21 DE MARÇO DE 2009 - 18h55
Marx, teorias das crises do capitalismo e a posição dos comunistas (3)
por Sérgio Barroso*
Prosseguindo no enfoque mais teórico, vimos nas duas primeiras partes desta série que, segundo Marx, a) mutantes, o capital-dinheiro, o capital-mercadoria e o capita-produtivo formam as “três figuras do ciclo”, isto querendo dizer que são distintas as formas que o capital assume, mantendo-se a unidade do ciclo; b) nas crises do capitalismo - que se expressam regularmente nos fenômenos de superprodução, lei da tendência de queda da taxa de lucros e desproporção entre os departamentos -, a manifestação em uma de suas esferas (como agora, na financeira) é inseparável da dinâmica do ciclo global do capital.
Quer dizer, não há sentido algum apartar a esfera financeira da produtiva (circulação e produção), ou falar-se que “a crise não é só financeira, é econômica”, do ponto de vista do modo de produção capitalista. Dito de outro modo, a existência contínua das três formas referidas decorre de o ciclo do capital global passar por essas três fases.
Mas o mesmo não se pode dizer da “autonomização” que realiza o capital financeiro enquanto formas distintas: a) de capital portador de juros; b) de capital fictício. Por que, como assim?
“Da totalidade do capital destaca-se e se torna autônoma determinada parte, na forma de capital-dinheiro [capital portador de juros], tendo a função capitalista de efetuar com exclusividade essas operações para toda a classe dos capitalistas industriais e comerciais” (Marx, idem, p. 363).
E notadamente porque, hoje - analisa Robert Guttmann -,
“(...) o capitalismo dirigido pelas finanças tem dado prioridade ao capital fictício, cujos novos condutos, com derivativos ou valores mobiliários lastreados em ativos, estão a vários níveis de distância e qualquer atividade econômica real de criação de valor. Nessa esfera, o objetivo principal é negociara ativos de forma lucrativa para obter ganhos de capital, uma atividade bem mais definida como especulação” [2].
Financeirização, crises e tipologias
Com a grande crise capitalista atual [3], não à toa a categoria “financeirização” da riqueza capitalista, assim como sua mediatizada relação com as crises financeiras mais recorrentes vêm assumindo um nível mais elevado de teorização.
Num artigo do economista brasileiro – e pioneiro na utilização do conceito – José Carlos Braga, as ideias centrais que sustentam sua nova formulação - “Crise sistêmica da financeirização e a incerteza das mudanças” [4] -, enfatizam não só ser a crise da natureza do capital e do capitalismo desregulado. Para Braga não há “nenhuma deformação, nenhum desvio da essência do processo de acumulação”, seja pela via da acumulação produtiva, seja pela “articulação daquela com a acumulação financeira e da autonomização dessa última”. Isto porque, em palavras mais diretas,
“A dinâmica da valorização imobiliária e seu fenecimento que está na origem da crise atual expressou a extensão da globalização financeira e a intensificação da financeirização das economias” (idem)
Sob ângulo similar, temática que comparece em entrevista com o destacado economista cubano Oswaldo Martínez. Em sua opinião, uma das principais características da economia capitalista contemporânea diz respeito a
“um nível de financeirização da economia mundial enormemente superior também. (…) Hoje a especulação financeira alcança uma sofisticação imensa, e essa sofisticação é por sua vez um dos pontos débeis, quer dizer, fazem operações especulativas tão sofisticadas, arriscadas, irreais, e tão fraudulentas, que se encontra na base da explosão financeira que tem ocorrido” [5].
O que significa que as formulações de Braga e Martínez convergem, essencialmente, para uma outra conclusão de Guttmann, no ensaio acima referido:
“Mas agora este sistema está em crise. É verdade, o capitalismo dirigido pelas finanças sempre teve uma propensão a crises financeiras em momentos fundamentais de sua expansão territorial ao trazer economias até então dirigidas pelo Estado para a órbita da regulamentação do mercado...” [6].
É fundamental, no entanto, perceber que as características da dinâmica capitalista, previstas na teoria de Marx, apontam a relação entre o desenvolvimento das forças produtivas e do moderno sistema de crédito com as formas assumidas pelas crises. Por exemplo, a crise atual, de excepcionais dimensões e ainda em seu desenrolar de grandes perplexidades, chama a atenção de Guttmann exatamente porque,
“(...) como sempre acontece com crises financeiras importantes, esta também tem características únicas. Particularmente surpreendentes têm sido a velocidade, o alcance e a ferocidade das rupturas... (...) Uma crise de tais dimensões acontece muito raramente...” – prossegue ele ao acrescentar a destruição do sistema bancário dos EUA, de atuação global (Guttmann, idem).
