Público - 17.05.2010 - 13:59 Por Luís Villalobos
Quando o mundo descobriu África, a "National Geographic" andou por Angola e Moçambique. Quando quis conhecer Mao, foi espreitá-lo em Macau. Na guerra, visitou Lisboa, um ninho de tranquilidade e de espiões na Europa. As mulheres eram bonitas. O país, esse, era atrasado, analfabeto, sem infra-estruturas. Um retrato de Portugal de 1907 à encruzilhada - a guerra colonial, o fim do Império.
A reportagem "Portugal na Encruzilhada" foi publicada em Outubro de 1965 (Pedro Cunha)
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Foi apenas por ter havido uma revolução que a "National Geographic" se debruçou pela primeira vez sobre Portugal. Relevando uma capacidade notável de adaptação à rapidez da História, a revista norte-americana conseguiu incluir um artigo, na sua edição de Outubro de 1910, escrito originalmente para a publicação The Contemporary Review, de Edimburgo. Caída a monarquia, quis a publicação relatar que pequeno país era este, cheio de glórias passadas.
A introdução ao texto ("The Greatness of Little Portugal") começa logo por explicar que os portugueses, cuja população cabia em Nova Iorque, tinham as maiores cabeças da Europa mas eram os mais baixos. A partir de Portugal, os navegadores tinham achado o Brasil e descoberto o caminho marítimo para a Índia. No entanto, no início do século XX, três quartos da população com mais de seis anos não sabiam ler nem escrever.
Quando opta por incluir Portugal nas suas páginas, forçada pela actualidade, a publicação norte-americana de base científica tinha já 22 anos de idade. No entanto, o mundo parecia então maior e havia muitos outros assuntos por analisar. Além disso, só 11 anos antes é que a revista, presidida por Graham Bell (a quem se atribui a invenção do telefone) e cujo editor era Gilbert H. Grosvenor, decidira abandonar os "frios factos geográficos." A partir daí, assumia-se como veículo de divulgação, verdadeira e de interesse humano, de todos os aspectos deste "nosso maravilhoso planeta".
O Portugal relatado na edição de Outubro de 1910 é ainda o de um reino, já que o autor, Oswald Crawfurd, não teve tempo de fazer a devida actualização política.
Crawfurd equilibra os dados básicos da História de Portugal com informações úteis ao viajante. Fica-se a saber que quem fale espanhol será facilmente entendido, mas não irá perceber nada do que lhe é dito, e que os nomes das estações de comboio não eram anunciados em voz alta, pelo que o mais certo era ir parar a um destino indevido em caso de desatenção.
Passando por cima da História, o retrato de Crawfurd pode ser descrito da seguinte maneira, algo familiar: Portugal é um país pobre mas bonito, tolerante, honrado e hospitaleiro. E a verdade é que as descrições feitas pelos posteriores enviados da National Geographic nas décadas seguintes não irão mudar muito.
Mal governados
O Portugal apresentado em 1910 é um país rural, onde as técnicas ainda são "as mesmas desde os tempos dos romanos", com regiões mais ricas, como o Douro. As pessoas "são deploravelmente mal governadas", com os partidos políticos infestados de subornos e corrupção, e o país, na corrida contemporânea das nações para o bem-estar, não atingiu nenhum marco significativo. Já o povo, diz o autor, é perspicaz, um "sofredor de longo curso", e dos menos "antipatrióticos do mundo". Maravilhado pela capacidade dos artesãos, sejam eles joalheiros ou carpinteiros, Crawfurd defende que Portugal não é, como alguns pensariam, "uma Espanha de segunda classe", com gente preguiçosa, má literatura e uma linguagem feia. Simplesmente, diz, o português dificulta a compreensão do país por parte dos estrangeiros, já que poucos o falam, e é menos alvo de atenção devido à sua reduzida dimensão e importância na Europa.
