Duarte Roriz
As casas resvalaram encosta abaixo e com elas todo o recheio. Um monte de entulho ocupou os bombeiros durante horas em busca de vítimas. Vizinhos de um prédio contíguo foram retirados
Lisboa: Moradores da freguesia dos Anjos alertaram câmara para o perigo
“Vi degraus engolidos pela terra”
"Gritei tanto para a minha vizinha me vir ajudar. Pensei que morria porque vi os degraus a serem engolidos pela terra e de repente as casas dos meus vizinhos deixaram de existir." Os lábios de Madalena Gonçalves tremiam cada vez que recordava o momento em que cinco casas ruíram com um deslizamento de terras, ontem à tarde, nas escadinhas Damasceno Monteiro, na freguesia dos Anjos, na encosta da Graça, em Lisboa. Só um milagre fez com que as três pessoas que viviam na Vila Martins, casal de idosos e a mulher de 52 anos, escapassem à tragédia.
- 06 Maio 2010 - Correio da Manhã
Apenas duas casas eram habitadas, sendo que as restantes eram ocupadas apenas durante a noite por sem-abrigo e toxicodependentes. 'O meu vizinho ficou sem nada, com a casa completamente destruída. Eu só me salvei porque fui alimentar os meus cães e quando vi aquela destruição toda só tive tempo de fugir', continuava a mulher, que vive sozinha. O casal de idosos não estava em casa porque tinha ido a uma consulta no médico. Foram também retiradas dezenas de pessoas, de pelo menos cinco prédios, por haver risco de novas derrocadas. Ao todo são quinze as pessoas desalojadas (ver págs. 6 e 7). 'Eu comecei a estranhar porque o meu pátio começou a abrir, mas nunca pensei que uma coisa dessas pudesse acontecer aqui', disse, incrédula, a mulher de 52 anos.
A situação provocou ainda uma onda de revolta entre os moradores da zona, que referiram ter enviado vários alertas à Câmara a dar conta do estado de degradação das casas da Vila Martins. 'Os canos já vertiam água por todos os lados e nunca ninguém nos ouviu. É preciso haver uma desgraça para alguém fazer alguma coisa', salientou Manuela Antunes, 55 anos, que há dois anos tinha juntado 1500 assinaturas para a Câmara intervir.
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De resto, está é uma situação confirmada ao CM pelo presidente da Junta dos Anjos. 'Admito que há mais de dois anos que recebemos a mesma queixa, mas não podemos fazer muita coisa porque não é da nossa competência e, da parte da Câmara, também nunca tivemos qualquer feedback', garantiu João Grave. Já o vereador da Protecção Civil da Câmara Municipal de Lisboa disse que 'é muito cedo para encontrar causas'.
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DISCURSO DIRECTO
'É MUITO CEDO PARA AVALIAÇÕES': Manuel Brito, Vereador da Protecção Civil da CML
Correio da Manhã – Já são conhecidos os motivos que levaram ao deslizamento de terras?
Manuel Brito – Neste momento o mais importante é assegurar que as pessoas que ficaram desalojadas estão a ser acolhidas e já a partir de hoje [ontem] vamos lutar para conter a situação, mas ainda é muito cedo para avaliações concretas. A partir de agora temos de pensar em limpar.
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– Quais as medidas que vão ser tomadas a partir de hoje?
– Já fizemos uma reunião de emergência e decretámos o estado de necessidade, devido à gravidade do que se passou. Em primeiro lugar temos de pensar no bem das pessoas que, felizmente, sobreviveram.
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– Quais os meios que ficam envolvidos a partir de agora?
– A PSP fica cá e hoje [ontem] vamos fazer vistoria completa até para avaliar a segurança de quem cá fica e que está com medo.
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CÃES À PROCURA DE CADÁVERES
O primeiro alerta chegou ao Regimento de Sapadores Bombeiros de Lisboa por volta das 17h20. Num primeiro momento suspeitou-se da existência de vítimas, pelo que foram desde logo accionados vários meios de socorro e salvamento, entre os quais os cães da Unidade Especial de Polícia (UEP), que procuravam cadáveres. Estiveram também no local vinte bombeiros, com cinco viaturas, várias ambulâncias do INEM, a Polícia Municipal de Lisboa, a EDP e ainda a EPAL.
