* José Manuel Simões
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Sou contra o sistema, e ele não me dá muito espaço
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Recusou receber a Ordem da Liberdade porque não aceita distinções oficiais de um Estado que corporiza “a sociedade injusta em que vivemos” nem foi à Expo’98 porque achou que uma iniciativa daquelas foi um insulto aos pobres. Diz que as suas convicções não estão à venda e quando lhe passam a mão pelas costas desconfia. Tem sido prejudicado por assumir as suas posições políticas mas, 25 anos depois de ter estado exilado para fugir à guerra, continua a resistir, numa luta em que dá mas também leva.
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Correio Êxito – Em 1994 foi abordado pelo então Presidente da República, Mário Soares, no sentido de receber a condecoração da Ordem da Liberdade. Por que é que recusou?
José Mário Branco – Porque o condecorador tem de ser digno do condecorado. Não aceito distinções oficiais de um Estado que corporiza a sociedade injusta em que vivemos.
– Já disse: “Em geral, prefere-se lamber botas, facilitar, passando-se assim rasteiras ao próximo.” Pode comentar?
– É com os que amamos que temos de ser mais sinceros. Quando me passam a mão pelas costas acriticamente desconfio. É ratoeira que afaga o ego mas embota a lucidez.
– Tem sido prejudicado por assumir pública e frontalmente as suas posições políticas?
– Quem vai à guerra dá e leva. Sou contra o sistema e, naturalmente, o sistema não me dá muito espaço.
– É verdade que quis ser padre para se dedicar por inteiro à militância contra a pobreza?
– Aos 16 anos, sim. Por influência do meu tio, padre franciscano.
– O seu pai foi para o seminário, e o seu avô suicidou-se com um tiro na cabeça. Como vê tal acto?
– Prefiro não falar disso. Ele foi obrigado a pôr o filho muito pequeno (o meu pai) no seminário, e não suportou isso.
– O José esteve preso durante seis meses. Sofreu?
– Sim.
– Como é que foi passar a fronteira como fugitivo, com um bebé ao colo?
– O bebé, de meses, foi para iludir os pides. Chama-se Marta, deve ter agora 45 anos.
– É verdade que afirmou: “Não fui à Expo’98 porque achei que uma iniciativa daquelas, num País como o nosso, foi um insulto aos pobres”?
– Sim. Recusei a proposta mais cara que alguma vez me fizeram. As minhas convicções não estão à venda.
– A sua canção é uma arma?
– No sentido de ser uma forma de intervir na sociedade qualquer canção é uma arma. Quando me fazem perguntas sobre o canto de intervenção, respondo que acho essa designação inadequada. Qualquer canto é uma forma de intervir.
– O seu canto é inquietação?
– É evidente que nisso, como em tudo o resto, vamos por tentativas, por esforço, tentando aprender com os enganos. A inquietação resulta de nós fazermos isso com a presença da dor, algo que me é insuportável.
– São sintomas da fase em que viveu no exílio?
– O exílio é uma coisa muito má, em que se tem saudades e se está muito revoltado contra esse afastamento das pessoas e dos sítios que gostamos. Por outro lado, durante os 11 anos em que estive exilado vivi coisas muito boas e muito bonitas.
– Como por exemplo?
– O nascimento dos meus dois filhos, o Maio de 68, o surto do espírito libertário, que está relacionado com os meus sentimentos humanísticos. Mas fiquei zangado com essa parte da minha vida, e Paris paga por tabela.
– Usando um chavão: Comeu o pão que o diabo amassou?
– Estávamos inseridos numa sociedade e num mundo que era a preto e branco. Em Portugal nada era a cores. Não é normal uma pessoa aos 18 anos ter que tomar decisões que são definitivas para toda a vida. Decisões que tinham um preço. Se queria exprimir-me livremente, associar-me, ter iniciativas com os meus amigos ou cantar publicamente sabia que isso tinha um preço. Se tinha, por causa das minhas convicções, uma recusa em participar na guerra colonial, sabia que isso tinha um preço. E teve um preço que foi não só ter que fugir do País mas zangar-me com pessoas que aparentemente deviam estar de acordo comigo.
– Zangou-se com quem?
