Discurso de Lula da Silva (excerto)

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segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Sebastião Alves - Nas minhas viagens levava sempre comigo Os Lusíadas


* Maria Ramos Silva
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Sebastião Alves não é dos melhores clientes de si próprio. Mais do que fabricar medicamentos, fabrica saúde. Aos 87 anos, o presidente do Laboratório Farmacêutico Atral Cipan mantém o hobbie da caça e desfia com precisão cronológica as aventuras de uma vida erguida a pulso.
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Aos seis anos guardava gado numa aldeia de Proença-a-Nova. Aos 15 abandonava o seminário com uma “enxaqueca” de tanto perder noites entre livros na biblioteca. O serviço militar trouxe-o para Lisboa. Com pouco mais de 20 anos, onde todos viram uma farmácia falida, ele viu “um ovo de Colombo”. Ávido das letras, teve tempo e vontade para ser jornalista e cursar medicina. E para fundar as editoras Arcádia e Verbo. A sua biografia sai em breve. Para não fugir à regra, escrita por punho próprio.

Costuma dizer-se que ‘em casa de ferreiro espeto de pau’. O comendador tem uma idade invejável. Dispensa medicamentos?

- Não, não. Isso é muito popular, mas eu dedico-me aos medicamentos há tantos anos, havia de lhes querer mal? Quando é necessário tomo-os!

Hoje toma-se muito mais do que o que se tomava

- Se calhar alguns em excesso. Mas a medicina portuguesa é uma das mais sãs, apesar de tudo.

Vem de uma pequena aldeia de Proença-a-Nova. Será também efeito dos ares do campo?

- Lá não havia doenças. Se havia eram infecciosas, que foram vencidas, como a pneumonia e a febre tifóide. Havia famílias com vários filhos. Muitos ainda todos vivos. O meu irmão mais velho tem 95 anos e ainda é vivo.

Volta muitas vezes à ‘terra’?

- Volto. Ainda há pouco tempo lá estive. Construíram lá casas modernas, quando eu gostaria de ver aquilo em xisto, como está a minha casa, aliás.

Como era a vida na aldeia no tempo do xisto?

- Todos trabalhávamos. Começávamos aos seis anos. Éramos seis irmãos e eu fui guardar o gado do meu avô.

Os irmãos seguiram as pisadas?

- Não, o mais velho é analfabeto. Outros dois foram ordenados padres. Quando os meus irmãos foram para a escola, eu regressei a casa para guardar o rebanho da família até ir para a primária aos nove anos.

Passou pelo seminário.

- Dos 13 aos 15 anos. A minha mãe mandou quatro filhos para o seminário. Era analfabeta, como o meu pai, e aquilo era uma forma de nos pôr a estudar.

Que recordações guarda?

- Não tenho más recordações da infância. Na escola fui sempre o primeiro, no seminário também. Não me tratavam mal mas tiveram o azar de me entregar uma biblioteca com 15 anos

Correu mal esse cargo?

- Correu menos bem porque eu passava a noite a ler livros! (risos)

O que lia?

- Tudo! Saí de lá com uma enxaqueca horrível porque me deitava às seis da manhã a ler.

Vem para Lisboa fazer o serviço militar. Foi um choque muito grande a transição?

- Não, era sempre uma saída. Vim pelos 21. O meu instrutor tinha assistido à abertura da frente russa na guerra e verificou que a segunda linha era a saúde. Eu fui colocado na engenharia como primeiro recruta. Escolheram os 60 melhores classificados dessa recruta para fazer o curso de enfermagem.

Gostava?

- Minha senhora, era melhor do que andar na pintura da construção civil! (risos). Continuei como enfermeiro com responsabilidade pela enfermaria e fiz os sete anos de liceu em dois anos. Tinha um certificado do seminário que mo permitiu.

Como é que chega à farmácia onde trabalhou, em Alcântara?

- Um senhor que era enfermeiro e electricista de biscates disse que me ia arranjar uma coisa. Pensei que talvez estivesse ali uma saída para não ser mobilizado para Timor. Ele mandou--me ir à loja na Rua da Conceição falar com o senhor Travassos. Chego lá e vejo cartazes de medicamentos!

