responsabilidades! Como eram graves e compenetrados os jovens da China! Lembrei-me de uma peruana ou colombiana, que após algumas semanas de permanência em Pequim, teria se queixado certa noite ao nosso teatrólogo Guilherme Figueiredo: "Sí, sí, todo es muy bueno... ¡Pero, caramba! ¡Es preciso un poco de corrupción!...".
Desatei a rir enquanto a chinesinha, sem saber por que, riu também. Tive então vontade de dizer-lhe que aprimorar a beleza do rosto era também uma causa importante. Mas pensei: para quê? Afinal, ela era tão bonita assim mesmo com a carinha lavada, singela! Pensei nas nossas brasileirinhas adolescentes e já com os olhos bistrados.
Eis aí uma jovem, edição chinesa da nossa "Inocência", de Taunay. Ela quis saber quem era "Inocência" e expliquei-lhe então que era a heroína de um romance e que nunca houve na nossa literatura uma personagem mais doce, mais delicada, mais pura.
Sons festivos de uma marcha romperam dos alto-falantes. Palmas, vivas da multidão acenando bandeirinhas: o presidente Mao Tse-tung acabara de aparecer no palanque oficial.
Começou o desfile, um desfile sem militares, sem soldados ou armas, mas apenas com colegiais e jovens, dezenas e dezenas de jovens levando bandeiras, arcos floridos, lanternas, balões, estandartes. Enfim, um mar de flores e sedas vindo em ondas a transbordar na praça.
Jamais meus olhos viram desfile igual, verdadeira demonstração do mais alto senso estético de um povo que há cinco mil anos cultiva a beleza.
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