– Muita gente da esquerda era da opinião de que se devia ir para a guerra para se fazer um trabalho político. Eu era tão profunda e visceralmente contra que não podia alinhar.
– O preço que pagou foi demasiado alto para o retorno?
– É tudo relativo. Quando existe injustiça na sociedade, desigualdade, guerras, prisões ou perseguições, temos uma sensação que parece antagónica. Por que é que o Bush, como ser humano que é, não pensa no que está a fazer? Porque dá a ideia que se ele caísse em si percebia que é horrível matar um milhão de pessoas que não têm culpa nenhuma. As desigualdades, o racismo, a xenofobia em relação aos imigrantes têm um lado irracional. A par disso há a noção de que é preciso lutar para mudar essas coisas pois no fim dessa luta poderá estar uma sociedade um bocadinho melhor. Em mim há estes dois lados que estão sempre a lutar um contra o outro.
– A integração na Europa desvirtuou esses dados?
– Como diria o outro, nem sim nem não, antes pelo contrário. A Europa é um fenómeno de globalização capitalista que não está feita para as pessoas mas para as empresas, para os bancos, para os grandes grupos económicos. Está feita para regular este mercado enorme e para o dinheiro.
– É um homem sensível?
– Os criadores têm sempre uma certa sensibilidade à flor da pele.
– E de muito rigor?
– A criação é sempre um combate com a matéria, um combate com a página em branco, na música é um combate com o silêncio e com a não obra. É um combate difícil em que na fase crucial da criação se está sozinho. Completamente sozinho, sem a ajuda de nada nem de ninguém.
– É solidário por natureza?
– Temos que pensar que ao fazer qualquer coisa estamos sempre a fazê-lo em nome de seis ou sete biliões de pessoas.
– Considera que a sua música conseguiu dar voz a toda essa gente e abanar a incaracterística pobreza da canção urbana?
– Num certo aspecto deu. Se bem que não se possa dizer que a história da nova canção portuguesa começou aí.
– Pode dizer-se que o José herdou de Zeca Afonso?
– Eu, o Fausto, o Sérgio, e outros, somos filhotes do Zeca. No meu caso, no do Sérgio e de outros, posso dizer que começámos a fazer canções estimulados pela criatividade do Zeca.
– A vossa música foi uma força catalizadora dos nossos esparsos valores culturais?
– Sinto isso quando estou na fila do supermercado e de repente há uma senhora que me pergunta se sou o Zé Mário Branco e se me pode dar um abraço, “Porque as suas canções foram importantes na minha vida.” As minhas canções são como filhos que eu vou parindo e que vão à vida. Tenho um afilhado que se chama Zé Mário. Foi baptizado assim porque os pais, que não me conheciam, estavam zangados, reconciliaram-se e fizeram um filho depois de ouvirem o ‘Ser Solidário’. São coisas que acontecem fora de mim, são as minhas canções a funcionar na vida das pessoas.
– Portugal não está carente, ou distante, desses valores?
– Embora continue a existir o cacete e a prisão, estamos numa época em que o principal factor de opressão é o cinzentismo. As pessoas estão todas sozinhas, mesmo que dentro das mesmas casas, em frente ao ecrã, computador, telemóvel. Tudo o que seja pôr as tripas cá para fora ou mobilizar energia para acordar as pessoas desta letargia é subversivo.
– Foi o que fez com o ‘FMI’?
– É esse aspecto da energia, de um certo despudor e de gritos viscerais que podem ajudar a despertar a malta que anda a dormir.
– É um álbum confessional, o confronto do revolucionário com o refluxo da revolução?
– Cada vez mais estou convencido de que ninguém é capaz de fazer uma revolução se não a fizer também por dentro.
– Alguma vez sentiu na pele uma frase sua que diz que “a mediocridade tem um medo mortal da qualidade”?
– Onde entra a segunda, a primeira não sobrevive. É por isso que a mediocridade é agressiva, “isola o mal” do criador livre e só o adopta à posteriori, se e quando o pode digerir.
– O seu critério político está à frente do artístico?
– Não. Desde muito novo que estive ligado a iniciativas políticas, a partidos e movimentos, mas dificilmente alguma vez na vida separei uma coisa da outra. Na última vez em que falei em nome do Bloco de Esquerda já estava a perceber que aquela casa, que era de pessoas que se estão a acomodar perante o sistema, que não querem mudar a sociedade mas reformá-la, não era compatível com o meu radicalismo. Nunca saí de partido nenhum. Os partidos é que vão saindo de mim.
