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Transcorre neste 18 de março o 140° aniversário do triunfo da insurreição que deu início em Paris à primeira revolução operária da história mundial. A Comuna de Paris durou 72 dias. Saudando os comunardos, Marx disse que ousaram "tomar o céu de assalto". O Portal Vermelho homenageia o heróico episódio revolucionário com artigo do historiador marxista Caio Navarro deToledo*.
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A primeira revolução operária da história mundial limitou-se apenas a 72 dias de duração (18 de março a 28 de maio de 1871). Na linha de continuidade dos intentos revolucionários de 1830 e 1848 na França, a Comuna de Paris foi, de início, uma revolta popular espontânea contra as medidas sociais antipopulares, a proibição das liberdades políticas e a dura repressão militar impostas pelo Governo de Defesa Nacional, formalmente republicano, instituído em 4 de setembro de 1870, logo após a derrubada do regime imperial de Napoleão III.
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Embora insuficientemente armados, com fome agravada pela falta de alimentos e sofrendo doenças e epidemias, os trabalhadores, juntamente com a Guarda Nacional, não hesitaram em defender Paris e a França contra o exército invasor da Prússia (governo de Bismarck) e combater ao mesmo tempo o governo de “traição nacional”, representado pela política do chefe do executivo (Adolphe Thiers), e da Assembleia Nacional (recentemente eleita e de maioria monarquista). A tomada do governo de Paris (Hôtel de Ville) pelos trabalhadores e soldados da Guarda Nacional – precedida por uma heróica insurreição popular nas ruas (18 de março de 1871) contra as tropas leais a Versalhes – representou o ato inaugural da Comuna de Paris; dez dias depois, ela será oficialmente proclamada (28 de março), com a eleição do Conselho da Comuna.
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Uma experiência política sem precedentes
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A Comuna de Paris de 1871 continuará sendo objeto de reflexões e inspiração não apenas pelo significado de suas realizações como também pelo que representam as generosas expectativas sociais e os ideais políticos que suscitou. A destemida atuação política de homens e mulheres em Paris, no curto período de 72 dias, não teve precedentes na história mundial; no calor da hora, Marx escreveu que os insurretos de Paris, pela ousadia e determinação de suas ações e objetivos, lançaram-se a um autêntico “assalto ao céu”. Ou, como disseram os próprios comunardos: ali “estavam pela humanidade”.
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Em março de 1871, pela primeira vez na história social e política, trabalhadores e setores populares – para escândalo e ódio das classes dominantes e seus ideólogos –, ousaram lançar as bases de uma sociedade mais justa, igualitária e radicalmente democrática. A curta experiência da Comuna buscou concretizar inestimáveis valores, ideais e consignas das lutas dos trabalhadores de todos os tempos: a democracia política substantiva (não formal), a fraternidade, a solidariedade, a igualdade sexual, o internacionalismo.
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Embora breve, o experimento democrático da Comuna de Paris enseja inúmeros ensinamentos. A Comuna ainda tem plena atualidade e é um marco político-ideológico relevante para a reflexão e prática de todos os socialistas.
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A primeira proclamação da Comuna é decisiva para a definição e qualificação de um governo realmente democrático: para os comunardos, os membros da Assembleia Municipal deveriam estar sob permanente vigilância e controle dos eleitores e da população em geral. Neste sentido, os eleitos para a Comuna poderiam ter seus cargos revogáveis e deveriam ser obrigados a prestar contas de seus atos. A afirmação da soberania popular se filiava, pois, à Constituição de 1793, que havia proclamado o “direito à insurreição” como “o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres” dos cidadãos. Por sua vez, a condenação da delegação do poder e da autonomia da burocracia pública seguia na mesma direção. Os funcionários públicos também deveriam ser controlados pelos seus atos e responsabilidades administrativas.
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O Exército permanente foi suprimido e uma Guarda Nacional passava a substituí-lo como um autêntico “povo em armas”, pois, segundo um decreto, “todos os cidadãos válidos faziam parte da Guarda Nacional”; a Guarda Nacional passava também a eleger seus próprios oficiais e suboficiais. Por sua vez, as novas forças policiais, de natureza republicana, deixaram de ter um papel repressivo contra os trabalhadores e a população pobre da cidade.
