Ana Tostões*
A Lisboa de Keil
Empenhado e comprometido na construção de um discurso globali- zante, Keil registou duas referências éticas e morais determinantes. Por um lado o magistério de mestre Carlos Ramos que o instruíu "na necessidade de ser moderno" e com quem "aprendeu a amar a arquitectura; a procurar servi-la e os fins que ela serve, em vez de se servir dela". E por outro, a postura de Willelm Marinus Dudok com quem aprendeu "a planificar e a construir para o bem estar e felicidade do homem comum". As premissas enunciadas são o bastante para enquadrar a apologética humanista de Keil e entender o combate que travou com os seus escritos e obras.
Nas obras desenvolveu uma aproximação metodológica orgânica sem impor a nova construção no sítio, procurando de um modo natural fazê-las participar da envolvente. Nos escritos bateu-se por "combater a abusiva importância da especulação, do negócio" quando importava sobretudo "olhar muito e muitas vezes para o sítio onde se pretende construir e para as suas imediações". O segredo da desejada continuidade com a paisagem, com o sítio, estava em "apreender-lhe o carácter e respeitá-lo; descobrir-lhe as possibilidades e explorá-las. Preocupar-se mais, e com mais humildade, em fazer uma arquitectura certa, justa, adequada, do que em fazer "arquitectura moderna"ou "arquitectura tradicionalista".
É por isso que a meu ver, no processo de avaliação da cultura arquitectónica portuguesa da primeira metade do século XX é justo destacar o protagonismo de Keil, quando em plena ditadura salazarista a arquitectura portuguesa se divide entre os mentores do regime e o desejo de um funcionalismo de carácter internacional, como a figura que com mais energia e lucidez defende as bases para a construção de uma perspectiva de trabalho diferente, teoricamente racional e formalmente ligada às identidades locais, apelando a uma linguagem simples e equilibrada, inspirada na continuidade e no sentido integrador que parece constituir uma constante da arquitectura portuguesa. As suas obras e intervenções contribuem com importantes elementos de novidade e reflexão ao debate da arquitectura portuguesa. Nesta linha de pesquisa da identidade, entendida com sentido de continuidade, a que não será alheia a lição wrightiana recebida pela via do Grupo de Amstedão com quem contactou em 1937, realiza a partir de 1938 e durante perto de uma década, uma série de importantes equipamentos para os parques verdes do município lisboeta inovadores pela sua simplicidade, enquadramento e valorização do contexto naturai.
O projecto do Parque de Monsanto constitui uma obra incontornável no quadro das grandes intervenções levadas a cabo em Lisboa durante o século XX. Transferindo para a periferia da ciade o grande parque, revela um novo entendimento da questão dos espaços verdes urbanos integrados na escala mais vasta da área metropolitana e da expansão da cidade. Regressado da sua viagem pelos parques da Europa, Francisco Keil do Amaral reflete sobre o critério seguido na concepção do Parque Florestal da cidade. Confrontando as experiências que visitara parecia-lha certa, em 1939 a opção de criar "um bosque natural e selvagem com centros de interesse para todas as classes da capital na Serra de Monsanto." Durante a década seguinte desenvolve o plano geral e os projectos dos equipamentos. A arborização é dirigida e executada pelo eng. sivicultor Joaquim Rodrigo que durante mais de três décadas velará pelas plantações. A concepção do plano foi sectorial e decorreu em simultâneo com as expropriações, a arborização, a abertura de estradas, os sucessivos traçados da auto-estrada e mesmo com a construção de equipamentos. Plano dinâmico, anulando a distância entre projecto e obra, realizava em simultâneo plano e gestão desse mesmo plano. Sem grandes definições, os instrumentos de trabalho reduziamse a desenhos de obra esquematizando plantações, definindo movimentos de terra e esboçando o traçado de caminhos. A configuração acidentada da serra aliada aos fabulosos pontos de vista que proporcionava, ofereciam condições excepcionais para este programa. Mantem-se a topografia geral, traçam-se novas estradas sobre os caminhos existentes, aproveitam-se os antigos fortes ou os moinhos que povoavam a serra e exploram-se inteligentemente as fabulosas vistas sobre a cidade, rio e arredores construindo equipamentos inovadores, criando miradouros e zonas de estar ao ar livre.Quanto ao trânsito, evitava-se que os automóveis entrassem no bosque de modo a permitir tranquilidade, dando especial relevo aos caminhos de peões e de cavaleiros, propondo circuitos que passassem pelo meio das árvores mais belas, por acidentes interessantes, por diversos pontos de vista panorâmicos. A grande preocupação de Keil concentrava-se na garantia de transportes públicos eficazes tendo chegado a propor a criação de uma linha de eléctricos até ao Parque. Foram expropriados, florestados e transformados com equipamentos -"os centros de interesse"- perto de 1000 ha de serra árida. A proposta nunca foi plenamente entendida na sua dimen- são inovadora, embora o regime florestal que lhe foi aplicado a mantenha protegida, permanecendo como um precioso pulmão verde situado, agora, no centro da Área Metropolitana de Lisboa.
