| | Soeiro Pereira Gomes nasceu há cem anos Militante da luta e da escrita
| Assinalou-se anteontem o centenário do nascimento de Soeiro Pereira Gomes, militante e dirigente comunista e talentoso escritor, pioneiro do neo-realismo em Portugal, duas facetas inseparáveis da sua personalidade. A sua vida e a sua obra foram demasiado curtas, interrompidas pela morte prematura, aos 40 anos, provocada pela doença e pela falta de assistência médica, devido à sua condição de funcionário clandestino do Partido. O seu percurso de vida e a obra que deixou escrita testemunham um firme compromisso com os explorados e oprimidos e com a sua luta e ajudam-nos, ainda hoje, a enfrentar a dureza dos combates que diariamente travamos pela democracia e pelo socialismo.
Cem anos do nascimento de personalidades de reconhecido talento ou importância dão, normalmente, o mote para homenagens e evocações. O que está já a acontecer com o escritor Soeiro Pereira Gomes, cujo centenário se assinalou anteontem, dia 14 de Abril.
E são bem merecidas estas homenagens e evocações àquele que é considerado o pioneiro do neo-realismo em Portugal, com a publicação, em 1941, do seu primeiro e mais famoso romance Esteiros, e um dos mais talentosos e significativos autores desta corrente.
Mas lembrar Soeiro Pereira Gomes, escritor, não diz tudo. Talvez nem diga o essencial. Não diz, por exemplo, que Soeiro Pereira Gomes era militante comunista e que a sensibilidade que o levou a repudiar as injustiças e a envolver-se de corpo e alma na luta antifascista foi a mesma que revelava nos seus artigos, contos e romances. Nem diz que foi do seu envolvimento na luta clandestina que nasceram os Contos Vermelhos e do seu trabalho na fábrica a Engrenagem.
Tão pouco refere que a doença que o vitimou com apenas 40 anos poderia, quem sabe, ter sido debelada caso tivesse sido devidamente acompanhado por um especialista – mas ser visto por um médico era tarefa difícil, porque o fascismo o perseguia ferozmente por ser funcionário clandestino do Partido Comunista Português.
Soeiro Pereira Gomes foi um escritor comunista. Mas foi mais do que isso. Foi, sobretudo, um dedicado militante e dirigente comunista que se tornou num notável escritor.
Os primeiros anos
A história de Joaquim Soeiro Pereira Gomes inicia-se 14 de Abril de 1909 na aldeia de Gestaçô, no concelho nortenho de Baião. Filho de uma família de pequenos agricultores, faz a instrução primária em Espinho, tal como os seus irmãos, rumando depois a Coimbra, para frequentar a Escola Agrícola.
Aos 21 anos, termina o curso e, já formado como regente agrícola, aceita uma proposta da Companhia da Catumbela e vai trabalhar para Angola. Por lá fica um ano, regressando a Portugal mais cedo do que o esperado devido ao clima rigoroso e às duras condições de trabalho.
Em 1931, já casado, Soeiro Pereira Gomes entra para os escritórios da fábrica Cimento Tejo, em Alhandra, onde fixa residência. Estava então longe de suspeitar como esta decisão mudaria por completo a sua vida… Com apenas 22 anos, tinha já um apreciável percurso de vida – a infância passada no Douro, a adolescência em Coimbra, o primeiro emprego em Angola. Em Alhandra, onde convive diariamente com a exploração e com as injustiças, por um lado, e com a forte contestação operária, por outro, solidifica a sua consciência social e política e cimenta as suas convicções.
Estava-se na década de 30 do século passado e o fascismo parecia ser imparável, em Portugal e por toda a Europa. Em Itália, o poder de Mussolini parecia não parar de aumentar e, em 1933, Hitler assume o cargo de chanceler da Alemanha. Em Espanha, os fascistas punham em perigo a jovem República. Por cá, era criado o partido único fascista, a União Nacional, a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), a Legião e a Mocidade portuguesas. Os sindicatos eram encerrados e «substituídos» por Sindicatos Nacionais e, em 1936, abria o Campo de Concentração do Tarrafal.
Os trabalhadores tentam organizar-se e reagir à escalada fascista. Um pouco por todo o País, estalam greves e manifestações. Em Janeiro de 1934, na Marinha Grande, os operários, com o PCP à frente, chegam a tomar o poder na vila, mas apenas por algumas horas. Dois anos e meio depois, os marinheiros do Dão, Bartolomeu Dias e Afonso de Albuquerque revoltam-se. Num e noutro caso, a repressão foi violenta.