Não eram fios eléctricos...

- Não. Era para trabalhar na farmácia como propagandista. No dia 13 de Outubro de 44 comecei a trabalhar das seis às oito, mas tinha a faculdade.

Dava para conciliar?

- Dava. As aulas acabavam sempre às quatro. Depois, no Verão de 47, o senhor Travassos morreu. Os sócios começaram a fazer as contas e a farmácia estava falida. Eu em Janeiro fui avisado para tratar da minha vida. Pensei que era uma pena. O sócio que mais sofreria com a liquidação do negócio conversou comigo e eu fui à reunião onde estavam os vários sócios. Perguntaram-me o que é que estava mal.

O que é que respondeu ?

- Antes de mais, que ninguém sabia nada de medicamentos. Não tinham técnica de farmácia. Disse que aquilo precisava de ser dirigido. Perguntaram-me se eu conseguia dirigir. E eu disse que sim.

Foi inesperado o convite?

- Completamente. Quando me fazem o desafio perguntam-me quanto queria ganhar. E eu disse: “os senhores depois vêem”. Deu novo rumo à minha vida.

O que tinha traçado?

- Qualquer coisa ligada às historietas. Colaborava em jornais, ‘Acção’ e ‘Nação’. Aqui lembro-me de um furo para a ‘Nação’. Em 46 tinha dados suficientes para dizer que estava preparada a terceira guerra mundial. O que o Churchill disse nos Estados Unidos sobre a cortina de ferro, disse eu três meses antes no jornal. O jornal saía ao sábado e fizeram nova edição na segunda-feira.

Podia ter sido jornalista então...

- Podia, mas eu estava tão confiante que comecei a escrever cartas às câmaras de comércio na África e na Ásia.

Já a pensar na expansão?

- Tinha-se saído de uma guerra, não se importavam medicamentos. Pus as coisas a trabalhar. Em dois meses as vendas duplicaram e no terceiro triplicaram.

Tínhamos potencial?

- Tínhamos algum crédito, muito crédito pela África a baixo, Nigéria, Costa do Marfim... depois encontrei apoios e fui à Abissínia, Cairo, Bombaim, Colombo, Bangladesh, Singapura...

Nunca se sentiu pequenino?

- Não. Levava comigo ‘Os Lusíadas’! (risos). E em muitos lados havia muita presença portuguesa

Hoje o grupo Atral Cipan está presente em 120 países. Como se gere um império destes?

- Andamos em toda a parte. Nos últimos anos houve profundas modificações e caímos do ritmo a que vínhamos, mas o património está intacto. Eu, tardiamente, profissionalizei a administração. Está tudo preparado para o relançamento. O nosso principal mercado continuam a ser os E.U.A.

A indústria farmacêutica é conhecida por ser muito lucrativa...

- Já foi muito próspera, hoje todo o Mundo está na indústria com dificuldade, até os E.U.A. O nosso objectivo é dotar o país de uma indústria farmacêutica diferente, produtiva de matérias-primas. É isso que nos aguenta ainda hoje e nos dá nome e prestígio.

Continua a apostar em coisas por quem ninguém dá nada? No início, acreditou nos antibióticos quando poucos acreditavam

- É verdade e continuamos a fazer antibióticos. Acho que somos a única fábrica do Mediterrâneo que é mesmo do Mediterrâneo! Porque as que estão em França, Espanha e Itália não são de lá. Somos excepção.

Como é que se meteu na aventura das editoras?

- Como andava nas lides do jornalismo, a primeira coisa que fiz depois de me instalar na cadeira foi comprar uma tipografia, em 54. Em 56 fiz a Arcádia com o Fernando Namora. Em 59 a Arcádia fecha e fiz a Verbo. Gostava dos livros, não era empresário.

Nos dias que correm lê-se menos do que se lia ...

- ...mas edita-se mais do que antigamente. Em cada esquina aparece um editor!

É uma área mais fácil ou mais difícil do que os medicamentos?