E para que não restassem dúvidas de que Portugal era uma das apostas da edição de Outubro de 1910, a revista inclui ainda um artigo sobre as florestas e jardins de Portugal, escrito por Martim Hume em 1908. Destacando o exotismo e a beleza do Buçaco e de Sintra, Hume não se restringe apenas à flora, acabando por iniciar dois temas que serão retomados no futuro: o da beleza das mulheres portuguesas e a aversão aos sapatos. No primeiro caso, à entrada de Coimbra, Hume dedica todo um parágrafo aos grupos de bonitas mulheres que encontra, inevitavelmente, com "pesados fardos à cabeça". "Vão invariavelmente descalças, com os seus bonitos e longos ombros, peitos cheios, faces clássicas", de lenços garridos, fixando o olhar, bonito, com uma "modesta dignidade".
A visita, indirecta, da "National Geographic" a Portugal continental não foi, no entanto, o primeiro contacto da revista com os territórios portugueses. Antes, já Moçambique e a Madeira tinham sido alvo das suas atenções. No caso deste pequeno arquipélago do Atlântico, a viagem feita por David Fairchild é descrita na edição de Dezembro de 1907, que apresenta a Madeira como "um dos locais mais calmos do mundo, para o qual as almas cansadas das nossas grandes cidades se estão a virar para descansar". O que Fairchild observa é uma ilha com clima temperado, onde as plantas estão perpetuamente em flor, mas onde as pessoas são extremamente pobres. Se aqui era o paraíso para alguns, como no caso dos ingleses de férias, o mesmo sentimento não era partilhado pelos "que são forçados a viver aqui e a ganhar a sua vida". Com cerca de 150 mil habitantes, não há uma escola agrícola ou industrial, e os acessos, em grande parte da ilha, são dignos das cabras. Os tempos áureos do vinho da Madeira tinham chegado ao fim (até porque os médicos começaram a dizer que o líquido era mau para a gota), e Lisboa, segundo Fairchild, não tinha uma lógica de desenvolvimento para a ilha. Com população a mais e sem grandes perspectivas de futuro, muitos madeirenses emigram para as plantações de açúcar do Havai. A ilha do turismo de massas com as largas dezenas de hotéis do Funchal ainda era uma realidade distante.
Caberá a Clifford Albion Tinker o privilégio de ser o primeiro redactor a fazer um relato directo de Portugal Continental para a "National Geographic", em Novembro de 1922, mas dedica-se apenas a Lisboa. Apelidada de "Cidade da baía amigável", Tinker percorre as ruas da capital e os seus arredores, misturando dados históricos com as suas impressões, apresentando Almada como a Brooklyn de Lisboa.
A capital, que almejava então ser um ponto de referência para os voos intercontinentais entre a Europa e os Estados Unidos, é vista como um "mosaico civilizacional". Seja pela mistura de sangue celta, mouro, judeu e africano, seja pela combinação de automóveis e carros de bois no meio da Baixa pombalina. Sobre as jovens mulheres, diz, estas são belas, carregando na cabeça, "com um certo ar de graça", cestos com fruta, peixe ou vegetais. No seu olhar, os portugueses são parecidos com os gregos, mas "mais urbanos, cordiais e com melhor temperamento". Ao nível das classes mais abastadas, retrata-as como sendo das "mais culturais e graciosas do mundo", tendo a hospitalidade como das principais características. Esta era a Lisboa de uma Alfama com vestígios medievais e dos pescadores de sardinha que lavavam as redes no Tejo, que contrastava com a modernidade da Avenida da Liberdade, com os seus cafés e esplanadas com música ao vivo. A urbe onde as fotografias, pintadas a cor, mostram as varinas sempre descalças.
Seriam precisos 16 anos para a "National Geographic" voltar a Lisboa, mas, desta vez, o alvo é percorrer o país, já controlado pelo Estado Novo de Salazar. Robert Moore falava agora de "castelos e progresso em Portugal", uma mistura de passado e presente que terá certamente agradado ao ditador. Durante dois meses, Moore percorreu o país, que assistia de fora à Guerra Civil de Espanha, tirando proveito da nova rede de estradas, às quais tece vários elogios. Em Lisboa, nota que os cafés são dominados pela presença masculina, o que parece lamentar, uma vez que "muitas das mulheres são atractivas", com os seus já conhecidos lenços garridos e formosura "inigualável" quando carregam os cestos. Algumas delas, trabalhadoras, andam descalças, não obstante a existência de recente legislação que o proíbe. Para Moore, torna-se claro que "tanto os sapatos como a lei parecem ser considerados demasiados severos".