– Já foi expulso de muitos lados. Isso é bom ou mau sinal?
– É mau. É porque continua a haver em muitos lados razões para este meu modo de ser radical e frontal criar incómodos e, para alguns, tornar-se insuportável.
– Tem muita falta de paciência para com o sistema não tem?
– Nenhuma paciência. É por isso que sou tão radical.
– Ainda lamenta não ver gente feliz à sua volta?
– Foi por isso que naquela canção ‘Ser Solidário’ lá pus o advérbio “improvavelmente”. Improvavelmente ser feliz. Porque a felicidade é a generalização deste processo a todos os seres humanos que são meus irmãos nesta aventura.
– “A revolução é uma questão de bom senso”?
– É. Não acho que um grande financeiro ou um grande capitalista seja ou possa ser feliz por esse simples facto. Há aí uma irracionalidade inerente à noção do lucro e da extorsão da mais-valia do valor produzido.
– Não é contraditório procurar manter um ‘low-profile’?
– ‘Low-profile’ no sentido em que evito ser cúmplice de situações irrelevantes. Gosto de me divertir, tenho família e amigos como toda a gente. Mas dou-me muito mal com a fatuidade, com as palermices.
– Todavia certa vez afirmou que “todos temos um pouco tendência para sermos parvos”.
– Para sermos parvos e para o irrisório. Mas depois, talvez pela minha formação de origem cristã, sinto a dor física da Humanidade, da doença, da fome, do mal-estar, da solidão. Ser de esquerda é isso. É não suportar a dor da Humanidade.
"O MEU LUXO É FAZER SÓ O QUE GOSTO"
– Considera-se um “cantor maldito”, amaldiçoado pela indústria discográfica?
– Fui muito discriminado, como outros, para castigo das posições revolucionárias assumidas no PREC. Mais ainda pelas televisões do que pelas editoras. E como sou intratável quanto à qualidade dos discos que faço, tudo isso tornou difíceis as relações com as editoras. Por isso a maior parte dos meus discos são autoproduzidos.
– Mas ganhou alguns milhares de contos para autorizar a edição da sua obra completa em CD. O que é que isso representou, além de ter comprado uma casa na serra e um carro novo?
– Um luxo enorme, que é só fazer o que gosto.
– E do que é que gosta?
– Não imagina as coisas que eu não faço e para as quais sou convidado. Gosto de cantar, de fazer espectáculos, de dirigir como produtor e orquestrador o trabalho de outros artistas desde que me identifique, de fazer música para teatro e para cinema
– O que certamente não gosta é de cantar o Hino Nacional
– O próprio facto de ser marxista ajuda-me a perceber como o nacionalismo foi uma regressão para a humanidade. Guerra, desgraça, coisas sem sentido nenhum, factor de alienação das consciências, Fátima, Futebol e Fado.
– O que é que responde a quem o acusa de se ter aburguesado?
- Aburguesado? Aburguesado não. Tenho mais que uma casa, tenho um Audi à porta, tenho um frigorífico cheio de comida, mas a minha consciência não é burguesa e está ao serviço de quem precisa.
– No plano pessoal, que virtudes encontra em si?
– Tem a ver com a radicalidade. É saber o que pensa, sente e o que se pode esperar daquele animal que é o Zé Mário Branco. Não estou aqui a enganar.
– E defeitos?
– A minha mulher diz que é a preguiça para compor.
– Não receia ficar conhecido apenas pelo que cantava há mais de 25 anos?
– Imenso. Perguntam-me muitas vezes: ‘Para quando o próximo disco?’ E eu respondo: ‘Já conhece os anteriores?’
PERFIL
Nasceu no Porto em 1942, filho de professores primários, fez estudos universitários, e em 1963 partiu para o exílio em Paris, onde teve dois filhos. Depois do Maio de 1968 profissionalizou-se, deixou o trabalho no Banco e passou a viver da música. Em 1971 editou ‘Mudam-se os Tempos Mudam-se as Vontades’. Aí percebeu que tinha arranjado uma amante, a música, para a vida toda. Tem 17 discos editados, entre eles, os aclamados ‘FMI’ e ‘Ser Solidário’, de 1982. Actualmente está a meio do curso de Linguística da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O seu itinerário artístico esteve desde sempre ligado à consciência revolucionária portuguesa.
