Discurso de Lula da Silva (excerto)

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quarta-feira, 25 de novembro de 2009

CRP 1976 - A consagração da Revolução - Carlos Brito


A consagração da Revolução
Por Carlos Brito*
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Quando hoje se rememora o período que vai de 2 de Junho de 1975 a 2 de Abril de 1976, durante o qual a Constituinte realizou o seu trabalho, pasma-se como foi possível elaborar e aprovar a Constituição em tempos tão excepcionalmente conturbados. Foi o tempo da agudização dos conflitos no interior do MFA. Foi o tempo da saída dos ministros socialistas do IV Governo, da queda deste governo, da formação do inconsistente V Governo e da sua substituição pelo VI. Foi o tempo dos chamados «casos» República e Rádio Renascença. Foi o tempo das assembleias de Tancos que alteraram a correlação de forras no terreno militar. Foi o tempo do 25 de Novembro que consumou a ruptura do MFA e tomou definitiva essa nova correlação de forças. 
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Foi igualmente o tempo das portentosas manifestações e movimentações de trabalhadores e das massas populares em apoio e em defesa das grandes conquistas e transformações socioeconómicas então em marcha e que traduziam a aspiração generalizada pelo socialismo.
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E foi ainda o tempo da violência reaccionária, com o terrorismo de extrema-direita no Continente e a actividade separatista nos Açores e na Madeira.

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Todos estes acontecimentos, que reflectiam profundas contradições e antagonismo de classe, repercutiam com fragor na Assembleia Constituinte, originavam inflamados debates em que os diferentes projectos político-ideológicos se confrontavam e que, por sua vez, exerciam bastante influência sobre o que se passava no País. Neste quadro, creio que o cumprimento com êxito e num prazo relativamente curto da tarefa de elaborar e aprovar a Constituição com o conteúdo progressista que a caracteriza se ficou a dever a três factores convergentes, de influência variável ao longo do período, mas que sempre a mantiveram: 

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1.º - A força do mandato popular, traduzido tanto nas maciças movimentações sociais em defesa do regime democrático e em apoio de transformações socioeconómicas profundas tendo no horizonte o socialismo, como afirmada, de forma especialmente expressiva, na participação do eleitorado na própria eleição da Assembleia Constituinte. A influência destas movimentações populares persistiu vigorosa para além a alteração da relação de forças no plano militar verificado com o 25 de Novembro.
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2.º - O Acordo Constitucional MFA-Partidos políticos (antes e depois de revisto), sempre presente nos trabalhos de elaboração da Constituição, mesmo por parte daqueles partidos que a certa altura começaram a contestá-lo, e foi um argumento muito forte para aqueles partidos que sempre se lhe mantiveram fieis, como foi o caso do PCP. O Acordo, que fazia parte do compromisso dos militares de entregarem o poder às instituições representativas, apontava para a necessidade de consagrar «os princípios do MFA, as conquistas legitimamente obtidas ao longo do processo, bem como os desenvolvimentos do Programa impostos pela dinâmica revolucionária que, aberta e irreversivelmente, empenham o país na via original para um socialismo português.»
3.º - A vontade dos deputados constituintes que, compenetrando-se, na larga maioria, da importância histórica do seu mandato e das responsabilidades contraídas perante. o povo foram capazes de encontrar com perseverança e imaginação, no meio das divergências mais acirradas, os caminhos do compromisso e de soluções aceitáveis e viabilizáveis de modo significativo, adiantando-se algumas vezes às direcções dos próprios partidos mais ocupadas noutras batalhas. O País deve-lhes, julgo eu, este importantíssimo contributo (a que presto homenagem) sem o qual é duvidoso que a Constituição tivesse sido elaborada e aprovada em termos de conteúdo e no prazo em que o foi, com todas as implicações negativas que resultariam para o regime democrático, se assim não tivesse sido. Esta vontade dos constituintes teve naturalmente alguns destacados dinamizadores de que julgo justo destacar os actuais Profs. Vital Moreira e Jorge Miranda, o Dr. José Luís Nunes, o Eng. Lopes Cardoso e todo o Grupo de Deputados do PCP, entre os quais tenho a imodéstia de me incluir também.