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Uma constante pressão foi exercida sobre os dirigentes da Comuna: pelos sindicatos, pelas organizações de bairros, por distintos clubes criados, pelas comissões de mulheres, pelas seções da Internacional: em princípio, podia-se falar em um verdadeiro “ministério das massas”. Um episódio concreto ilustra bem o caráter dessa incipiente democracia popular. Os padeiros – que se dirigiram ao Conselho Geral da Comuna a fim de agradecer a abolição do trabalho noturno – foram advertidos pelo jornal O proletário: “O povo não tem de agradecer a seus mandatários por eles terem cumprido suas obrigações legais; os delegados do povo não prestam favores, cumprem deveres”.
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De forma sintética, tratava-se, pois, de uma democracia no sentido forte do termo; uma “democracia direta” na qual a cidadania deveria ser exercida de forma plena, intensa e ativa. Seu limite, contudo, foi sua reduzida extensão geográfica (restrita ao plano de uma cidade) e sua extensão no tempo. Durante 72 dias a cidade de Paris talvez tenha conhecido o mais vigoroso experimento democrático que até hoje existiu na história social e política moderna.
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As conquistas sociais e econômicas
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As inovações da Comuna foram além do plano político; ela se concretizou no plano social e econômico, na medida em que alcançou a propriedade das empresas. Sob a influência dos sindicatos dos trabalhadores e dos comitês da “União das mulheres”, foram criadas oficinas cooperativas e se propunha que as empresas fossem autogeridas. Os trabalhadores associados, por meio de um decreto, passaram a gerir as empresas abandonadas pelos patrões que fugiram de Paris. Instituiu-se o salário mínimo; proibiu-se o trabalho dos menores; a cobrança das dívidas de aluguéis foi protelada; os móveis, utensílios domésticos e instrumentos de trabalho, antes penhorados, foram restituídos aos trabalhadores e pequena burguesia pobre. Esboçava-se, pois, uma viragem da democracia burguesa para a democracia popular e operária.
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Negando o secular e arraigado machismo, as mulheres tiveram um papel decisivo na Comuna: na criação de cooperativas de trabalhadoras e de associações femininas que atuaram na reforma do ensino, no trabalho pedagógico e das creches, nos serviços de saúde, na edição de jornais e panfletos informativos; muitas delas foram além dos limites tradicionalmente impostos ao “sexo frágil” , pois, com armas na mão e atrás das barricadas, defenderam a experiência libertária da Comuna. Neste sentido, pode-se afirmar que este pioneiro movimento feminista compreendeu que a luta pela emancipação das mulheres não podia ser dissociada das reivindicações essenciais defendidas pelas demais categorias oprimidas e classes sociais secularmente exploradas.
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A Comuna também inovou ao romper com os odiosos preconceitos chauvinistas, na medida em que permitiu que muitos estrangeiros desempenhassem relevantes papéis políticos e militares. Outra experiência decisiva ocorreu no campo da educação. O ensino público, gratuito e laico foi instituído; os ideais republicanos passaram a ser praticados no cotidiano da vida das cidadãs e dos cidadãos. As liberdades políticas e civis, finalmente – tornadas uma concreta realidade para o conjunto da população de Paris – mostraram que era possível a emergência de um “governo do povo pelo povo”. Com exceção da historiografia conservadora, poucos intérpretes questionam a afirmação de que, até o presente, poucos Estados modernos conseguiram se aproximar da proposta de democracia popular que estava sendo esboçada na Comuna de Paris de 1871.
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Uma “Declaração de Princípios” de 20 distritos de Paris talvez sintetizasse o ideário da Comuna de Paris: “Não haverá mais opressores e oprimidos, fim da distinção de classes entre os cidadãos, fim das barreiras entre os povos. A família é a primeira forma de associação e todas as famílias se unirão em uma maior, a pátria (...) e esta numa personalidade coletiva superior, a humanidade”.
