Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Espírito Santo, Cristina também se dedica atualmente a construir abrigos para pesquisadores em ilhas a milhares de quilômetros da costa, sem a presença de água doce, extremamente selvagens, onde a natureza é quem manda. Paralelamente, desenvolve projetos voltados para locais onde o descaso e a ineficiência do poder público imperam, como áreas de risco ambiental em meio a cidades e grandes favelas brasileiras.
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Como começou esse seu interesse por lugares inóspitos?
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Sempre acreditei na arquitetura como um instrumento para melhorar o mundo. E, quando eu era uma jovem estudante, não podia ver um banquinho que já fazia discurso inflamado sobre os problemas do mundo e sempre colocava a arquitetura como tema central. Até que um dia uma pessoa disse: “Essa maluca acha que não há nada mais importante que a arquitetura. Um dia vai tentar colocar arquitetura até na Antártida”. E aí pensei: “E por que não?” Foi quando resolvi fazer um projeto justamente para construir na Antártida. Isso foi em 1983 ou 1984 e, coincidentemente, na mesma época surgiu um concurso de projetos do governo federal para explorar a região, para a área de biologia. Não dizia nada sobre engenharia ou arquitetura. Eu resolvi participar mesmo sabendo que não tinha a ver com o que eles pediam, pois meu trabalho já estava pronto Arquitetura na Antártida: Origem de uma Nova Arquitetura.
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No lugar certo, na hora certa?
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Acabei indo para uma entrevista em Brasília, uma das últimas etapas do processo. Um dia antes um irmão meu tinha sofrido um acidente grave (Cristina já havia perdido outro irmão), e eu estava muito mais preocupada com ele do que com o concurso. No final das contas, estava cuidando dos outros candidatos, tentando acalmá-los, já pensando que eu não era concorrente. Os examinadores, propositalmente, faziam provocações para ver como as pessoas se portavam sob pressão, testar nossos limites, já que iríamos para locais nessa condição. Na minha vez, havia duas pessoas, uma perguntava e outra ficava em pé. Com cara de mau, o interlocutor em certo momento disse: “Eu não vou ficar levando mulherzinha, ainda mais arquiteta, vai querer deixar tudo cor-de-rosa”. Eu levantei brava, bati na mesa e disse: “Pois fique sabendo que a diferença entre o senhor e eu é que tenho de levar absorvente para lá. E não vejo problema em levar uma mochila maior”.
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E não foi eliminada?
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Acabei sendo selecionada, num primeiro instante dentro da universidade, pois não perceberam que eu estava fora das regras. Quando chegou na última instância, meu projeto foi escolhido. Foi aí que fiquei nervosa. Eu estava há algum tempo falando sobre arquitetura na Antártida e finalmente ia para lá. Hoje perdi as contas de quantas vezes estive na região, talvez umas 15. Foi o incentivo para passar a criar, junto com a equipe da Universidade Federal do Espírito Santo, projetos para outras regiões de difícil acesso, como o Atol das Rocas, o Arquipélago de São Pedro e São Paulo e a Ilha de Trindade. Todos estão a cerca de mil quilômetros da costa brasileira, são o Brasil mais distante do continente.
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O que é preciso levar em consideração nesse tipo de construção?
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Tudo o que faço em termos de projeto é voltado para três aspectos: logística, segurança e meio ambiente. É um tripé fundamental, pois em primeiro lugar temos de considerar que, como esses lugares são de difícil acesso, ninguém foi lá para destruí-los, tendo se tornado de alto interesse ambiental. Precisamos deixar a menor pegada possível, intervir o mínimo. Aí entra a questão da logística, principalmente de transporte. A melhor arquitetura é aquela que se leva nas costas e não causa impacto ao meio ambiente. Você não dispõe de maquinário, de guindaste, muitas vezes nem de energia elétrica. A segurança também está associada ao meio ambiente: se eles nunca foram ocupados é porque algo muito forte impediu essa ocupação ‐ pode ser gelo, calor, dificuldade de acesso, falta de água doce, entre outras coisas. Na Antártida, onde pesquisadores chegam a ficar um ano, tenho de garantir armazenamento de alimento e planejar os espaços considerando os imprevistos. No caso do arquipélago, precisa ter água potável suficiente para que, mesmo que o dessalinizador pare, eles não fiquem sem água.
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E como fica o conforto em meio a tudo isso?
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Além de tudo isso, eles têm de ter o menor nível de estresse possível, pois estão lá para trabalhar, longe da família, isolados. É por isso que todas as minhas casas têm de ter cara de casa. Casinha de calendário, sabe? Para que a pessoa tenha a sensação de que vai pra casa. Ao mesmo tempo, ela precisa estar integrada à paisagem, pois não posso pensar em curto prazo, tenho de pensar em no mínimo 50 anos, na paisagem das futuras gerações, nos bichos. Tem animais que não voltam a seu lugar de origem se a paisagem for modificada. E para isso você precisa interpretar o ambiente. Entender o vento, o sol, se vai se proteger dele ou usá-lo como fonte de energia. Quando quero saber como é o comportamento do vento, caso não tenha informações, observo detalhes como o ninho das aves, como elas ficam com o bico, a posição do ninho, pois a maioria delas faz o ninho de forma que tenha o vento contra, para perceber os inimigos chegando.