Riscos acautelados

Os três factores que atrás enunciei foram fundamentais para a lucidez que se tornou prevalecente nos trabalhos da Constituinte. Uma das suas primeiras manifestações evidenciou-se na forma como foi resolvida a questão da existência de um período de antes da ordem do dia, logo na elaboração do Regimento. Ao aprovar a existência de um tal período, limitado no conteúdo e no tempo, a Assembleia acautelou o risco da transformação da Constituinte «num Parlamento já», como pretendiam certos líderes da direita, almejando paralisar os trabalhos de elaboração da Constituição à espera de «melhores dias» e sonhando com moções de censura e de confiança e a possibilidade de derrubamento e substituição dos governos, o que contrariava frontalmente a Lei Constitucional vigente e o Pacto MFA-Partidos.
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Fiz pessoalmente parte, como deputado do PCP, dos que defenderam, no respeito por aquele diploma constitucional e pelo compromisso assumido com os militares, que não havia lugar na Constituinte para a existência de um período de antes da ordem do dia e que todos os problemas do País se podiam debater na ordem do dia, nos trabalhos de elaboração da Constituição. É claro que reconheço hoje (depois de tantos anos de vida parlamentar) que essa posição era excessiva, mas contribuiu decisivamente para o bom resultado a que se chegou e para impedir que a Constituinte se transformasse num clube de debates descurando o mandato que lhe estava cometido pelo povo. 

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Falando da posição do PCP em relação à Constituinte, julgo oportuno esclarecer aqui que, desde o VI Congresso, em 1966, a eleição de uma assembleia constituinte como primeiro passo da restauração da democracia no nosso país foi adoptada como um ponto programático de princípio pelo PCP. 

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A lucidez dos deputados constituintes também prevaleceu na metodologia adoptada na organização dos trabalhos da Assembleia. Como na Constituinte não existia nenhum partido com maioria absoluta nenhum projecto partidário foi instituído em base privilegiada de elaboração da Constituição. Nem sequer os projectos foram votados. Foi previamente aprovada uma sistematização do futuro texto constitucional e discutiu-se depois capítulo a capítulo na base de textos preparados nas comissões específicas. Esta metodologia facilitou extraordinariamente a procura de soluções de consenso ou de compromisso, especialmente entre os projectos dos três partidos mais representados - PS, PPD e PCP - e foi seguramente uma das condições do sucesso da Constituinte. 

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É indispensável que se diga que todo este paciente labor esteve em sério risco. Certas forças da direita que no início da Constituinte lhe prodigalizavam todo o apoio, passaram a contestá-la e acusá-la de marxista, à medida que o texto da futura constituição se ia definindo. Foi lançada a campanha para que a Constituição, antes de promulgada, fosse submetida a referendo. Perdida esta jogada foi lançada a campanha para que a futura Assembleia da República tivesse poderes de revisão constitucional logo na sua primeira legislatura. Perdida também esta batalha, uma vez que na Constituinte prevaleceu a maioria PS, PCP, MDP e de alguns deputados do PPD, inicia-se campanha pela demissão do Presidente Costa Gomes, incluindo com insistentes boatos de golpe de Estado, visando a designação de um outro presidente que não promulgasse a Constituição.

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Tudo isto conferiu um carácter singularíssimo e histórico à última sessão da Constituinte, em 2 de Abril de 1976, quando se fez a votação final da Constituição, logo seguida da promulgação. 

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Quem esteve presente dificilmente esquecerá a excepcional vibração que se viveu nesse dia no hemiciclo de S.Bento. A sessão prolongou-se por todo o dia para a leitura do articulado constitucional, a que se seguiram as votações e as declarações de voto. Em dois momentos os constituintes cantaram de pé o hino nacional e a votação dos artigos mais importantes foi saudada com vivas à lI República. Às dez da noite o Presidente da República deslocou-se a S. Bento para promulgar a Constituição na própria sede da Assembleia Constituinte.

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Não se sabe o que teria acontecido, sem este acto corajoso e patriótico do Marechal Costa Gomes (há mesmo quem fale num novo 25 de Novembro, mais radical), o que se sabe é que com ele a tensão política que reinava no País foi pacificada por uma largo período e a Constituição entrou calmamente em vigor no dia 25 de Abril de 1976.