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Correio Êxito – Em 1994 foi abordado pelo então Presidente da República, Mário Soares, no sentido de receber a condecoração da Ordem da Liberdade. Por que é que recusou?
José Mário Branco – Porque o condecorador tem de ser digno do condecorado. Não aceito distinções oficiais de um Estado que corporiza a sociedade injusta em que vivemos.
– Já disse: “Em geral, prefere-se lamber botas, facilitar, passando-se assim rasteiras ao próximo.” Pode comentar?
– É com os que amamos que temos de ser mais sinceros. Quando me passam a mão pelas costas acriticamente desconfio. É ratoeira que afaga o ego mas embota a lucidez.
– Tem sido prejudicado por assumir pública e frontalmente as suas posições políticas?
– Quem vai à guerra dá e leva. Sou contra o sistema e, naturalmente, o sistema não me dá muito espaço.
– É verdade que quis ser padre para se dedicar por inteiro à militância contra a pobreza?
– Aos 16 anos, sim. Por influência do meu tio, padre franciscano.
– O seu pai foi para o seminário, e o seu avô suicidou-se com um tiro na cabeça. Como vê tal acto?
– Prefiro não falar disso. Ele foi obrigado a pôr o filho muito pequeno (o meu pai) no seminário, e não suportou isso.
– O José esteve preso durante seis meses. Sofreu?
– Sim.
– Como é que foi passar a fronteira como fugitivo, com um bebé ao colo?
– O bebé, de meses, foi para iludir os pides. Chama-se Marta, deve ter agora 45 anos.
– É verdade que afirmou: “Não fui à Expo’98 porque achei que uma iniciativa daquelas, num País como o nosso, foi um insulto aos pobres”?
– Sim. Recusei a proposta mais cara que alguma vez me fizeram. As minhas convicções não estão à venda.
– A sua canção é uma arma?
– No sentido de ser uma forma de intervir na sociedade qualquer canção é uma arma. Quando me fazem perguntas sobre o canto de intervenção, respondo que acho essa designação inadequada. Qualquer canto é uma forma de intervir.
– O seu canto é inquietação?
– É evidente que nisso, como em tudo o resto, vamos por tentativas, por esforço, tentando aprender com os enganos. A inquietação resulta de nós fazermos isso com a presença da dor, algo que me é insuportável.
– São sintomas da fase em que viveu no exílio?
– O exílio é uma coisa muito má, em que se tem saudades e se está muito revoltado contra esse afastamento das pessoas e dos sítios que gostamos. Por outro lado, durante os 11 anos em que estive exilado vivi coisas muito boas e muito bonitas.
– Como por exemplo?
– O nascimento dos meus dois filhos, o Maio de 68, o surto do espírito libertário, que está relacionado com os meus sentimentos humanísticos. Mas fiquei zangado com essa parte da minha vida, e Paris paga por tabela.
– Usando um chavão: Comeu o pão que o diabo amassou?
– Estávamos inseridos numa sociedade e num mundo que era a preto e branco. Em Portugal nada era a cores. Não é normal uma pessoa aos 18 anos ter que tomar decisões que são definitivas para toda a vida. Decisões que tinham um preço. Se queria exprimir-me livremente, associar-me, ter iniciativas com os meus amigos ou cantar publicamente sabia que isso tinha um preço. Se tinha, por causa das minhas convicções, uma recusa em participar na guerra colonial, sabia que isso tinha um preço. E teve um preço que foi não só ter que fugir do País mas zangar-me com pessoas que aparentemente deviam estar de acordo comigo.
– Zangou-se com quem?
– Muita gente da esquerda era da opinião de que se devia ir para a guerra para se fazer um trabalho político. Eu era tão profunda e visceralmente contra que não podia alinhar.
– O preço que pagou foi demasiado alto para o retorno?