As obras de Salazar
O Portugal que vê é o das obras de Salazar, tal como é o de um país que vive da terra e do mar, com as suas exportações de cortiça, peixe e vinho. Moore visita o Douro e assiste às uvas serem pisadas com os pés, para depois ser transportado rio abaixo pelos barcos rabelos. Fica impressionado com a "alegria dos camponeses" ligados à vindima, apesar das suas condições de vida. Vê a apanha do sargaço para fertilizante no Norte e a pesca na Nazaré. Passa pelo Gerês, Buçaco, Montalegre, Tomar e Fátima, desce pelo Alentejo, onde vislumbra apenas um tractor, e vai até à Ponta de Sagres, onde presta a devida homenagem ao passado português, mais visível do que o seu progresso e modernidade. E desenha todo um roteiro que será seguido anos depois pelos seus sucessores.
Lisboa da livre expressão
Quando a revista envia Harvey Klemmer nos primeiros meses de 1941 para perceber que país é este, funcionando Portugal como ponto de comunicação entre os Estados Unidos e a Europa em guerra, Lisboa torna-se de novo o centro exclusivo das atenções (o texto seria publicado em Agosto desse ano).
Neutral, a capital portuguesa é ponto de encontro de espiões e porto de abrigo de refugiados de todas as classes. Visto do outro lado do Atlântico, é aqui que terminam, desde o início da II Guerra Mundial, os voos da Pan American Airways, que, com partida em Nova Iorque, ainda precisam de fazer escala na Bermuda e nos Açores (em Setembro de 1941, muito antes do interesse motivado pela erupção dos Capelinhos, a National Geographic dedicou especial atenção à importância estratégica deste arquipélago, onde os veículos motorizados eram a excepção, realçando que as ilhas estavam mais perto dos EUA do que o Havai). Com os hotéis repletos de quem conseguiu escapar ao conflito, do qual Klemmer não se mostra muito convicto de que Portugal possa escapar, os barcos e aviões, encarregues de decidir quem fica e definha ou parte e floresce, passam a estar imbuídos de poderes mágicos para os cerca de 40 mil refugiados.
Transtornado pela guerra que vira na Europa e pela censura militar verificada em Hamilton, na Bermuda, Klemmer considera que há mais livre expressão em Lisboa do que noutro lugar da Europa. "Talvez o meu sentido de valores tenha sido distorcido por ter estado numa zona de guerra", diz, para exemplificar o poder de atracção que sente por Lisboa, com as praias sem minas e arame farpado, com luzes, música, boa comida e bebida. E, invariavelmente, as varinas que teimam em andar descalças.
É certo que as principais fontes de receitas ainda são as sardinhas e o vinho, além da cortiça exportada em bruto, porque faltam indústrias. Que muitos são pobres, e que dois terços são analfabetos. O que não impede Klemmer de destacar que este pequeno país tem muito para oferecer aos turistas, para logo sublinhar o seu espanto por Portugal continuar não só independente como ter na sua posse vastos territórios além-mar. "Seria descuido negar que Portugal e o seu império está hoje numa posição precária. É quase demasiado esperar que os cães de guerra se quedem às portas da fronteira portuguesa", afirma.
O certo é que ficaram, o que foi constatado por Clement Conger, sete anos depois de Klemmer e dois anos após o fim da II Guerra Mundial. Se a Europa ainda recupera dos escombros quando o novo enviado da "National Geographic" chega a Portugal, pouco ou nada tinha mudado no país, não obstante este defender, no título seu artigo de Novembro de 1948, que "Portugal é diferente". Até as varinas mantêm o seu jogo de toca-e-foge com as autoridades policiais, evitando a lei e os sapatos.