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'ESCAPÁMOS POR MINUTOS'
Na Vila Martins, José António, de 51 anos, Vítor Sousa, de 42, (estes dois na foto à direita) e Francisco José, de 38, utilizavam uma das casas arrasadas para manter um pequeno ginásio privado. O proprietário da casa, José António, conta que ontem a habitação já estava com 'rachas de cerca de dez centímetros, enquanto no dia anterior não passava os dois'. Naquela vila, os problemas eram muitos. 'Não havia luz eléctrica na rua, nem esgotos, e havia muito lixo acumulado', descreve por sua vez Vítor Sousa.
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Ontem, foi por pouco que os três homens não ficaram debaixo dos escombros. 'Estávamos a ir para o ginásio, que eu tinha remodelado há pouco tempo, quando começámos a ver tudo a cair. Ainda tentei salvar uma máquina mas foi impossível', refere José António. 'Aquilo foi uma desgraça total, por cinco minutos que não ficámos ali os três. Se tivéssemos ido mais cedo não tínhamos escapado', assegura Vítor Sousa. Foram estes três homens que correram a chamar por socorro assim que as casa caíram, provocando 'um estrondo enorme' e libertando 'uma nuvem de poeira gigante' que cobriu todo o bairro por algum tempo.
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'É LOCAL DE GRANDE PERIGO'
Um total de 15 pessoas ficaram desalojadas ontem, na sequência da derrocada que destruiu cinco casas, na Vila Martins, na zona dos Anjos, em Lisboa, confirmou ao início da noite o vereador da Protecção Civil da Câmara Municipal de Lisboa (CML), Manuel Brito. Doze destas pessoas são moradoras num prédio que fica junto ao local da derrocada e que, segundo o responsável pela Protecção Civil, ficou descalço, constituindo por isso 'um local de grande perigosidade'. As outras três viviam na vila que ficou destruída.
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Os três moradores da Vila Martins que ficaram sem casa vão ficar temporariamente com familiares, enquanto os restantes doze vão ser realojados durante os próximos dias em habitações da câmara, assegurou ao CM o director do Departamento de Protecção Civil da CML, Vítor Vieira.
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A Polícia ficou no local durante a noite a guardar o perímetro de segurança que foi criado. Todos os outros meios de emergência – bombeiros, INEM e equipas de resgate – foram desmobilizados, depois da certeza de que ninguém tinha ficado soterrado. Havia o receio de que alguns toxicodependentes que frequentavam as casas abandonadas tivessem ficado debaixo dos escombros.
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As causas da derrocada ainda não foram apuradas, mas a vereadora da Habitação da CML, Helena Roseta, apontou o facto de o terreno naquela zona estar 'muito húmido', corroborando as suspeitas de moradores que falavam de um cano que durante muito tempo verteu água sem ser arranjado.
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Hoje, os bombeiros vão proceder à limpeza do local, depois de cortarem a electricidade na zona. Manuel Brito admite que vai ser um trabalho de alto risco. 'Os bombeiros podem mesmo correr risco de vida, o local é muito perigoso'. Já Helena Roseta afirma que não pode dizer 'quanto tempo vai demorar' a voltar tudo ao normal. Os dois vereadores admitiram mesmo ter assistido a uma segunda derrocada quando chegaram ao local.
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Os dois vereadores da CML decretaram ainda, verbalmente, o ‘estado de necessidade’ que permite à câmara intervir em terrenos de privados sem notificar os proprietários. Hoje vão ser também reforçadas várias estruturas para evitar mais derrocadas.
SAIBA MAIS
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O QUE É UMA VILA?
Habitação das famílias operárias, as vilas datam do séc. XIX. Não tinham sanitários nem água corrente e construíam-se à margem dos arruamentos a que acediam por serventia. Aproveitavam os interiores dos quarteirões.
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350
vilas foram contabilizadas em Lisboa na edição 1979 do Anuário Geral de Portugal..
A VILA AO LUXO
O Páteo Bagatella, às Amoreiras, hoje urbanismo de luxo, era antes a Vila Bagatella, construída em 1890 por Manuel Monteiro, emigrante regressado rico do Brasil.