A decisão de uma vida e Esteiros
Observador atento da vida na fábrica, onde os operários trabalhavam sob nuvens poluentes do pó do cimento a troco de quase nada, e na vila de Alhandra, Soeiro Pereira Gomes torna-se militante comunista na segunda metade dos anos 30, ingressando de imediato na célula do Partido na fábrica Cimento Tejo. Pouco depois, integra o Comité Local de Alhandra.
No início dos anos 40, empenha-se a fundo na reorganização do Partido e passa a fazer parte do Comité Regional do Ribatejo. Com ele nesse organismo estão António Dias Lourenço e Carlos Pato, irmão mais velho de outro histórico dirigente comunista, Octávio Pato.
Em articulação com a luta clandestina do Partido, Soeiro Pereira Gomes desenvolve uma intensa acção legal, participando abnegadamente na actividade cultural impulsionada pelo PCP em todo o Baixo Ribatejo. Ao mesmo tempo, colabora com vários jornais e revistas, designadamente com O Diabo.
Em Novembro de 1941, publica o seu primeiro romance, Esteiros, uma das mais belas obras da literatura portuguesa, pioneiro no movimento neo-realista. A capa e as ilustrações são de Álvaro Cunhal, que conhecera na actividade partidária clandestina.
Por esta altura, na sua casa de Alhandra, juntam-se com frequência vários intelectuais antifascistas: Alexandre Cabral, Sidónio Muralha e Alves Redol. Mas a sua actividade não se ficava pelos círculos restritos e Soeiro Pereira Gomes empenhou-se na criação de bibliotecas populares nas sociedades recreativas da região, na organização de cursos de ginástica para os operários da Cimento Tejo e na construção de uma piscina para o povo de Alhandra – a Charca, onde se formou, mais tarde, o grande nadador português Baptista Pereira, o «Gineto» de Esteiros.
Paralelamente, organizava, juntamente com Alves Redol e António Dias Lourenço, os passeios de fragata no Tejo, que mais não eram do que formas de encontro de intelectuais progressistas e de contactos políticos fora do alcance dos olhares e dos ouvidos dos bufos do fascismo…
As greves de Maio de 1944 e a clandestinidade
A sua dedicação e empenho nas actividades partidárias levam a que lhe sejam confiadas crescentes responsabilidades. Nas grandes greves de 8 e 9 de Maio de 1944, que envolveram milhares de operários e camponeses da região de Lisboa e Baixo Ribatejo, Soeiro Pereira Gomes assume um destacado papal, integrando o Comité Regional da Greve no Baixo Ribatejo.
No Avante! da primeira quinzena de Maio, informa-se que «Dezenas de milhares de operários e camponeses lutam pelo pão». Em dezenas de localidades os operários entram em greve e os camponeses páram o trabalho. Em Vila Franca e Sacavém realizam-se poderosas manifestações com milhares de trabalhadores. O Avante! realça que «os dias 8 e 9 de Maio ficarão gravados na memória dos trabalhadores dos arredores de Lisboa como a data da unidade de combate de operários e camponeses. Esta unidade ganha em 8 e 9 de Maio, ficará como um grande exemplo para lutas futuras contra o fascismo».
A PIDE, que tivera conhecimento prévio do movimento grevista, apercebe-se do papel desempenhado pelo autor de Esteiros e monta-lhe o cerco com o intuito de o capturar. Dois dias depois da greve, na tarde do dia 11 de Maio, mergulha na clandestinidade e torna-se revolucionário profissional como funcionário clandestino do Partido.
Nesta sua nova vida, é-lhe confiada a responsabilidade da Direcção Regional do Alto Ribatejo. O trabalho que desenvolve é notável e o Partido cresce, em número de organizações e em aumento de actividade e influência. Entre 1945 e 1946, cria ou acompanha os comités locais de Santarém, Vale Figueira, Alpiarça, Rio Maior, São João da Ribeira, além de núcleos mais pequenos.
Dirigente comunista e a morte prematura
Em Julho de 1946, Soeiro Pereira Gomes está entre os participantes no IV Congresso do Partido, realizado na Lousã. E apercebe-se da enorme expansão do Partido, para a qual também muito contribuiu: em menos de três anos, desde o III Congresso, o número de militantes aumentou seis vezes e o número de organizações locais cinco. Em muitas empresas foram criadas células partidárias e a tiragem do Avante! quadruplicou.