A única diferença é que, tendo em conta o relato de 1941, já não havia massas de refugiados nem espiões em Lisboa. Conger, que parece ter os exemplares anteriores da "National Geographic" sobre Portugal na sua mala de viagem, vai aos cafés da avenida, ouve o fado, sobe ao Porto, assiste às comemorações do Estado Novo em Braga e vislumbra um Salazar aparentemente imutável e resistente aos ventos da democracia da Europa. Vê camponeses trabalharem "como nos tempos da Bíblia", conhece Aveiro, Viseu e Coimbra, com seu novo Portugal dos pequeninos, verdadeira metáfora em miniatura. Consegue estar presente em Fátima a 13 de Maio, com a aparição já transformada em milagre, passando de carro por milhares de peregrinos que seguiam a pé ou de burro. Ali, vê meio milhão de pessoas a entoarem "ave, ave", com igual número de velas, e que no dia seguinte serão cerca de 700 mil, com igual número de chapéus-de-chuva pretos que se abrem ou fecham em conjunto conforme os humores de S. Pedro, substituídos depois por lenços brancos.
Com o roteiro desenhado, desce para ver a cortiça do Alentejo e espanta-se por os turistas ainda não terem descoberto o Algarve. Regressa então a Lisboa, onde os pescadores ainda lavam as redes no Tejo. Se Portugal era diferente, era apenas no olhar de que o visitava.
As praias douradas
Olha-se para o título, "As praias douradas de Portugal", e pensa-se em turismo, mas a missão de Alan Villiers era a de retratar a pesca. Apesar de mencionar a existência de turistas na Nazaré (alguns vindos de Paris), é o fascínio pelas pesca artesanal que o faz publicar um artigo em Novembro de 1954. De norte a sul visita praias e portos de pesca, destacando os que os métodos utilizados são "inspirados nos antigos fenícios".
Cerca de 40 mil homens fazem-se ao mar por todo o território, sem barcos a motor, contando apenas com os animais e os homens. A sua preferência vai para a costa algarvia, soalheira e florida, onde os pescadores pintam olhos aos barcos para que estes se possam guiar melhor. Participa na pesca do atum, onde ouve os cânticos, que lhe soam a árabe, entoados pelos homens enquanto esperam a presa. Quando surgem os primeiros peixes voadores, sinal de que o atum vem a caminho, os homens começam a puxar as redes e a empurrá-los para os navios, iniciando a matança pintada de tons de vermelho. Ao todo, Villiers vê serem apanhados cerca de 150 atuns, prontamente encaminhados para as fábricas de conserva.
Estes não irão ser vendidos pelas varinas, várias das quais, diz Villiers, colocam os sapatos junto ao cesto de peixe, equilibrado na cabeça, mal a polícia vira as costas.
De todos os artigos da "National Geographic", o de Howard La Fay, publicado em Outubro de 1965, é o mais analítico. Acompanhado por Volkmar Wentzel, que viajara por Angola e Moçambique, e agora assume o papel de fotógrafo, La Fay mostra um país "numa encruzilhada". É o Portugal que tem um novo metropolitano, mas que esconde, debaixo das suas luzes e sorrisos, "uma nação em crise".
Perdera os territórios na Índia e resiste à onda das independências em África, com demonstrações patrióticas carregadas de cartazes onde se diz que "lutaremos sempre".
Há novos edifícios e alguma industrialização, mas isso quase parece desapontar la Fay. Feito o percurso típico do território nacional, parando nos principais localidades, queixa-se que o vinho no Douro já não é pisado com os pés, entre risos e música. Confirma, no entanto, que ainda há muitos pescadores com recorrem às técnicas dos fenícios, e que cerca de 60 por cento da população trabalha na agricultura.
Fazer crescer o Algarve
Em Lisboa, onde se encanta com a luminosidade e com Alfama, para se entristecer com o som do fado, assiste à edificação dos primeiros alicerces da ponte sobre o Tejo, a maior do seu género na Europa. A ideia, explicam-lhe, é fazer crescer a capital, sobrelotada, para a outra margem, ganhando cidades satélite. Ao mesmo tempo, pretende-se abrir o sul ao turismo, passando o Algarve a ficar a quatro horas de viagem. A região, de tanto ser falada, já atraía cerca de 50 mil turistas por ano, para os quais tinham sido construídos meia dúzia de hotéis de luxo entre Monte Gordo e Sagres.