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Considerações finais
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Durante 72 dias tais ideais e expectativas foram intensamente vividos pela maioria da população de Paris, particularmente pelos trabalhadores. Por sua vez, em todo o continente europeu, os operários e os setores populares tinham seus corações e mentes voltados para a Comuna. Em Paris, parecia emergir uma sociedade radicalmente transformada, na qual os valores e os ideais socialistas poderiam, pela primeira vez na história, se concretizar.
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Certamente, a Comuna não foi uma revolução socialista. No entanto, como ponderou o historiador E. Labrousse, “a Comuna (...) em uma grande medida foi um poder operário. A Comuna não trouxe o socialismo, não lançou esta proclamação solene que a história poderia ter acolhido. Mas, se não trazia o socialismo, o carregava em si mesma. Carregava-o por natureza: pelos homens que a compunham, pelas questões que levantou (...) Não foi mais do que uma fulguração na história”. (In: “Debate sobre a Comuna”, Revista Crítica Marxista, vol. 13, 2001).
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A fim de derrotar a experiência social e política representada pela Comuna de Paris – que revelava a possibilidade histórica da emancipação política e econômica dos trabalhadores na ordem capitalista –, as classes dominantes da França, fortemente apoiadas pelo exército invasor prussiano de Bismarck, empregaram a mais brutal violência física na destruição da experiência comunarda. Os números são eloquentes: quatro mil homens, mulheres e crianças, durante a “semana sangrenta” (23 a 28 de maio), foram mortos nas ruas, atrás das barricadas, e nos abrigos em que se recolheram. Nos dias seguintes mais de 20 mil foram sumariamente executados. Dez mil conseguiram fugir para o exílio; quatro mil foram deportados para a Argélia, então colônia francesa na África. Entre os 38 mil presos julgados, em janeiro de 1875, 1.054 eram mulheres e 615 eram crianças com menos de 16 anos. Apenas 1.090 (do total de 38 mil) foram liberados depois de interrogatórios.
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Durante a repressão sangrenta, nos EUA, um editorial de um jornal novaiorquino, de forma irretocável, sintetizava o ódio e a determinação política das classes dominantes de todo o mundo em relação à Comuna de Paris: impõe-se que Versalhes “transforme Paris num monte de ruínas, que as ruas se transformem em rios de sangue, que toda a sua população pereça; que o governo mantenha sua autoridade e demonstre seu poder, que Versalhes esmague totalmente – seja qual for o custo – qualquer sinal de oposição a fim de dar a Paris e a toda França uma lição que possa ser lembrada e aproveitada pelos séculos que virão”.
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A “lição” que os ideólogos e os sicofantas das classes dominantes desejavam impor aos trabalhadores não seria “aproveitada pelos séculos” que viriam. A “lição” que os proletários e seus aliados, em décadas seguintes, tiraram sobre a Comuna foi outra. Em Outubro de 1917, uma Revolução proletária, em grande medida, mirava no caso exemplar da Comuna de Paris. Lênin, um de seus mais lúcidos dirigentes, assim interpretou a experiência comunarda: "a memória dos combatentes da Comuna é exaltada não só pelos operários franceses como também pelo proletariado de todo o mundo, pois a Comuna não lutou apenas por um objetivo local ou nacional estreito, mas pela emancipação de toda a humanidade trabalhadora, de todos os humilhados e ofendidos”.
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Os generosos ideais e objetivos da Comuna de Paris não se concretizaram. Condições extremamente adversas e equívocos cometidos pelos dirigentes da Comuna podem explicar a derrota. Não é o caso de mencioná-los e de discuti-los neste breve texto. Sem mitificar o evento ou comemorá-lo sob a dimensão de uma confortadora nostalgia, é de reconhecer que a luta "em defesa da humanidade" ainda tem plena atualidade e segue seu curso na história.