A prova do tempo
Entretanto, logo na sessão de 2 de Abril ficaram bem definidos o campo dos defensores da Constituição e os seus adversários irredutíveis. Uns proclamaram o seu regozijo, os outros anunciaram a seu desgosto.
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Entre os primeiros, o mais exuberante, nessa altura, foi Mário Soares. Disse então que a Constituição «define uma democracia avançada a caminho do socialismo». E, lembrando os resultados das eleições para a Constituinte, acrescentou «e foi essa a grande opção do povo português em 25 de Abril de 1975».

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Por seu lado, o meu camarada Octávio Pato, há dias falecido (e a quem neste momento presto homenagem) manifestava todo o regozijo dos comunistas salientando: «A Constituição hoje concluída atirará para o lixo da história as leis iníquas que durante várias décadas serviram de instrumento de opressão e de obscurantismo.» Lembrava também que houve forças que tentaram «retardar ou até impedir a conclusão e a promulgação da Constituição».

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Finalmente, Luís Catarino, em nome do MDP, afirmava que a Constituição «é uma arma» dos trabalhadores, «uma trincheira de defesa dos seus direitos e das conquistas da sua história». Do outro lado, foi a Sá Machado que coube exprimir «o inconformismo e a frustração» para explicar o voto contra do CDS. Enquanto por parte do PPD, que afinal votou a favor, Barbosa de Meio censurava na Constituição «a linguagem e as cargas ideológicas» e ainda «as proclamações sucessivas de igualdade e de bem estar para todos os portugueses».

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Tempos volvidos, estas observações críticas tornaram-se muito mais acérrimas, a frustração tornou-se em aberta oposição e sistemático combate e alguns defensores da Constituição foram afrouxando no seu entusiasmo e na firmeza inicial para em muitos casos conciliarem com os seus iniciais adversários. E vieram as gavetas... A gaveta onde foi metido o socialismo, a gaveta onde foi metida a reforma agrária, as nacionalizações, as grandes conquistas que faziam a diferença da nossa democracia. Arranjou-se como justificação, entre várias, a de a tornar exactamente igual à dos outros países ocidentais para sermos admitidos no seu clube. Nesta operação perdemos não só alavancas de justiça e de progresso, mas também, estou certo disso, capacidade negocial... Assim, o texto da Constituição aprovado em 1976 já passou por três revisões e sofreu graves mutilações, nomeadamente, na parte que consagrava as grandes transformações socioeconómicas, algumas das chamadas conquistas de Abril, como parte integrante do projecto de uma sociedade mais justa contido na Constituição. O que permanece mostra contudo a obra notável da Constituinte, designadamente, no domínio das liberdades e garantias, dos direitos sociais, incluindo dos direitos dos trabalhadores e das suas estruturas representativas e em matéria de organização e funcionamento do sistema político.

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Apesar das mutilações, a Constituição tem sido capaz de «resistir à prova do tempo», como desejava no acto de promulgação o Prof. Henrique de Barros, Presidente da Assembleia Constituinte, a quem também se deve aqui uma palavra de homenagem. A Constituição da República é, e à distância de qualquer outra, a constituição democrática com um mais dilatado período de vigência no nosso País. Que melhor demonstração se quer dos méritos da Constituinte que esta prova do tempo?!

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Não é da culpa dos constituintes, nem da Constituição, que não tenhamos hoje em Portugal a democracia de que então lançámos os fundamentos.

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Não é da culpa dos constituintes, nem da Constituição, que a injustiça permaneça, que as desigualdades sociais e regionais persistam e que em alguns casos se tenham agravado. Na Constituição cabem, contudo, todos os projectos de transformação. Ela própria é um projecto de justiça. Haja vontade política!


* O camarada Carlos Brito, membro do Comité Central, foi até ao XV Congresso membro da Comissão Política do CC e, eleito deputado constituinte, foi Presidente do Grupo Parlamentar comunista, cargo que ocupou depois durante várias legislaturas, na Assembleia da República. Este artigo foi escrito com base na intervenção do autor no Colóquio realizado no Museu da República e da Resistência, promovido recentemente pelo Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, sobre os 25 anos do 25 de Abril e subordinado ao tema «Vozes da Constituinte»

«Avante!» Nº 1325 - 22.Abril.1999
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