Se la Fay tinha dúvidas no título que iria colocar no texto, estas devem ter ficado resolvidas quando entrevistou um historiador, que manteve o anonimato. Portugal, é-lhe dito, defronta-se com "um momento crucial na sua história". "Virámos as nossas costas à Europa", constata o historiador. "Seja lá o que vier a acontecer", acrescenta, "quer fiquemos ou não com as províncias ultramarinas, Portugal vai reunir-se à Europa". Quanto às varinas, essas, já usavam sapatos, mas contra a sua vontade
A introdução ao texto ("The Greatness of Little Portugal") começa logo por explicar que os portugueses, cuja população cabia em Nova Iorque, tinham as maiores cabeças da Europa mas eram os mais baixos. A partir de Portugal, os navegadores tinham achado o Brasil e descoberto o caminho marítimo para a Índia. No entanto, no início do século XX, três quartos da população com mais de seis anos não sabiam ler nem escrever.
Quando opta por incluir Portugal nas suas páginas, forçada pela actualidade, a publicação norte-americana de base científica tinha já 22 anos de idade. No entanto, o mundo parecia então maior e havia muitos outros assuntos por analisar. Além disso, só 11 anos antes é que a revista, presidida por Graham Bell (a quem se atribui a invenção do telefone) e cujo editor era Gilbert H. Grosvenor, decidira abandonar os "frios factos geográficos." A partir daí, assumia-se como veículo de divulgação, verdadeira e de interesse humano, de todos os aspectos deste "nosso maravilhoso planeta".
O Portugal relatado na edição de Outubro de 1910 é ainda o de um reino, já que o autor, Oswald Crawfurd, não teve tempo de fazer a devida actualização política.
Crawfurd equilibra os dados básicos da História de Portugal com informações úteis ao viajante. Fica-se a saber que quem fale espanhol será facilmente entendido, mas não irá perceber nada do que lhe é dito, e que os nomes das estações de comboio não eram anunciados em voz alta, pelo que o mais certo era ir parar a um destino indevido em caso de desatenção.
Passando por cima da História, o retrato de Crawfurd pode ser descrito da seguinte maneira, algo familiar: Portugal é um país pobre mas bonito, tolerante, honrado e hospitaleiro. E a verdade é que as descrições feitas pelos posteriores enviados da National Geographic nas décadas seguintes não irão mudar muito.
Mal governados
O Portugal apresentado em 1910 é um país rural, onde as técnicas ainda são "as mesmas desde os tempos dos romanos", com regiões mais ricas, como o Douro. As pessoas "são deploravelmente mal governadas", com os partidos políticos infestados de subornos e corrupção, e o país, na corrida contemporânea das nações para o bem-estar, não atingiu nenhum marco significativo. Já o povo, diz o autor, é perspicaz, um "sofredor de longo curso", e dos menos "antipatrióticos do mundo". Maravilhado pela capacidade dos artesãos, sejam eles joalheiros ou carpinteiros, Crawfurd defende que Portugal não é, como alguns pensariam, "uma Espanha de segunda classe", com gente preguiçosa, má literatura e uma linguagem feia. Simplesmente, diz, o português dificulta a compreensão do país por parte dos estrangeiros, já que poucos o falam, e é menos alvo de atenção devido à sua reduzida dimensão e importância na Europa.
E para que não restassem dúvidas de que Portugal era uma das apostas da edição de Outubro de 1910, a revista inclui ainda um artigo sobre as florestas e jardins de Portugal, escrito por Martim Hume em 1908. Destacando o exotismo e a beleza do Buçaco e de Sintra, Hume não se restringe apenas à flora, acabando por iniciar dois temas que serão retomados no futuro: o da beleza das mulheres portuguesas e a aversão aos sapatos. No primeiro caso, à entrada de Coimbra, Hume dedica todo um parágrafo aos grupos de bonitas mulheres que encontra, inevitavelmente, com "pesados fardos à cabeça". "Vão invariavelmente descalças, com os seus bonitos e longos ombros, peitos cheios, faces clássicas", de lenços garridos, fixando o olhar, bonito, com uma "modesta dignidade".