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Nas palavras do autor de Os miseráveis, "O cadáver está enterrado, mas a ideia está de pé" (“ Le cadavre est à terre, mais l´idée est debout”). Os valores, os ideais e os objetivos da Comuna continuarão de pé e vivos enquanto prevalecerem em todo o mundo as estruturas iníquas e opressivas da ordem capitalista e imperialista. A fulguração histórica representada pela Comuna de Paris de 1871 será sempre um motivo de reflexão, referência e inspiração para os socialistas e comunistas de todo o mundo.
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* Fundador e membro do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx), Unicamp; fundador da revista Crítica Marxista.
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Embora insuficientemente armados, com fome agravada pela falta de alimentos e sofrendo doenças e epidemias, os trabalhadores, juntamente com a Guarda Nacional, não hesitaram em defender Paris e a França contra o exército invasor da Prússia (governo de Bismarck) e combater ao mesmo tempo o governo de “traição nacional”, representado pela política do chefe do executivo (Adolphe Thiers), e da Assembleia Nacional (recentemente eleita e de maioria monarquista). A tomada do governo de Paris (Hôtel de Ville) pelos trabalhadores e soldados da Guarda Nacional – precedida por uma heróica insurreição popular nas ruas (18 de março de 1871) contra as tropas leais a Versalhes – representou o ato inaugural da Comuna de Paris; dez dias depois, ela será oficialmente proclamada (28 de março), com a eleição do Conselho da Comuna.
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Uma experiência política sem precedentes
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A Comuna de Paris de 1871 continuará sendo objeto de reflexões e inspiração não apenas pelo significado de suas realizações como também pelo que representam as generosas expectativas sociais e os ideais políticos que suscitou. A destemida atuação política de homens e mulheres em Paris, no curto período de 72 dias, não teve precedentes na história mundial; no calor da hora, Marx escreveu que os insurretos de Paris, pela ousadia e determinação de suas ações e objetivos, lançaram-se a um autêntico “assalto ao céu”. Ou, como disseram os próprios comunardos: ali “estavam pela humanidade”.
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Em março de 1871, pela primeira vez na história social e política, trabalhadores e setores populares – para escândalo e ódio das classes dominantes e seus ideólogos –, ousaram lançar as bases de uma sociedade mais justa, igualitária e radicalmente democrática. A curta experiência da Comuna buscou concretizar inestimáveis valores, ideais e consignas das lutas dos trabalhadores de todos os tempos: a democracia política substantiva (não formal), a fraternidade, a solidariedade, a igualdade sexual, o internacionalismo.
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Embora breve, o experimento democrático da Comuna de Paris enseja inúmeros ensinamentos. A Comuna ainda tem plena atualidade e é um marco político-ideológico relevante para a reflexão e prática de todos os socialistas.
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A primeira proclamação da Comuna é decisiva para a definição e qualificação de um governo realmente democrático: para os comunardos, os membros da Assembleia Municipal deveriam estar sob permanente vigilância e controle dos eleitores e da população em geral. Neste sentido, os eleitos para a Comuna poderiam ter seus cargos revogáveis e deveriam ser obrigados a prestar contas de seus atos. A afirmação da soberania popular se filiava, pois, à Constituição de 1793, que havia proclamado o “direito à insurreição” como “o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres” dos cidadãos. Por sua vez, a condenação da delegação do poder e da autonomia da burocracia pública seguia na mesma direção. Os funcionários públicos também deveriam ser controlados pelos seus atos e responsabilidades administrativas.
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O Exército permanente foi suprimido e uma Guarda Nacional passava a substituí-lo como um autêntico “povo em armas”, pois, segundo um decreto, “todos os cidadãos válidos faziam parte da Guarda Nacional”; a Guarda Nacional passava também a eleger seus próprios oficiais e suboficiais. Por sua vez, as novas forças policiais, de natureza republicana, deixaram de ter um papel repressivo contra os trabalhadores e a população pobre da cidade.