O IV Congresso aponta o levantamento da nação portuguesa contra a ditadura fascista como a via para o derrubamento do fascismo. É reafirmada a política de unidade nacional antifascista e definidos os princípios orgânicos do centralismo democrático. Soeiro Pereira Gomes é eleito para o Comité Central.
Nesse mesmo ano, escreve Praça de Jorna e é destacado para Lisboa. Aí torna-se membro da Comissão Executiva do Movimento de Unidade Nacional Antifascista (MUNAF), clandestino, ao mesmo tempo que acompanha a actividade dos comunistas no legal Movimento de Unidade Democrática (MUD).
Enquanto elemento de ligação entre a direcção do Partido e o MUNAF, participa nas primeiras acções da campanha eleitoral do General Norton de Matos. A doença que entretanto o afligira agrava-se mas Soeiro Pereira Gomes desempenha as tarefas partidárias até ao limite das suas forças.
Gravemente doente, implacavelmente perseguido pela PIDE e impedido de se tratar, acaba por falecer a 5 de Dezembro de 1949. Tinha 40 anos e uma promissora vida de dirigente partidário e escritor à sua frente.
A caminho de Espinho, onde seria sepultado por vontade da família, o carro funerário é desviado para Alhandra por pressão popular. Milhares de pessoas enchem as ruas despedindo-se de Soeiro Pereira Gomes e acusando o fascismo pela sua morte. A mensagem lida na ocasião, fala por todos: «Do povo de Alhandra, ao nosso querido e inesquecível amigo Joaquim Soeiro Pereira Gomes, lhe rendemos neste momento, em nome de todo o povo honrado e trabalhador de Alhandra, a última e derradeira homenagem, aquele que soube, perto ou longe de nós, contribuir para a liberdade do povo de Portugal. Nós te juramos, querido e saudoso camarada, que sejam quais forem os obstáculos que os responsáveis pela tua morte nos levantem, levantaremos sempre bem alto, mesmo enfrentando a morte, a bandeira da democracia, pela qual sempre honradamente soubeste lutar e morrer. Nós te juramos, saudoso amigo, pelo amor dos nossos filhos.»
O Avante! noticiou o que outros tentaram calar
A morte de Soeiro Pereira Gomes foi divulgada pelo Avante! da segunda quinzena de Dezembro de 1949, através da seguinte notícia:
«No passado dia 5 de Dezembro faleceu o membro do Comité Central do Partido Comunista e conhecido escritor revolucionário, Joaquim Soeiro Pereira Gomes, que nas fileiras do Partido usou os pseudónimos Serrano, Silva e Vaz.
Soeiro Pereira Gomes além de escritor de vanguarda e autor dos romances “Esteiros” e “Companheiros”, o primeiro contando já 3 edições, e o segundo ainda inédito, foi um militante destacado do Partido desde a reorganização de 1942, e ingressou nos seus quadros ilegais em 1944, após as greves de 8 e 9 de Maio, no Ribatejo, em que teve uma participação activa como quadro do Partido e como empregado da C.ª de Cimento Tejo.
O nosso querido camarada Soeiro Pereira Gomes morreu vitimado por uma doença grave, que não pôde ser tratada a tempo, devido à vida clandestina e à perseguição feroz de que era alvo por parte da PIDE, que tinha mandado para as autoridades de todas as localidades do Ribatejo o seu retrato e aí o procurava activamente. Sentindo bem os sofrimentos e a exploração de que é vítima a classe camponesa ribatejana, Pereira Gomes realizou junto do campesinato ribatejano um intenso trabalho de organização e mobilização, que o destacaram como quadro do Partido e o tornaram querido das massas camponesas. Pereira Gomes foi também um defensor extremo da unidade antifascista, e um dos obreiros das grandes jornadas de luta do nosso povo quando do movimento da candidatura do Sr. General Norton de Matos.
Com a morte prematura do nosso querido camarada VAZ, o Partido perdeu um dos seus quadros de direcção central, a classe operária um combatente de vanguarda, o povo português um seu defensor activo e abnegado, e a intelectualidade progressiva portuguesa, um dos seus valores mais representativos.
O nosso querido camarada Pereira Gomes foi um companheiro de luta que bem cedo tombou no caminho, sem ter conseguido ver realizada a sua grande ambição: o raiar sobre a terra portuguesa da alvorada da Paz, da Liberdade e da Democracia, por que tanto lutou. Outros seguirão os seus passos e prosseguirão na luta até à vitória final, prestando desta forma a mais justa e mais sentida homenagem ao seu grande coração e ao seu grande amor ao nosso povo.» . in Avante 2009.04.16 . .
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