A visita, indirecta, da "National Geographic" a Portugal continental não foi, no entanto, o primeiro contacto da revista com os territórios portugueses. Antes, já Moçambique e a Madeira tinham sido alvo das suas atenções. No caso deste pequeno arquipélago do Atlântico, a viagem feita por David Fairchild é descrita na edição de Dezembro de 1907, que apresenta a Madeira como "um dos locais mais calmos do mundo, para o qual as almas cansadas das nossas grandes cidades se estão a virar para descansar". O que Fairchild observa é uma ilha com clima temperado, onde as plantas estão perpetuamente em flor, mas onde as pessoas são extremamente pobres. Se aqui era o paraíso para alguns, como no caso dos ingleses de férias, o mesmo sentimento não era partilhado pelos "que são forçados a viver aqui e a ganhar a sua vida". Com cerca de 150 mil habitantes, não há uma escola agrícola ou industrial, e os acessos, em grande parte da ilha, são dignos das cabras. Os tempos áureos do vinho da Madeira tinham chegado ao fim (até porque os médicos começaram a dizer que o líquido era mau para a gota), e Lisboa, segundo Fairchild, não tinha uma lógica de desenvolvimento para a ilha. Com população a mais e sem grandes perspectivas de futuro, muitos madeirenses emigram para as plantações de açúcar do Havai. A ilha do turismo de massas com as largas dezenas de hotéis do Funchal ainda era uma realidade distante.
Caberá a Clifford Albion Tinker o privilégio de ser o primeiro redactor a fazer um relato directo de Portugal Continental para a "National Geographic", em Novembro de 1922, mas dedica-se apenas a Lisboa. Apelidada de "Cidade da baía amigável", Tinker percorre as ruas da capital e os seus arredores, misturando dados históricos com as suas impressões, apresentando Almada como a Brooklyn de Lisboa.
A capital, que almejava então ser um ponto de referência para os voos intercontinentais entre a Europa e os Estados Unidos, é vista como um "mosaico civilizacional". Seja pela mistura de sangue celta, mouro, judeu e africano, seja pela combinação de automóveis e carros de bois no meio da Baixa pombalina. Sobre as jovens mulheres, diz, estas são belas, carregando na cabeça, "com um certo ar de graça", cestos com fruta, peixe ou vegetais. No seu olhar, os portugueses são parecidos com os gregos, mas "mais urbanos, cordiais e com melhor temperamento". Ao nível das classes mais abastadas, retrata-as como sendo das "mais culturais e graciosas do mundo", tendo a hospitalidade como das principais características. Esta era a Lisboa de uma Alfama com vestígios medievais e dos pescadores de sardinha que lavavam as redes no Tejo, que contrastava com a modernidade da Avenida da Liberdade, com os seus cafés e esplanadas com música ao vivo. A urbe onde as fotografias, pintadas a cor, mostram as varinas sempre descalças.
Seriam precisos 16 anos para a "National Geographic" voltar a Lisboa, mas, desta vez, o alvo é percorrer o país, já controlado pelo Estado Novo de Salazar. Robert Moore falava agora de "castelos e progresso em Portugal", uma mistura de passado e presente que terá certamente agradado ao ditador. Durante dois meses, Moore percorreu o país, que assistia de fora à Guerra Civil de Espanha, tirando proveito da nova rede de estradas, às quais tece vários elogios. Em Lisboa, nota que os cafés são dominados pela presença masculina, o que parece lamentar, uma vez que "muitas das mulheres são atractivas", com os seus já conhecidos lenços garridos e formosura "inigualável" quando carregam os cestos. Algumas delas, trabalhadoras, andam descalças, não obstante a existência de recente legislação que o proíbe. Para Moore, torna-se claro que "tanto os sapatos como a lei parecem ser considerados demasiados severos".