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Na questão térmica, costumo pensar de forma simples: quando você vai à praia, tira a roupa para o vento refrescá-lo e coloca um boné para tapar o sol. Torno esses abrigos leves e ventilados, e coloco um boné, um telhado grandão, que forme duas varandas. Todos os ambientes têm várias janelas e portas, para que o vento possa circular por dentro, livremente. Se houver lâmpadas e computadores, além das janelas é preciso um sistema de pequenos orifícios que fazem sair o ar quente. A própria pessoa já gera calor, e quando tem um monte de gente isso é perceptível.
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Como você avalia a eficiência desse trabalho?
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Sempre digo para as pessoas que integram minha equipe que é preciso ter consciência de que, quando tudo isso está bem-feito, ninguém percebe. Se algo der errado, logo chega até nós. No primeiro refúgio que fizemos no Atol das Rocas criamos uma mesa, só que em vez de arredondar os cantos deixamos as pontas. Como era tudo muito pequeno, sempre se batia na quina. Ficou todo mundo com perna roxa ‐ nos matamos de fazer cálculos e esquecemos de uma simples mesa... Bastou arrumá-la para tudo ficar uma maravilha. É assim: se der tudo certo ninguém fala nada, mas se der errado todo mundo reclama. Costumo dizer para o pessoal da nossa equipe que o silêncio é nosso melhor elogio.
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Quais outros problemas você já enfrentou por estar à frente disso tudo?
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Não quero ficar fazendo apologia às aventuras, pois tudo é sempre muito planejado. Claro, esses locais oferecem perigos naturais e não é fácil ficar semanas isolado no gelo da Antártida, por exemplo. Mas os problemas que enfrentamos são os básicos. Antes de ter ido para o Atol das Rocas, eu nunca tinha estado num veleiro. Disseram-me que não mareava, mas, como foram vários dias em alto-mar, fiquei tão mal que emagreci vários quilos. Para você ter uma ideia, não me deixaram ver um espelho quando chegamos lá. Eu devia estar realmente horrorosa (risos). Além disso, peguei piolho de ave e sofri com baratas. Confesso que o que mais tenho medo é de barata. Um dia, estava em minha barraca no Atol das Rocas e de repente senti uma cosquinha. Quando acendi a lanterna e vi a barata, fui obrigada a pegá-la com a mão e jogá-la pra fora. Acho que foi o meu ato mais heroico (risos).
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Como é o trabalho em equipe nesses locais? O fato de serem dezenas de pessoas isoladas por longos períodos interfere?
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Quando você junta pessoas que gostam do que fazem, que são voluntárias e estão ali por amor à profissão, tudo fica mais fácil. Muitas vezes nesses encontros é possível ver se formar uma sociedade melhor, principalmente quando você tira a questão do dinheiro, que não existe nesses lugares, e as pessoas não têm de competir. Você se desveste do mundo. Quando se tem um monte de gente de países diferentes, com hábitos diferentes, línguas diferentes, e se tira aquela linhazinha que os divide, é impressionante como surge o princípio da solidariedade, da amizade, da união.
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E o que se aproveita dessas experiências que de ser usado em locais mais próximos, nas cidades?
.Tem um monte de tecnologias que desenvolvemos que pode ser aplicada aqui. Infelizmente temos muitas coisas idealizadas, projetadas, mas poucas construídas, obviamente por falta de interesse do poder público. Desenvolvemos, por exemplo, seis modelos de habitação que não agridem o ambiente. Um deles pensado para ser construído sobre mangues. Tem lugares que hoje são ocupados, áreas de risco ambiental, cujo problema maior, na verdade, não é onde foi feito, mas como, sempre de forma desenfreada. Se houvesse critério, estudos, isso poderia acontecer normalmente. Mas é preciso muita pesquisa, investimento. Se em lugares como a Antártida pode dar certo, por que aqui não poderia? Construir em encostas de morro é a mesma coisa, tem de ter planejamento, mas é possível.
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Nesse sentido, também desenvolvemos um sistema de tratamento de esgoto que utiliza bombardeamento por ultravioleta. Grosso modo, usamos aquelas lâmpadas fluorescentes, só que sem a capinha que nos protege dos raios UV. São prejudiciais a nós, mas auxiliam na eliminação de bactérias presentes no esgoto. Esse modelo nós aplicamos na Estação Emilio Goeldi, mas não conseguimos implantar aqui na cidade.
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Outro exemplo está no atol. O sistema construtivo de madeira que criamos não usa parafusos, ou tantos elementos metálicos, que vão criar problemas de manutenção. Menor número de peças exige menor manutenção. Isso poderia facilmente ser aplicado em outros locais, como parques nacionais e reservas da biosfera, mas, infelizmente, não é aplicado por desinteresse do poder público.
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O que essas experiências mudaram na sua vida?
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Em primeiro lugar, tudo isso me fez pensar que há coisas maiores para fazer, para sonhar. E isso se aplica também a pequenos atos cotidianos. Hoje faço questão de beber em uma caneca, e não em copos descartáveis, pois viver na Antártida me fez entender o quanto custa usar descartáveis. Se você está lá e precisa de um copinho, não vai encontrá-lo no boteco da esquina. Isso faz com que valorizemos o que se tem, nos faz entender o valor de reciclar, e entender o quanto de esforço isso envolve, o quanto é preciso para fazer um copo chegar até seu destino. Depois de passar por vários lugares isolados, selvagens, percebi que o duro é viver aqui. E é isso que me move e me faz continuar a mesma rebelde de sempre, porque essa revolta não pode acabar. Eu ainda acredito que dá para mudar o mundo. E a arquitetura faz parte disso.
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Fonte: Revista do Brasil