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DISCURSO DIRECTO
'ÁGUA PODE TER AJUDADO À DERROCADA': Gonçalo Ribeiro Telles, Arquitecto paisagista
Correio da Manhã – O que terá provocado o deslizamento de terras nos Anjos?
Gonçalo Ribeiro Telles – Há muitas hipóteses, mas a mais provável é o excesso de água no solo. A infiltração de água nos diferente estratos pode ter ajudado à derrocada.
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– Há outras situações semelhantes a esta em Lisboa?
– É uma cidade colineira, logo onde há colinas pode haver deslizamentos. Um dos exemplos é o Vale de Alcântara.
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– Como se evitam estas situações?
– Através de um ordenamento de território sério que leve em consideração a circulação das águas. Estudar os diferentes vales da cidade e como é feita a circulação das águas.
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'TÍNHAMOS VÁRIOS ALERTAS HÁ DOIS ANOS'
João Grave, presidente da Junta de Freguesia dos Anjos, afirmou ter conhecimento do estado de degradação das casas da Vila Martins. 'Tínhamos vários alertas há mais de dois anos mas sem o apoio da câmara não podemos actuar. Felizmente não houve vítimas, porque se trata de habitações muito antigas e que têm de ter uma atenção especial e ,portanto, temos de intervir', disse o presidente ao CM.
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Vila operária em ruínas sumiu-se de repente numa colina de Lisboa
Público 06.05.2010 - 08:51 Por José António Cerejo
"Aquilo desabou tudo de um momento para o outro." Francisco José, trinta e tantos anos, nem teve tempo de salvar os aparelhos de ginástica que tinha numa das casas da degradada Vila Martins, na encosta que liga o miradouro da Senhora do Monte, na Graça, à Rua Damasceno Monteiro, por cima do Intendente, em Lisboa.
A derrocada fez 12 desalojados (Nuno Oliveira)
Pouco passava das 17h30 e os oito tugúrios térreos que em grande parte do século passado alojaram famílias de operários - seis dos quais desabitados e semi-arruinados - desapareceram pela encosta abaixo, no meio do pó e de um estrondo surdo.
"Por sorte não estava ninguém lá dentro", conta uma jovem enfermeira, residente num prédio vizinho, que saiu de casa a correr, a ver se podia ajudar alguém. Os cães pisteiros da PSP reforçariam depois a sua convicção, não encontrando sinal de vida sob os escombros acumulados na base da encosta. O casal de idosos que habitava uma das casas estava ausente e a mulher que vive na outra estava ali, desesperada, a contar como tinha sido obrigada a fugir, ao ver as paredes a rachar e a poeira a levantar-se. Os sem-abrigo que por vezes pernoitavam nas casas abandonadas não tinham sido vistos durante a tarde e os cães, um dos quais feriu uma pata no meio do entulho, não encontraram vestígios deles.
Amontoados no cruzamento da Damasceno Monteiro com as Escadinhas do mesmo nome, por onde se acedia à Vila Martins, através de uma estreita travessa, dezenas de moradores assistiam ao vaivém dos bombeiros e da protecção civil e assestavam baterias contra a Câmara de Lisboa e os senhorios. Uns falavam num primeiro abaixo-assinado há perto de 30 anos, a pedir a demolição dos casebres, que "nem sequer tinham casa de banho nem estavam ligados aos esgotos". Outros já só se lembravam de um protesto com cerca de 20 anos, realizado pouco depois de uma outra "barraca" existente junto à vila ter ido abaixo.
Os mais novos já não tinham conta das cartas, telefonemas, abaixo-assinados e e-mails a pedir uma solução. Nem tão-pouco das vistorias camarárias que confirmavam, segundo garantem, o risco de ruína e a falta de condições de habitabilidade da velha Vila. "O problema é que os senhorios estão-se marimbando. Pagam as coimas e pronto. Fica tudo na mesma", queixava-se um morador de um dos prédios da Damasceno Monteiro, situado mesmo por baixo das casas que agora se sumiram.