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Uma constante pressão foi exercida sobre os dirigentes da Comuna: pelos sindicatos, pelas organizações de bairros, por distintos clubes criados, pelas comissões de mulheres, pelas seções da Internacional: em princípio, podia-se falar em um verdadeiro “ministério das massas”. Um episódio concreto ilustra bem o caráter dessa incipiente democracia popular. Os padeiros – que se dirigiram ao Conselho Geral da Comuna a fim de agradecer a abolição do trabalho noturno – foram advertidos pelo jornal O proletário: “O povo não tem de agradecer a seus mandatários por eles terem cumprido suas obrigações legais; os delegados do povo não prestam favores, cumprem deveres”.
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De forma sintética, tratava-se, pois, de uma democracia no sentido forte do termo; uma “democracia direta” na qual a cidadania deveria ser exercida de forma plena, intensa e ativa. Seu limite, contudo, foi sua reduzida extensão geográfica (restrita ao plano de uma cidade) e sua extensão no tempo. Durante 72 dias a cidade de Paris talvez tenha conhecido o mais vigoroso experimento democrático que até hoje existiu na história social e política moderna.
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As conquistas sociais e econômicas
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As inovações da Comuna foram além do plano político; ela se concretizou no plano social e econômico, na medida em que alcançou a propriedade das empresas. Sob a influência dos sindicatos dos trabalhadores e dos comitês da “União das mulheres”, foram criadas oficinas cooperativas e se propunha que as empresas fossem autogeridas. Os trabalhadores associados, por meio de um decreto, passaram a gerir as empresas abandonadas pelos patrões que fugiram de Paris. Instituiu-se o salário mínimo; proibiu-se o trabalho dos menores; a cobrança das dívidas de aluguéis foi protelada; os móveis, utensílios domésticos e instrumentos de trabalho, antes penhorados, foram restituídos aos trabalhadores e pequena burguesia pobre. Esboçava-se, pois, uma viragem da democracia burguesa para a democracia popular e operária.
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Negando o secular e arraigado machismo, as mulheres tiveram um papel decisivo na Comuna: na criação de cooperativas de trabalhadoras e de associações femininas que atuaram na reforma do ensino, no trabalho pedagógico e das creches, nos serviços de saúde, na edição de jornais e panfletos informativos; muitas delas foram além dos limites tradicionalmente impostos ao “sexo frágil” , pois, com armas na mão e atrás das barricadas, defenderam a experiência libertária da Comuna. Neste sentido, pode-se afirmar que este pioneiro movimento feminista compreendeu que a luta pela emancipação das mulheres não podia ser dissociada das reivindicações essenciais defendidas pelas demais categorias oprimidas e classes sociais secularmente exploradas.
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A Comuna também inovou ao romper com os odiosos preconceitos chauvinistas, na medida em que permitiu que muitos estrangeiros desempenhassem relevantes papéis políticos e militares. Outra experiência decisiva ocorreu no campo da educação. O ensino público, gratuito e laico foi instituído; os ideais republicanos passaram a ser praticados no cotidiano da vida das cidadãs e dos cidadãos. As liberdades políticas e civis, finalmente – tornadas uma concreta realidade para o conjunto da população de Paris – mostraram que era possível a emergência de um “governo do povo pelo povo”. Com exceção da historiografia conservadora, poucos intérpretes questionam a afirmação de que, até o presente, poucos Estados modernos conseguiram se aproximar da proposta de democracia popular que estava sendo esboçada na Comuna de Paris de 1871.
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Uma “Declaração de Princípios” de 20 distritos de Paris talvez sintetizasse o ideário da Comuna de Paris: “Não haverá mais opressores e oprimidos, fim da distinção de classes entre os cidadãos, fim das barreiras entre os povos. A família é a primeira forma de associação e todas as famílias se unirão em uma maior, a pátria (...) e esta numa personalidade coletiva superior, a humanidade”.
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Considerações finais
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Durante 72 dias tais ideais e expectativas foram intensamente vividos pela maioria da população de Paris, particularmente pelos trabalhadores. Por sua vez, em todo o continente europeu, os operários e os setores populares tinham seus corações e mentes voltados para a Comuna. Em Paris, parecia emergir uma sociedade radicalmente transformada, na qual os valores e os ideais socialistas poderiam, pela primeira vez na história, se concretizar.