- Inicialmente é mais fácil. Já na Arcádia foi fácil, conhecia um editor famoso, o Jaime Cortesão, e lembrei-me de começar com uma história dos descobrimentos. Quatro anos depois, na Verbo, a minha ideia era uma enciclopédia de cozinha porque via a Maria de Lourdes Modesto na televisão a ensinar o uso da margarina e achei que tinha jeito para aquilo. O meu sócio, o Fernando Guedes, disse-me “epá, cozinha?”. ‘Deixa lá andar’, disse eu. E foi, de facto, popular.

É uma questão de faro?

- Não, é preciso é conhecer alguma coisa do métier em que a gente se encontra. E capacidade de visão e iniciativa.

Temos iniciativa suficiente?

- O clima não tem sido favorável. Este modelo social europeu tem dificultado muito o investimento. É evidente que a vida das nações - hoje já não se fala de nações, mas eu falo! - é diferente, mas não acredito que o espírito português morra aqui. O Brasil e a África para entrarem na Europa querem ter um pé aqui. Acredito num espírito muito diferente. Se acabarem os credos políticos socializantes

Foi deputado da Assembleia Nacional no Antigo Regime. Tem saudades da política?

- Não, não... A política não me interessava nada. Estava a fazer celulose em Vila Velha de Ródão e convidaram-me para trabalhar na região, em 65. Aceitei, isso dava nome. Mas não regressava. Não porque me tratassem mal, mas pelos prejuízos que vieram daí...

Não lhe devem ter sobrado só más memórias....

- A administração era muito sã. Havia grupos de pressão como hoje, mas os valores eram outros. Havia mais ética nisto tudo. Estive duas vezes com Salazar. Era muito simples, recebeu-me no gabinete, abriu-me a porta e tratou-me como se me conhecesse.

Ainda hoje há vozes saudosas do Presidente do Conselho....

- Ele não cabia neste entrecho. Quando foi eleito para deputado foi duas vezes à assembleia e fugiu! Não gostava do poder. Ouvi-o dizer muitas vezes que a I República não caiu por culpa dos homens, caiu por culpa do sistema. Era inteligente o suficiente para não acusar os homens, mas ainda hoje o sistema não o aceita.

E no sistema actual, que avaliação faz do Governo?

- Teve umas ideias interessantes. Era bom que as concretizasse. Ainda vejo muita areia na engrenagem, algumas precipitações. E algum nepotismo também. Mas já no século XIX foi assim!

Continua a fazer o percurso casa-trabalho diariamente. Não se cansa?

- Não! Até vou à caça!

Tem outros hobbies?

- Praticamente caça e leitura.

E escrever um livro?

- Está escrito. É isto tudo. As minhas andanças. Faltam retoques e paginação e fotografias. Calcule que nunca tirei uma fotografia de propósito para este livro [aponta para a Fotobiografia, da autoria de Rita Ferro e Ana Vidal]. Em todas me apanharam!

PERFIL

Nascido em 1920 no seio de uma família modesta, na aldeia da Amoreira, em Proença-a-Nova, Sebastião Alves vem para Lisboa aos 21 anos cumprir o serviço militar, com a instrução primária na então curta bagagem escolar. Para trás ficam dois anos de seminário. Já longe da terra natal, frequenta um curso de enfermagem. No ano seguinte, em 1942, é promovido a sargento miliciano enfermeiro. Inscreve-se numa escola nocturna e em dois anos completa os sete anos de liceu.

Em 1944, com 24 anos, matriculava-se em Medicina, pagando as propinas com os contos que escrevia para o jornal ‘Diário Popular’. Abandona a licenciatura no terceiro ano por excesso de responsabilidades. O grupo a que hoje ainda preside arranca com os Laboratórios ATRAL em princípios de 1948, a partir de uma farmácia, cuja situação financeira no balanço de 1947 era de falência técnica.

Sempre ligado à investigação e sobretudo na indústria farmacêutica, Sebastião Alves torna-se uma figura de relevo na promoção das Faculdades de Farmácia de Coimbra e Lisboa. É distinguido com as Comendas da Ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém, conferida pela Santa Sé, e Comenda do Mérito Industrial e da Ordem do Mérito Civil. O empresário estende a sua actividade profissional a diversas áreas, estando o grupo farmacêutico presente em 120 países.
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in Correio da Manhã 2008.01.06
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FOTO - Bruno Colaço (Sebastião Alves)

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