Altvater, Hobsbawm e Marramo: críticas das crises e da “teoria del derrumbe”
A esse respeito, análise da rigidez – e dogmatismo, afirmaria - de uma certa tipologias das crises do capitalismo foi examinado num célebre ensaio do alemão Elmar Altvater [7]. Assim, para ele, as “teorias das crises” existentes não seriam capazes de reproduzir conceitualmente a complexidade dos processos de crise, tampouco servirem para dar conseqüência a “projetos políticos adequados”. A teoria do “desequilíbrio ou desproporção” dos departamentos não captaria a “contraditoriedade social expressa na valorização do capital”; as teorias do “subconsumo” seriam a representação de um modelo do ciclo capitalista “bastante simplificado”, constituindo uma variante da “teoria do colapso ou da impossibilidade” sistêmica de uma nova fase de acumulação; a do colapso de H. Grossmann incapaz “absolutamente, de compreender o capitalismo como sistema social”; a do russo E. Varga, uma teoria subconsumista “aperfeiçoada com elementos extraídos da teoria da superacumulação”, que impossibilitaria – imagina Altvater – igualmente “uma regeneração temporária com o auxílio da crise”.
Concordando com as “teses” de Altvater, acrescento, essencialmente, que, seguindo a interpretação marxiana, Lênin (1897), após implacável rechaço da visão “subconsumista” como produtora de crises capitalistas, sentencia acerca da configuração contraditória da produção capitalista:
“Pelo contrário, se explicamos as crises pela contradição entre o caráter social da produção e o caráter individual da apropriação, reconhecemos com isso a realidade e o caráter progressivo do caminho capitalista (...)”. [8] Isto significa dizer – afirma a seguir Lênin – que a versão subconsumista das crises “vê a raiz do fenômeno fora da produção”; a teoria de Marx “a vê precisamente nas condições da produção” (idem, p. 98).
De outra parte, não é à toa que o historiador marxista Hobsbawm foi buscar na grande contribuição de Lênin a ideia de que é uma farsa a “teoria el derrumbe del capitalismo”, a partir da correlação finalística “crise-catástrofe-colapso”, imputada à sua teoria. Dissertou ele:
“A Era dos Impérios ou, como Lênin a chamou, o imperialismo, não foi, evidentemente, “a etapa final” do capitalismo; mas, à época, Lênin nunca afirmou realmente que fosse. Simplesmente a denominou, na primeira versão de seu influente escrito, “a última etapa” do capitalismo” [9]. Até porque – enfatiza o historiador – todas as tentativas de isolar a explicação do imperialismo do “desenvolvimento específico do capitalismo no fim do século 19” não passam de “exercícios ideológicos” (idem, p. 110).
Sob ângulo similar, o marxista italiano Giacomo Marramo quando do vasto exame do debate marxista, dos anos 1920-30, sobre as “vicissitudes da ‘teoria do colapso’”, destaca o erro grosseiro dos que não distinguiam e faziam “referências indevidas entre o ‘plano lógico’ e o ‘plano histórico’ (exposição científica das leis tendenciais e movimento real), tanto na defesa como na crítica da análise marxiana do capitalismo” [10].
A única “catástrofe”: degradação ou destruição do trabalho
À guisa de conclusão desta parte: na grande e grave crise capitalista que vivenciamos nestes dias, a única “catástrofe” que se apresenta até agora - diferentemente do que o próprio Hobsbawm denominou com absoluto acerto de “Era da Catástrofe”, ao analisar a época que vai da Grande Depressão à Segunda Guerra Mundial, passando pela desgraça da ascensão do nazismo -, é o desemprego em massa que se espraia sobre as massa trabalhadoras, em escala mundial. De resto, uma gigantesca queima de capital (Marx) que, esperemos, jogue na falência e na bancarrota completa quantos burgueses seja possível. Reafirmemos então:
“a força motriz da produção capitalista é a valorização do capital, ou a seja a criação de mais-valia, sem nenhuma consideração para com o trabalhador” [11].
E, de novo estejamos completamente de acordo com o grande Lênin contra os dogmáticos:
“Pelo momento, é necessário assimilar a verdade indiscutível de que um marxista deve tomar conhecimento da vida real, dos fatos exatos da realidade, e não aferrar-se a uma teoria de antigamente, que, como todas as teorias, em seu sumo só esboça o fundamental e o geral, só se aproxima a abarcar a vida em sua complexidade” [12].