As obras de Salazar
O Portugal que vê é o das obras de Salazar, tal como é o de um país que vive da terra e do mar, com as suas exportações de cortiça, peixe e vinho. Moore visita o Douro e assiste às uvas serem pisadas com os pés, para depois ser transportado rio abaixo pelos barcos rabelos. Fica impressionado com a "alegria dos camponeses" ligados à vindima, apesar das suas condições de vida. Vê a apanha do sargaço para fertilizante no Norte e a pesca na Nazaré. Passa pelo Gerês, Buçaco, Montalegre, Tomar e Fátima, desce pelo Alentejo, onde vislumbra apenas um tractor, e vai até à Ponta de Sagres, onde presta a devida homenagem ao passado português, mais visível do que o seu progresso e modernidade. E desenha todo um roteiro que será seguido anos depois pelos seus sucessores.
Lisboa da livre expressão
Quando a revista envia Harvey Klemmer nos primeiros meses de 1941 para perceber que país é este, funcionando Portugal como ponto de comunicação entre os Estados Unidos e a Europa em guerra, Lisboa torna-se de novo o centro exclusivo das atenções (o texto seria publicado em Agosto desse ano).
Neutral, a capital portuguesa é ponto de encontro de espiões e porto de abrigo de refugiados de todas as classes. Visto do outro lado do Atlântico, é aqui que terminam, desde o início da II Guerra Mundial, os voos da Pan American Airways, que, com partida em Nova Iorque, ainda precisam de fazer escala na Bermuda e nos Açores (em Setembro de 1941, muito antes do interesse motivado pela erupção dos Capelinhos, a National Geographic dedicou especial atenção à importância estratégica deste arquipélago, onde os veículos motorizados eram a excepção, realçando que as ilhas estavam mais perto dos EUA do que o Havai). Com os hotéis repletos de quem conseguiu escapar ao conflito, do qual Klemmer não se mostra muito convicto de que Portugal possa escapar, os barcos e aviões, encarregues de decidir quem fica e definha ou parte e floresce, passam a estar imbuídos de poderes mágicos para os cerca de 40 mil refugiados.
Transtornado pela guerra que vira na Europa e pela censura militar verificada em Hamilton, na Bermuda, Klemmer considera que há mais livre expressão em Lisboa do que noutro lugar da Europa. "Talvez o meu sentido de valores tenha sido distorcido por ter estado numa zona de guerra", diz, para exemplificar o poder de atracção que sente por Lisboa, com as praias sem minas e arame farpado, com luzes, música, boa comida e bebida. E, invariavelmente, as varinas que teimam em andar descalças.
É certo que as principais fontes de receitas ainda são as sardinhas e o vinho, além da cortiça exportada em bruto, porque faltam indústrias. Que muitos são pobres, e que dois terços são analfabetos. O que não impede Klemmer de destacar que este pequeno país tem muito para oferecer aos turistas, para logo sublinhar o seu espanto por Portugal continuar não só independente como ter na sua posse vastos territórios além-mar. "Seria descuido negar que Portugal e o seu império está hoje numa posição precária. É quase demasiado esperar que os cães de guerra se quedem às portas da fronteira portuguesa", afirma.
O certo é que ficaram, o que foi constatado por Clement Conger, sete anos depois de Klemmer e dois anos após o fim da II Guerra Mundial. Se a Europa ainda recupera dos escombros quando o novo enviado da "National Geographic" chega a Portugal, pouco ou nada tinha mudado no país, não obstante este defender, no título seu artigo de Novembro de 1948, que "Portugal é diferente". Até as varinas mantêm o seu jogo de toca-e-foge com as autoridades policiais, evitando a lei e os sapatos.
A única diferença é que, tendo em conta o relato de 1941, já não havia massas de refugiados nem espiões em Lisboa. Conger, que parece ter os exemplares anteriores da "National Geographic" sobre Portugal na sua mala de viagem, vai aos cafés da avenida, ouve o fado, sobe ao Porto, assiste às comemorações do Estado Novo em Braga e vislumbra um Salazar aparentemente imutável e resistente aos ventos da democracia da Europa. Vê camponeses trabalharem "como nos tempos da Bíblia", conhece Aveiro, Viseu e Coimbra, com seu novo Portugal dos pequeninos, verdadeira metáfora em miniatura. Consegue estar presente em Fátima a 13 de Maio, com a aparição já transformada em milagre, passando de carro por milhares de peregrinos que seguiam a pé ou de burro. Ali, vê meio milhão de pessoas a entoarem "ave, ave", com igual número de velas, e que no dia seguinte serão cerca de 700 mil, com igual número de chapéus-de-chuva pretos que se abrem ou fecham em conjunto conforme os humores de S. Pedro, substituídos depois por lenços brancos.
