Discurso de Lula da Silva (excerto)

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domingo, 13 de dezembro de 2009

Gente como nós que veste lantejoulas e corre mundo


00h30m - Jornal de Notícias 2009.12.13

DORA MOTA

Artistas de circo vivem duas horas de glamour e todas as outras de uma normalidade que nã.o se apreende quando vemos os brilhos que libertam na pista
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Não, as pessoas do circo não comem todas juntas. Sim, têm televisor. Não, não trabalham no circo por falta de melhor opção. Sim, são felizes. Com a dose de felicidade que toda a gente alcança no seu dia-a-dia, como a do avô Rui (que por acaso é dono de um circo em vez de ser carpinteiro) ao ver a neta Celina (que por acaso tem um pai domador de tigres em vez de ter um pai engenheiro) palrar sobre a expectativa de ter um fato de palhaço como outra menina falaria da alegria de possuir um vestido de princesa. Afinal, somos aquilo que nos rodeia, os humanos são compostos de perspectiva. E de perspectiva bem sabem as pessoas do circo: toda a sua vida nela se baseia.
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A começar pelas casas onde vivem, rulotes ou autocaravanas onde nada falta, há electrodomésticos encastrados, arrumos em cada ângulo e o demais como toda a gente: reposteiros nas janelas, móveis de sala polivalentes onde encaixam os televisores e a box da televisão por cabo, um computador portátil esquecido no canto do sofá, pantufas à porta, as gamelas da comida do cão, bibelôs, fotografias dos filhos nas paredes, chaleiras sobre o fogão.
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No final de cada temporada, as alas abríveis fecham-se ao comando de um botão e o sofá encosta ao móvel, a cama à parede, o tapete é enrolado. Tal como a tenda, a vida desmonta-se e segue para outra cidade, onde as pessoas do circo, fora das duas horas onde são mágicos e voadores, se informam onde é o supermercado mais próximo para comprar leite e manteiga, o cinema, o restaurante e os sítios para sair à noite. Foi o que nos perguntou, por exemplo, Danik Abishev, australiano filho de russos, 24 anos inteirinhos no circo, pela primeira vez em Portugal como equilibrista do Circo Mundial.
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Está a viver um romance com a comida portuguesa - "é mesmo boa, satisfaz mesmo. Nos outros sítios, estou sempre a ir ao MacDonalds" - e já teve um encontro imediato com o pânico (dos outros) quando, para provar ao primo de um colega que era um verdadeiro equilibrista, se ergueu por um braço numa grade do Gaiashopping. Não foram os seguranças do shopping quem o convenceram de que "as pessoas, aqui, parecem mesmo interessadas no circo"...
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Lá está, a perspectiva. Núria, equilibrista no espectáculo de Natal do Circo Soledad Cardinali, vem de uma família portuguesa de circo e já desistiu de desmontar mitos. "Em Portugal, quando dizemos que somos artistas de circo, somos vistos como os coitadinhos que não ganham muito dinheiro. Em França e na Alemanha, quando dizemos que somos artistas de circo, as pessoas sentam-se ao nosso lado 'conta lá!'.. Aqui, é sempre 'a vida é dura, não é? Vocês comem todos juntos, não comem?' Fazem perguntas absurdas. Eu já vivi numa casa e tinha tudo o que tenho agora".
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É. Núria já passou para o outro lado do espelho. Um banho de hiper-realidade durante dez anos: trabalhou em restaurantes, hipermercados. Por isso, de perspectiva percebe ela. "Era bastante infeliz", resume. Pelas razões que todas as mães que trabalham são sempre um bocadinho infelizes. "O contacto com o meu filho era quase acordar, vesti-lo, levá-lo para o infantário e quando voltava já vinha a dormir outra vez. Só via os meus pais uma vez por ano porque continuavam no circo. Trabalhava num sítio onde me sentia completamente presa".
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Agora, o seu pequeno de quatro anos está com ela a todas as horas do dia, com os avós quase todas as semanas. Já tenta fazer malabarismos, a mãe gostava que ele fosse artista de circo para ficarem sempre juntos. Aida Cardinali, palhaça que já fez o mesmo que Núria (equilibrismo com espadas) e ainda números com cavalos, também experimentou a vida "normal". Abriu um bar em Lisboa com uma amiga. Aguentou três meses fora do circo, não conseguiu "estar fechada entre quatro paredes só com uma janelazinha para a rua". Também foi professora. Voltou sempre à estrada.
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"Viajar é provavelmente a melhor parte", sublinha a trapezista Amanda, uma das artistas do Circo Mundial. Representa a quinta geração de artistas de circo da sua família inglesa e descreve sem o mínimo interesse em nos impressionar que a avó bailava no dorso de cavalos e o avô levantava várias pessoas nos braços. "Não é tudo glamoroso", adverte. Ela e o namorado português, Igor, domador de cabras, levantam-se todos os dias bem cedo para tratar dos cavalos, das cabras, alimentá-los, lavá-los, treinar o corpo, costurar os fatos do espectáculo. Encontra tanto encanto nisto como uma dona de casa feliz no seu lar de chão esfregado: "É uma vida engraçada, não ficamos sentados na caravana... estamos sempre ocupados. E isto não é como um escritório que se deixa para se voltar no dia seguinte".
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É precisamente por isso que Christian, italo-alemão de 26 anos (ninguém pertence totalmente a uma só pátria no circo...), domador dos mesmos elefantes que já pertenceram ao seu avô, diz que não precisa de férias. "Vocês vão de férias para viajar, nós viajamos todo o ano".
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foto joana bourgard/jn
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Gente como nós que veste lantejoulas e corre mundo
Rui Mariani enternecido com a neta Celina
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