Trata-se, portanto, de não recusar a luta de idéias contra “um certo marxismo”, que desinforma quando simplifica grosseiramente a interpretação da crise capitalista atual com sendo “crise de superprodução e do crédito”; ou considerar que “uma crise da ‘financeirização’” é “unilateralismo”, pois a crise não é só financeira, “apesar da relevância dos problemas nesta esfera”; ou, pior ainda, creditar a Marx a ideia de que a crise do capitalismo ocorre quando “a interrupção do processo de circulação do capital ocorre com a paralisação da venda de mercadorias...”.
Isso aí é marxismo fossilizado e incapaz, que, além, nos remete a recordar a sátira de Engels, exposta a dado passo no “Anti-Dühring”, certeiramente, contra o dogmatismo: ignorância não é argumento!
No próximo artigo veremos a discussão da evolução da crise e seus enfrentamentos táticos e estratégicos pelos comunistas.
Notas
[1] Volume 5, p. 510, Civilização Brasileira, s/data.
[2] Antes, argumentara em seu importante ensaio “Uma introdução ao capitalismo dirigido pelas finanças”: “As finanças foram profundamente transformadas por uma combinação de desregulamentação, globalização e informatização. Este impulso triplo transformou um sistema financeiro estritamente controlado, organizado em âmbito nacional e centrado em bancos comerciais (que recebem depósitos e fazem empréstimos), em um sistema auto-regulamentado, de âmbito global e centrado em bancos de investimento (corretagem, negociações e underwriting [lançamento de ações com subscrição pública com intermediário] de valores mobiliários). A preferência por mercados financeiros em vez de finanças indiretas utilizando bancos comerciais foi em grande parte facilitada pelo surgimento de fundos (fundos de pensão, fundos mútuos e, mais recentemente, fundos de hedge e de participações) como compradores chave nesses mercados (in: Revista Novos Estudos, CEBRAP, nov. 2008).
[3] Em nossa opinião sincroniza-se forte movimento para uma Depressão Global, a partir da débâcle financeira dos EUA, da União Européia e do Japão, com agravamento da desaceleração nos países “em desenvolvimento” que ainda mantém perspectivas de crescimento econômico - que ameaça “arrombar a porta” e se espraiar mundo afora. Nos últimos dias, 1) seguidas revisões pioradas do crescimento econômico negativo, cada vez mais profundamente, pelo FMI (agora negativo entre 0,5% e 1%); 2) o anúncio da (inédita) compra de US$ 1,2 trilhão de seus próprios títulos do Tesouro pelo Fed (Banco Central dos EUA), refletindo a reação a uma outra tendência: desvalorização do dólar e retroalimentação da crise nos EUA. Há tensões geopolíticas em agravamento.
[4] Artigo inédito, a ser publicado na “Revista Estudos Avançados da USP”, março de 2009.
[5] Ver: “La crisis no es una anormalidad en el capitalismo”, entrevista de O. Martínez a Luisa María González García, de “CubaDebate”,14-03-2009, em: rebelión.org). O economista refere-se também à existência de processos de “superprodução” e de “sub-produção” (??).
[6] Completa adiante o raciocínio Guttmann: “Em outros termos, estamos diante de uma crise sistêmica, que é sempre um evento de proporções épicas e efeitos duradouros”.
[7] Ver: “A crise de 1929 e o debate marxista sobre a teoria da crise”, de E. Altvater, in: “História do marxismo”, Hobsbawm, E. (org.), v. 8, Paz e Terra, 1987, 2ª edição, especialmente pp. 95-133.
[8] Ver: “Para una caraterización del romanticismo econômico. (Sismondi y nuestros sismondistas nacionales”), de V. I. Lênin, p. 104, in: “Sobre el problema de los mercados”, Escritos económicos, vol 3, Madrid, Siglo Veinteuno editores s.a., 1974.
[9] Ver: “A era dos impérios – 1871-1914”, de E. Hobsbawm, p. 27, Paz e Terra, 2003, 8ª edição.
[10] Ver: ''O político e as transformações. Crítica do capitalismo e ideologias da crise entre os anos vinte e trinta'', de G. Marramao, p. 102, Oficina de livros, 1990.
[11] Em: “Capítulo inédito D’o Capital - resultado do processo de produção imediato”, Marx, p. 20, Porto, Escorpião, 1975.
[12] Em: “Cartas sobre tática”, [Petrogrado, 27 de abril de 1917, 1ª edição], in: Obras completas, Tomo XXIV, Akal Editor, 1977).
*Sérgio Barroso, Médico, doutorando em Economia Social e do Trabalho (Unicamp), membro do Comitê Central do PCdoB.
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inj Vermelho
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