– É tudo relativo. Quando existe injustiça na sociedade, desigualdade, guerras, prisões ou perseguições, temos uma sensação que parece antagónica. Por que é que o Bush, como ser humano que é, não pensa no que está a fazer? Porque dá a ideia que se ele caísse em si percebia que é horrível matar um milhão de pessoas que não têm culpa nenhuma. As desigualdades, o racismo, a xenofobia em relação aos imigrantes têm um lado irracional. A par disso há a noção de que é preciso lutar para mudar essas coisas pois no fim dessa luta poderá estar uma sociedade um bocadinho melhor. Em mim há estes dois lados que estão sempre a lutar um contra o outro.
– A integração na Europa desvirtuou esses dados?
– Como diria o outro, nem sim nem não, antes pelo contrário. A Europa é um fenómeno de globalização capitalista que não está feita para as pessoas mas para as empresas, para os bancos, para os grandes grupos económicos. Está feita para regular este mercado enorme e para o dinheiro.
– É um homem sensível?
– Os criadores têm sempre uma certa sensibilidade à flor da pele.
– E de muito rigor?
– A criação é sempre um combate com a matéria, um combate com a página em branco, na música é um combate com o silêncio e com a não obra. É um combate difícil em que na fase crucial da criação se está sozinho. Completamente sozinho, sem a ajuda de nada nem de ninguém.
– É solidário por natureza?
– Temos que pensar que ao fazer qualquer coisa estamos sempre a fazê-lo em nome de seis ou sete biliões de pessoas.
– Considera que a sua música conseguiu dar voz a toda essa gente e abanar a incaracterística pobreza da canção urbana?
– Num certo aspecto deu. Se bem que não se possa dizer que a história da nova canção portuguesa começou aí.
– Pode dizer-se que o José herdou de Zeca Afonso?
– Eu, o Fausto, o Sérgio, e outros, somos filhotes do Zeca. No meu caso, no do Sérgio e de outros, posso dizer que começámos a fazer canções estimulados pela criatividade do Zeca.
– A vossa música foi uma força catalizadora dos nossos esparsos valores culturais?
– Sinto isso quando estou na fila do supermercado e de repente há uma senhora que me pergunta se sou o Zé Mário Branco e se me pode dar um abraço, “Porque as suas canções foram importantes na minha vida.” As minhas canções são como filhos que eu vou parindo e que vão à vida. Tenho um afilhado que se chama Zé Mário. Foi baptizado assim porque os pais, que não me conheciam, estavam zangados, reconciliaram-se e fizeram um filho depois de ouvirem o ‘Ser Solidário’. São coisas que acontecem fora de mim, são as minhas canções a funcionar na vida das pessoas.
– Portugal não está carente, ou distante, desses valores?
– Embora continue a existir o cacete e a prisão, estamos numa época em que o principal factor de opressão é o cinzentismo. As pessoas estão todas sozinhas, mesmo que dentro das mesmas casas, em frente ao ecrã, computador, telemóvel. Tudo o que seja pôr as tripas cá para fora ou mobilizar energia para acordar as pessoas desta letargia é subversivo.
– Foi o que fez com o ‘FMI’?
– É esse aspecto da energia, de um certo despudor e de gritos viscerais que podem ajudar a despertar a malta que anda a dormir.
– É um álbum confessional, o confronto do revolucionário com o refluxo da revolução?
– Cada vez mais estou convencido de que ninguém é capaz de fazer uma revolução se não a fizer também por dentro.
– Alguma vez sentiu na pele uma frase sua que diz que “a mediocridade tem um medo mortal da qualidade”?
– Onde entra a segunda, a primeira não sobrevive. É por isso que a mediocridade é agressiva, “isola o mal” do criador livre e só o adopta à posteriori, se e quando o pode digerir.
– O seu critério político está à frente do artístico?
– Não. Desde muito novo que estive ligado a iniciativas políticas, a partidos e movimentos, mas dificilmente alguma vez na vida separei uma coisa da outra. Na última vez em que falei em nome do Bloco de Esquerda já estava a perceber que aquela casa, que era de pessoas que se estão a acomodar perante o sistema, que não querem mudar a sociedade mas reformá-la, não era compatível com o meu radicalismo. Nunca saí de partido nenhum. Os partidos é que vão saindo de mim.
– Já foi expulso de muitos lados. Isso é bom ou mau sinal?
– É mau. É porque continua a haver em muitos lados razões para este meu modo de ser radical e frontal criar incómodos e, para alguns, tornar-se insuportável.
