opiniao
JANUS
por
Maria José Nogueira Pinto
Maria José Nogueira Pinto
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Temos tanta informação mas não sabemos a verdade!" Esta exclamação de García Márquez, no seu último livro, fez-me lembrar a conversa que tive com Maluda sobre o deus Janus.
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Janus é um deus com duas cabeças. Uma representa o interior e outra o exterior. O interior é a segurança, a relação familiar com as pessoas e as coisas, o conhecimento certo dos espaços e das distâncias, o equilíbrio. Mas pode transformar-se num isolamento estéril e autista, por falta de referência, relação e alimento. O exterior é o desconhecido, o imprevisível, por vezes o hostil, mas é a vocação da vida e o caminho da percepção do real e, em muitos casos, de uma profícua vida interior.
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Ao fim e ao cabo, Janus, com a sua bicefalia, expressa a antiquíssima questão das partes e do relacionamento entre o mundo interior e o mundo exterior. Em termos arquitectónicos, a janela (palavra cuja raiz é janus) traduz esta ambivalência com que todos nós nascemos, vivemos e morremos. O vidro não permite apenas a entrada da luz mas a visão simultânea de ambas as realidades.
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A Humanidade teve sempre conflitos, vencedores e vencidos, fracos e fortes, bons e maus, governantes e governados, formas de organização das diferenças e modelos sociais e económicos. Quase nada é novo porque a matriz é sempre a mesma. Excepto o facto de o homem, ao evoluir para formas técnicas de comunicação simultaneamente mais acessíveis e mais complexas, poder ter aberto uma caixa de Pandora.
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Segundo um estudo recente, mais de metade dos portugueses consomem o seu tempo livre em frente da televisão. Significa que a televisão constitui o meio, por excelência, do entretenimento, da informação e da percepção do mundo. Em suma, a principal "janela" de mais de metade dos portugueses. Não é por acaso que hoje se fala no Homo videns como o novo Homem, aquele que vive da absorção das imagens, transformado numa conduta passiva por onde passa, constantemente, um imenso caudal de informação que ele é incapaz de assimilar.
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Um Homo pior? Não necessariamente. Ainda não estão avaliadas as consequências da substituição da leitura, da conversa, da observação directa do que nos rodeia pela imagem. Para mim a diferença é abissal e senti-o recentemente quando vi o filme Atonement,inspirado no romance homónimo de Ian McEwan, e a seguir li o livro. Foi só e mais nada a diferença entre um bom filme e um romance avassalador!
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Na esfera do Público, entendida como o espaço tradicional da Opinião Pública, são já inúmeros os estudos sobre as consequências de um domínio crescente dos meios de comunicação sobre esse espaço.
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Karl Popper, por exemplo, perante a força destes instrumentos mediáticos em sociedades que se assumem como manipuláveis, afirmava que a televisão tinha substituído a voz de Deus. Eu diria que, sobretudo, substituiu a vox populi, ao modelar o nosso espaço comum, moral e cultural, de forma entrópica. Mas, se às televisões é dado o poder de fazerem hoje a agenda ou ordem de trabalhos dos acontecimentos, dos sentimentos e dos valores, é justo procurar outras causas.
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Em Portugal, a classe política foi a primeira a iniciar uma relação assente numa videodependência assustadora. Grande parte dos políticos convenceu--se de que só existe se a sua imagem e a sua palavra forem difundidas pelos media. Depois veio a Justiça, e o seu sistema judicial, a reboque das exigências do tempo mediático. Os casos judiciais começaram a "vender" mediaticamente a partir de processos como o da Casa Pia e viram-se as nefastas consequências. Recentemente, um sector por vocação cauteloso e sigiloso optou por tratar a sua crise interna mediaticamente - falo do BCP - abrindo um precedente terrível.
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Tudo isto reforça a exclamação de García Márquez: temos hoje tanta informação, mais do que alguma vez pensámos ser possível e, contudo, quase nunca sabemos a verdade.
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Porque como diz Rushdie, quando a imagem e a ilusão se tornam as bases da política, percebemos que quase todos são idólatras e já não existem muitos iconoclastas.
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