Nas traseiras deste edifício ainda estão dois armazéns, já assentes em socalcos, uns metros abaixo e à esquerda da Vila, onde em tempos se fabricou um dos ex-libris de Lisboa: a ginjinha Espinheira, que ainda tem loja aberta nas Portas de Santo Antão. "Há uns 30 anos, quando fizemos o primeiro abaixo-assinado, o senhor Espinheira foi um dos subscritores", recorda um reformado que abriu as portas do seu quarto andar aos jornalistas que não tinham outra maneira de ver o local do acidente.
Do topo do prédio, o rasgão lavrado na escarpa mostra o que sobra de uma das muitas chagas que Lisboa esconde. É um espaço minúsculo, de pouco mais de uma centena de metros quadrados, escondido entre prédios, visível apenas dos telhados. A encosta sobe a pique, quase na vertical, e era por ela que seguiam a escada ao longo da qual se empoleiravam as oito barracas, que já tinham sido casas pobres, de gente pobre, mas de tijolo e cimento. A imagem lembra morros e favelas e põe a nu muito do que a cidade tem de podre. "A encosta está oca por falta de drenagem das águas. Ainda pode cair algum prédio nas escadinhas", dizia um dos moradores.
"Por sorte não estava ninguém lá dentro", conta uma jovem enfermeira, residente num prédio vizinho, que saiu de casa a correr, a ver se podia ajudar alguém. Os cães pisteiros da PSP reforçariam depois a sua convicção, não encontrando sinal de vida sob os escombros acumulados na base da encosta. O casal de idosos que habitava uma das casas estava ausente e a mulher que vive na outra estava ali, desesperada, a contar como tinha sido obrigada a fugir, ao ver as paredes a rachar e a poeira a levantar-se. Os sem-abrigo que por vezes pernoitavam nas casas abandonadas não tinham sido vistos durante a tarde e os cães, um dos quais feriu uma pata no meio do entulho, não encontraram vestígios deles.
Amontoados no cruzamento da Damasceno Monteiro com as Escadinhas do mesmo nome, por onde se acedia à Vila Martins, através de uma estreita travessa, dezenas de moradores assistiam ao vaivém dos bombeiros e da protecção civil e assestavam baterias contra a Câmara de Lisboa e os senhorios. Uns falavam num primeiro abaixo-assinado há perto de 30 anos, a pedir a demolição dos casebres, que "nem sequer tinham casa de banho nem estavam ligados aos esgotos". Outros já só se lembravam de um protesto com cerca de 20 anos, realizado pouco depois de uma outra "barraca" existente junto à vila ter ido abaixo.
Os mais novos já não tinham conta das cartas, telefonemas, abaixo-assinados e e-mails a pedir uma solução. Nem tão-pouco das vistorias camarárias que confirmavam, segundo garantem, o risco de ruína e a falta de condições de habitabilidade da velha Vila. "O problema é que os senhorios estão-se marimbando. Pagam as coimas e pronto. Fica tudo na mesma", queixava-se um morador de um dos prédios da Damasceno Monteiro, situado mesmo por baixo das casas que agora se sumiram.
Nas traseiras deste edifício ainda estão dois armazéns, já assentes em socalcos, uns metros abaixo e à esquerda da Vila, onde em tempos se fabricou um dos ex-libris de Lisboa: a ginjinha Espinheira, que ainda tem loja aberta nas Portas de Santo Antão. "Há uns 30 anos, quando fizemos o primeiro abaixo-assinado, o senhor Espinheira foi um dos subscritores", recorda um reformado que abriu as portas do seu quarto andar aos jornalistas que não tinham outra maneira de ver o local do acidente.
Do topo do prédio, o rasgão lavrado na escarpa mostra o que sobra de uma das muitas chagas que Lisboa esconde. É um espaço minúsculo, de pouco mais de uma centena de metros quadrados, escondido entre prédios, visível apenas dos telhados. A encosta sobe a pique, quase na vertical, e era por ela que seguiam a escada ao longo da qual se empoleiravam as oito barracas, que já tinham sido casas pobres, de gente pobre, mas de tijolo e cimento. A imagem lembra morros e favelas e põe a nu muito do que a cidade tem de podre. "A encosta está oca por falta de drenagem das águas. Ainda pode cair algum prédio nas escadinhas", dizia um dos moradores.
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