Com o roteiro desenhado, desce para ver a cortiça do Alentejo e espanta-se por os turistas ainda não terem descoberto o Algarve. Regressa então a Lisboa, onde os pescadores ainda lavam as redes no Tejo. Se Portugal era diferente, era apenas no olhar de que o visitava.
As praias douradas
Olha-se para o título, "As praias douradas de Portugal", e pensa-se em turismo, mas a missão de Alan Villiers era a de retratar a pesca. Apesar de mencionar a existência de turistas na Nazaré (alguns vindos de Paris), é o fascínio pelas pesca artesanal que o faz publicar um artigo em Novembro de 1954. De norte a sul visita praias e portos de pesca, destacando os que os métodos utilizados são "inspirados nos antigos fenícios".
Cerca de 40 mil homens fazem-se ao mar por todo o território, sem barcos a motor, contando apenas com os animais e os homens. A sua preferência vai para a costa algarvia, soalheira e florida, onde os pescadores pintam olhos aos barcos para que estes se possam guiar melhor. Participa na pesca do atum, onde ouve os cânticos, que lhe soam a árabe, entoados pelos homens enquanto esperam a presa. Quando surgem os primeiros peixes voadores, sinal de que o atum vem a caminho, os homens começam a puxar as redes e a empurrá-los para os navios, iniciando a matança pintada de tons de vermelho. Ao todo, Villiers vê serem apanhados cerca de 150 atuns, prontamente encaminhados para as fábricas de conserva.
Estes não irão ser vendidos pelas varinas, várias das quais, diz Villiers, colocam os sapatos junto ao cesto de peixe, equilibrado na cabeça, mal a polícia vira as costas.
De todos os artigos da "National Geographic", o de Howard La Fay, publicado em Outubro de 1965, é o mais analítico. Acompanhado por Volkmar Wentzel, que viajara por Angola e Moçambique, e agora assume o papel de fotógrafo, La Fay mostra um país "numa encruzilhada". É o Portugal que tem um novo metropolitano, mas que esconde, debaixo das suas luzes e sorrisos, "uma nação em crise".
Perdera os territórios na Índia e resiste à onda das independências em África, com demonstrações patrióticas carregadas de cartazes onde se diz que "lutaremos sempre".
Há novos edifícios e alguma industrialização, mas isso quase parece desapontar la Fay. Feito o percurso típico do território nacional, parando nos principais localidades, queixa-se que o vinho no Douro já não é pisado com os pés, entre risos e música. Confirma, no entanto, que ainda há muitos pescadores com recorrem às técnicas dos fenícios, e que cerca de 60 por cento da população trabalha na agricultura.
Fazer crescer o Algarve
Em Lisboa, onde se encanta com a luminosidade e com Alfama, para se entristecer com o som do fado, assiste à edificação dos primeiros alicerces da ponte sobre o Tejo, a maior do seu género na Europa. A ideia, explicam-lhe, é fazer crescer a capital, sobrelotada, para a outra margem, ganhando cidades satélite. Ao mesmo tempo, pretende-se abrir o sul ao turismo, passando o Algarve a ficar a quatro horas de viagem. A região, de tanto ser falada, já atraía cerca de 50 mil turistas por ano, para os quais tinham sido construídos meia dúzia de hotéis de luxo entre Monte Gordo e Sagres.
Se la Fay tinha dúvidas no título que iria colocar no texto, estas devem ter ficado resolvidas quando entrevistou um historiador, que manteve o anonimato. Portugal, é-lhe dito, defronta-se com "um momento crucial na sua história". "Virámos as nossas costas à Europa", constata o historiador. "Seja lá o que vier a acontecer", acrescenta, "quer fiquemos ou não com as províncias ultramarinas, Portugal vai reunir-se à Europa". Quanto às varinas, essas, já usavam sapatos, mas contra a sua vontade
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