O arranjo do Parque Eduardo VII constiuíu outra das importantes obras de Keil no quadro da estruturação urbana da cidade. Em 1945, quando se tornava inadiável uma solução para "o problema do Parque", o presidente propõe o arranjo defintivo adequado às "circunstâncias do momento" encarregando Keil deste trabalho com base na" necessidade de (...) promover estudos que procurassem resolver de vez o problema sem prejuízo de modificações que a evolução natural da vida da cidade venham a impôr no futuro". Assim se expunha a ambiguidade programática entre o prolongamento da Avenida e um Parque Central amplo e protegido. Com sentido da realidade Keil, mantém as pré-existências morfológicas e desenvolve uma solução de conciliação, prolongando visualmente a Avenida e rematando-a no alto da cumeada com um imponente edifício de carácter cívico. Este espaço no topo da Alameda assumido como acrópole da cidade, sob a qual se estende um tapete verde que leva a vista até ao Tejo, recupera a ideia de miradouro monumental e de passeio pú- blico magestoso e repousante. Parque de vocação urbana e monumental com 30 hectares, Keil pensou-o como Parque Central de Lisboa apoiado e dinamizado pelo mais digno equipamento: o Palácio da Cidade, implantado na acrópole, justificação retórica de um sentido de grandeza civilizada.
Sobre o eixo aberto da avenida, desenha a Alameda Central relvada, ladeada por passeio em calçada à portuguesa, dividindo o parque em dois sectores de verde mais arborizado e denso. No lado ocidental redesenha o lago, reordena a Estufa Fria e projecta a entrada junto à margem. No sector oriental desenvolve uma sequência de estadias. O conjunto deveria ser rematado pelo Palácio da Cidade implantado no espaço de acrópole miradouro marcado pelas colunas monumentais. Pensado como sede de todos os serviços culturais da Câmara, com salas de exposições e auditórios, o Palácio da Cidade foi pretexto para a eterna luta dos espíritos mais tacanhos, retrógrados e reaccionários da cultura portuguesa.
A discussão sobre a arquitectura do Palácio da Cidade radicalizou o confronto entre os mentores do regime e os defensores de uma arquitectura despojada no seu rigor clássico que apontava para uma nova monumentalidade. Inspirados nos traçados urbanos de Washington que visitara, Keil elaborou diversos estudos com a preocupação de renovar o sentido de monumentalidade. Na verdade, o topo norte do Parque Eduardo VII transformou-se num local mítico entre o frustrado Palácio da Cidade, a colunata triunfal e a estátua que não passou do pedestal.
Sensivelmente pela mesma época, 1945 Keil é encarregue de repensar o Jardim do Campo Grande e os seus equipamentos. Fazendo reviver os centros de interesse que desde há muito constituiam as atracções do parque, limitou-se a reagrupar o arvoredo e a simplificar o traçado dos arruamentos e canteiros com o objectivo de alargar as perspectivas e de criar um maior isolamento do jardim em relação à envolvente. Com apenas 200 metros de largura, o Campo Grande era contornado por faixas de rodagem, que já não serviam corridas de cavalos, mas trânsito automóvel, do qual parecia importante proteger a estadia no jardim. A área é ampliada em 1000 m2, de modo a estabelecer um plano regular e racional. Concluída em 1948 a obra do Campo Grande ensaiou na capital os primeiros relvados de carácter informal. A par da recuperação das funções existentes, propôs novas utilizações. Mantendo o espírito pitoresco e romântico do Campo, uma nova ilhota foi construída com acesso por uma moderna ponte, de modo a servir uma esplanada com bar. Na margem norte o restaurante Alvalade com grandes janelas envidraçadas vira-se para o lago e para o rinque de patinagem. Foram também construídos dois "courts" de ténis com os respectivos apoios. Na zona sul previu-se a instalação de uma biblioteca popular junto a um pequeno lago. Esta área só será tratada definitivamente no início dos anos 60, implantando-se a Piscina Infantil . Neste espaço vai ser possível realizar o desejado conceito da época: a integração das três artes. Introduzindo peças de escultura, cerâmica, azulejo "integradas" no quadro de um projecto global.
Além dos projectos desenvolvidos para os espaços verdes da cidade, KA concebeu ainda no quadro de funcionário municipal outros equipamentos de carácter público como o Aeroporto de Lisboa ou a Estação de Caminho de Ferro de Belém. Trabalhos desenvolvidos no final dos anos 30 reflectem posições modernistas no quadro de uma forte influência da arquitectura holandesa marcando profundamente o ambiente urbano e o seu uso. Ao longo dos anos 50 recebe encomendas de importantes equi- pamentos de carácter público como o Metropolitano de Lisboa ou a Feira das Indústrias Portuguesas. Acertando com os códigos de produção arquitectónica dos anos 50 no que representam de adopção do espírito dos princípios do Movimento Moderno, estas obras revelam a abertura a um estilo internacional, a que não são alheias as influências da moderna arquitectura brasileira. Contudo, são também testemunho da lucidez e do rigor que sempre nortearam a sua prática profissional, patentes no bom senso e no espírito de economia com que as referências internacionais são articuladas no quadro dos materiais, das tecnologias então disponíveis e do sentido urbano de Lisboa.