– Tem muita falta de paciência para com o sistema não tem?
– Nenhuma paciência. É por isso que sou tão radical.
– Ainda lamenta não ver gente feliz à sua volta?
– Foi por isso que naquela canção ‘Ser Solidário’ lá pus o advérbio “improvavelmente”. Improvavelmente ser feliz. Porque a felicidade é a generalização deste processo a todos os seres humanos que são meus irmãos nesta aventura.
– “A revolução é uma questão de bom senso”?
– É. Não acho que um grande financeiro ou um grande capitalista seja ou possa ser feliz por esse simples facto. Há aí uma irracionalidade inerente à noção do lucro e da extorsão da mais-valia do valor produzido.
– Não é contraditório procurar manter um ‘low-profile’?
– ‘Low-profile’ no sentido em que evito ser cúmplice de situações irrelevantes. Gosto de me divertir, tenho família e amigos como toda a gente. Mas dou-me muito mal com a fatuidade, com as palermices.
– Todavia certa vez afirmou que “todos temos um pouco tendência para sermos parvos”.
– Para sermos parvos e para o irrisório. Mas depois, talvez pela minha formação de origem cristã, sinto a dor física da Humanidade, da doença, da fome, do mal-estar, da solidão. Ser de esquerda é isso. É não suportar a dor da Humanidade.
"O MEU LUXO É FAZER SÓ O QUE GOSTO"
– Considera-se um “cantor maldito”, amaldiçoado pela indústria discográfica?
– Fui muito discriminado, como outros, para castigo das posições revolucionárias assumidas no PREC. Mais ainda pelas televisões do que pelas editoras. E como sou intratável quanto à qualidade dos discos que faço, tudo isso tornou difíceis as relações com as editoras. Por isso a maior parte dos meus discos são autoproduzidos.
– Mas ganhou alguns milhares de contos para autorizar a edição da sua obra completa em CD. O que é que isso representou, além de ter comprado uma casa na serra e um carro novo?
– Um luxo enorme, que é só fazer o que gosto.
– E do que é que gosta?
– Não imagina as coisas que eu não faço e para as quais sou convidado. Gosto de cantar, de fazer espectáculos, de dirigir como produtor e orquestrador o trabalho de outros artistas desde que me identifique, de fazer música para teatro e para cinema
– O que certamente não gosta é de cantar o Hino Nacional
– O próprio facto de ser marxista ajuda-me a perceber como o nacionalismo foi uma regressão para a humanidade. Guerra, desgraça, coisas sem sentido nenhum, factor de alienação das consciências, Fátima, Futebol e Fado.
– O que é que responde a quem o acusa de se ter aburguesado?
- Aburguesado? Aburguesado não. Tenho mais que uma casa, tenho um Audi à porta, tenho um frigorífico cheio de comida, mas a minha consciência não é burguesa e está ao serviço de quem precisa.
– No plano pessoal, que virtudes encontra em si?
– Tem a ver com a radicalidade. É saber o que pensa, sente e o que se pode esperar daquele animal que é o Zé Mário Branco. Não estou aqui a enganar.
– E defeitos?
– A minha mulher diz que é a preguiça para compor.
– Não receia ficar conhecido apenas pelo que cantava há mais de 25 anos?
– Imenso. Perguntam-me muitas vezes: ‘Para quando o próximo disco?’ E eu respondo: ‘Já conhece os anteriores?’
PERFIL
Nasceu no Porto em 1942, filho de professores primários, fez estudos universitários, e em 1963 partiu para o exílio em Paris, onde teve dois filhos. Depois do Maio de 1968 profissionalizou-se, deixou o trabalho no Banco e passou a viver da música. Em 1971 editou ‘Mudam-se os Tempos Mudam-se as Vontades’. Aí percebeu que tinha arranjado uma amante, a música, para a vida toda. Tem 17 discos editados, entre eles, os aclamados ‘FMI’ e ‘Ser Solidário’, de 1982. Actualmente está a meio do curso de Linguística da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O seu itinerário artístico esteve desde sempre ligado à consciência revolucionária portuguesa.
in Correio da Manhã 2008.01.05
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Foto - J Mário Branco -- foto Mariline Alves
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