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Certamente, a Comuna não foi uma revolução socialista. No entanto, como ponderou o historiador E. Labrousse, “a Comuna (...) em uma grande medida foi um poder operário. A Comuna não trouxe o socialismo, não lançou esta proclamação solene que a história poderia ter acolhido. Mas, se não trazia o socialismo, o carregava em si mesma. Carregava-o por natureza: pelos homens que a compunham, pelas questões que levantou (...) Não foi mais do que uma fulguração na história”. (In: “Debate sobre a Comuna”, Revista Crítica Marxista, vol. 13, 2001).
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A fim de derrotar a experiência social e política representada pela Comuna de Paris – que revelava a possibilidade histórica da emancipação política e econômica dos trabalhadores na ordem capitalista –, as classes dominantes da França, fortemente apoiadas pelo exército invasor prussiano de Bismarck, empregaram a mais brutal violência física na destruição da experiência comunarda. Os números são eloquentes: quatro mil homens, mulheres e crianças, durante a “semana sangrenta” (23 a 28 de maio), foram mortos nas ruas, atrás das barricadas, e nos abrigos em que se recolheram. Nos dias seguintes mais de 20 mil foram sumariamente executados. Dez mil conseguiram fugir para o exílio; quatro mil foram deportados para a Argélia, então colônia francesa na África. Entre os 38 mil presos julgados, em janeiro de 1875, 1.054 eram mulheres e 615 eram crianças com menos de 16 anos. Apenas 1.090 (do total de 38 mil) foram liberados depois de interrogatórios.
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Durante a repressão sangrenta, nos EUA, um editorial de um jornal novaiorquino, de forma irretocável, sintetizava o ódio e a determinação política das classes dominantes de todo o mundo em relação à Comuna de Paris: impõe-se que Versalhes “transforme Paris num monte de ruínas, que as ruas se transformem em rios de sangue, que toda a sua população pereça; que o governo mantenha sua autoridade e demonstre seu poder, que Versalhes esmague totalmente – seja qual for o custo – qualquer sinal de oposição a fim de dar a Paris e a toda França uma lição que possa ser lembrada e aproveitada pelos séculos que virão”.
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A “lição” que os ideólogos e os sicofantas das classes dominantes desejavam impor aos trabalhadores não seria “aproveitada pelos séculos” que viriam. A “lição” que os proletários e seus aliados, em décadas seguintes, tiraram sobre a Comuna foi outra. Em Outubro de 1917, uma Revolução proletária, em grande medida, mirava no caso exemplar da Comuna de Paris. Lênin, um de seus mais lúcidos dirigentes, assim interpretou a experiência comunarda: "a memória dos combatentes da Comuna é exaltada não só pelos operários franceses como também pelo proletariado de todo o mundo, pois a Comuna não lutou apenas por um objetivo local ou nacional estreito, mas pela emancipação de toda a humanidade trabalhadora, de todos os humilhados e ofendidos”.
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Os generosos ideais e objetivos da Comuna de Paris não se concretizaram. Condições extremamente adversas e equívocos cometidos pelos dirigentes da Comuna podem explicar a derrota. Não é o caso de mencioná-los e de discuti-los neste breve texto. Sem mitificar o evento ou comemorá-lo sob a dimensão de uma confortadora nostalgia, é de reconhecer que a luta "em defesa da humanidade" ainda tem plena atualidade e segue seu curso na história.
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Nas palavras do autor de Os miseráveis, "O cadáver está enterrado, mas a ideia está de pé" (“ Le cadavre est à terre, mais l´idée est debout”). Os valores, os ideais e os objetivos da Comuna continuarão de pé e vivos enquanto prevalecerem em todo o mundo as estruturas iníquas e opressivas da ordem capitalista e imperialista. A fulguração histórica representada pela Comuna de Paris de 1871 será sempre um motivo de reflexão, referência e inspiração para os socialistas e comunistas de todo o mundo.
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* Fundador e membro do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx), Unicamp; fundador da revista Crítica Marxista.
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