Foi igualmente o arquitecto do moderníssimo e inovador equipamento urbano da Lisboa de finais de 50: o Metropolitano de Lisboa. Estudou o arranjo arquitectónico das diversas estações, circulações internas e acessos, incluindo as entradas que evoluiram da idealização de uma peça de evidente presença no espaço urbano, para a solução final mais minimal que consistiu na utilização de um marco muito discreto vertical contendo no topo o símbolo M do metropolitano contido num túnel estilizado. A leitura das estações é muito clara, no lettering adoptado, de letras brancas abertas sobre estreitos painéis vermelho sangue-de-boi, coordenados com um ripado antracite. Para além do desenho de mobiliário, bancos, cestos de papéis, cancelas e postos de supervisão, desenvolvidos com desenho e materiais de grande simplicidade propôs para o revestimento das estações e corredores o mosaico de pastilha de vidro, superfície lavável que permitia uma interessante textura sob os efeitos da luz e, sobretudo, possibilitava de um modo económico a distinção dos vários espaços atravès dos pigmentos coloridos diversamente utilizados. Retomando a tradição lisboeta do revestimento a azulejo, para cada estação a pintora Maria Keil estudou o desenho e a pintura painéis de azulejos, baseados em formas geométricas que as diferenciavam qualificadamente. Atitude pioneira na dignificação da Arte Pública, oferecia ao cidadão comum na rotina do seu dia-a-dia fragmentos de uma cultura que tendia cada vez mais a sair do Museu e a integrar a vida quotidiana. No seu conjunto tratou-se de um trabalho profundamente inovador no desenho e no ambiente da cidade.
A arquitectura doméstica foi igualmente tema caro a Keil que o tratou com o rigor, a economia de meios e o sentido de conforto que o caracterizavam. Os dois bairros que projecta no quadro da produção camarária são exemplos qualificados de uma nova abordagem dos bairros sociais de produção oficial. A dimensão dos lotes, a implantação geminada das habitações em Stª Cruz de Benfica e sua relação com o jardim, ou o desenho em banda da Cooperativa de Chauffeurs e a articulção das ruas, apontam já para um espírito de desenho urbano que se afasta da escala pitoresca que dominava as intervenções correntes nestes bairros marcadas por um espírito situado à margem da urbanidade. Na produção da vivenda unifamiliar desenvolveu importantes projectos, quase laboratoriais, destacando-se as duas casas que desenhou para Lisboa. Paradigmáticas da qualidade e do empenho que depositava no projecto e na obra, foram reconhecidas publicamente com a atribuição do Prémio Municipal e do Prémio Valmor.
Figura ética e moral de referência, para Keil a arquitectura ultrapassava a mera dimensão profissional. Polemista, investigador, pedagogo, participante activo na actividade sindical e política, frontal opositor ao regime ligado a personalidades prestigiadas da cultura nacional, os seus escritos e livros de reflexão sobre a arquitectura e a cidade, contribuem para o enquadramento de uma actividade generosa e intensa como profissional e cidadão.
.
in Ana Tostões-Monsanto, Parque Eduardo VII, Campo Grande, Keil do Amaral arquitecto dos Espaços verdes de Lisboa, Lisboa, salamandra, 1992.
in Ana Tostões-Monsanto, Parque Eduardo VII, Campo Grande, Keil do Amaral arquitecto dos Espaços verdes de Lisboa, Lisboa, salamandra, 1992.
*Historiadora da arquitectura, ICIS-IST
.
Boletim Lisboa Urbanismo - Ano 1999
"Novamente, à atenção dos lisboetas
Parece que a CML, sob a batuta bifurcada dos vereadores M.Salgado e Sá Fernandes, quer deitar abaixo não só o outrora magnífico edifício do Restaurante Panorâmico de Monsanto (como se sabe, obra contemporânea ao projecto de Keil do Amaral, decorado por Querubim Lapa, entre muitos outros, e respeitável enquanto local privilegiado de restauração e miradouro, até que o explorador foi à falência, e depois não houve vontade da CML em reabilitar aquilo enquanto tal - chegando mesmo, com PSL, a destruir, esventrar e ampliar partes significativas do edifício para lá instalar os serviços da CML/Alcântara, deixando tudo de pantanas...) como abater uma área envolvente de 6-7ha de pinheiro manso. Motivo?
Instalar ali 3 corporações de bombeiros, a despejar de outros tantos quartéis: Av. D. Carlos I, Praça da Alegria e Largo Barão Quintela. Parece parvoíce, mas não é...
Instalar ali 3 corporações de bombeiros, a despejar de outros tantos quartéis: Av. D. Carlos I, Praça da Alegria e Largo Barão Quintela. Parece parvoíce, mas não é...
.
November 15th, 2008, 03:48 AM | #989 |
Prémio Valmor e Municipal de Arquitectura
|
Sem comentários:
Enviar um comentário