Discurso de Lula da Silva (excerto)

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terça-feira, 14 de abril de 2009

No bicentenário do nascimento de Charles Darwin: Um texto de Álvaro Cunhal

Quinta-feira, 12 de Fevereiro de 2009
No bicentenário do nascimento de Charles Darwin: Um texto de Álvaro Cunhal

O Poder do Homem

Foi em grande parte por se ter inspirado em Malthus que Darwin não pôde compreender o problema humano. É certo que as ideias da concorrência e da luta aplicadas à natureza viva facilitaram a descoberta da selecção natural e do processo fundamental da evolução das espécies. Mas, embora Darwin, contra o que pretendem alguns dos seus detractores, considerasse a "luta pela vida" não apenas a luta de um indivíduo com indivíduos da mesma espécie, mas também e, fundamentalmente, "com indivíduos de espécies diferentes ou com condições físicas de vida"(67), embora considerasse justamente em muitos casos a "concorrência" dentro de uma espécie não como uma guerra, mas como a simples "sobrevivência do mais apto", ou seja, a sobrevivência do mais capaz de resistir ao meio e à luta que lhe movem as outras espécies, ele não pôde sonhar a existência da ajuda mútua entre indivíduos da mesma espécie.

Darwin viveu numa sociedade onde predominava a concorrência e a luta sem tréguas entre classes sociais. Dada a acção da base material das sociedades sobre as respectivas ideologias, compreende-se que, pela sua mão, a "lei" de Malthus, reflectindo essa concorrência e essa luta, tenha estendido a sua aplicação à natureza viva e que a organização social da Inglaterra do século XIX, com as suas ideologias e sentimentos dominantes, se apresente ingenuamente atribuída a animais e plantas. Foi preciso que homens se educassem numa sociedade sem classes para tornar possível a descoberta da ajuda mútua entre os indivíduos de uma mesma espécie, ponto concordante do mundo biológico com essa nova sociedade. E, se algum espanto ou reparo há a fazer, acerca desta descoberta, não é que ela se tenha feito sem factos bastantes em que se apoiar, mas que tenha tardado tanto a fazer-se quando agora se vê que os factos há muito a justificam. Se mesmo no domínio da biologia, a influência malthusiana limitou e prejudicou o seu trabalho, o grande erro de Darwin foi reintroduzir os princípios malthusianos no estudo das sociedades humanas, fortalecidos agora por uma pretensa comprovação na natureza e aparecendo assim como leis, universais e inelutáveis cientificamente aferidas. A concorrência, a luta de classes, o esmagamento violento de algumas camadas da população (fenómenos temporários correspondendo a uma fase do desenvolvimento da sociedade) seriam leis válidas e eternas para todas as espécies, incluindo a humana.

Darwin, a quem se deve a descoberta e provas definitivas da transformação das espécies e da origem animal do homem, não pôde compreender a evolução e transformação das sociedades humanas, das ideologias e dos sentimentos, e do próprio homem depois que emergiu da animalidade. Não pôde compreender que as sociedades, evoluindo por acção do homem, transformam o próprio homem que as faz evoluir.

Com frequência, Darwin insistiu em que "as espécies evoluem em passos muito pequenos"(69), em que a evolução é "um processo extremamente lento"(68), em que a "selecção natural não pode produzir grandes ou repentinas modificações"(70). Não pôde assim compreender como as transformações quantitativas se convertem em qualitativas, e a consequente importância dos saltos bruscos, tanto na evolução no mundo biológico como na evolução das sociedades humanas.

Darwin definiu a selecção natural como a "preservação de diferenças e variações individuais favoráveis e a destruição das que são nocivas"(71), de onde resulta que "todos os dotes corporais e mentais tenderão a progredir para a perfeição"(72). Não pôde, assim, compreender como os progressos em um sentido são retrocessos em outros sentidos e como nas sociedades humanas a selecção, muitas vezes, determina a preservação dos piores e menos aptos.

Darwin defendeu que "as faculdades mentais do homem e dos animais inferiores não diferem em qualidade, embora difiram imensamente em grau"(73), viu nos animais inferiores sensibilidade, ideias, conceitos estéticos e morais semelhantes aos do homem e tomou geralmente como padrão de beleza, de moralidade e até de civismo (padrão para a humanidade e as outras espécies animais) o seu próprio padrão de beleza, moralidade e civismo(74). Não pôde assim compreender que as ideologias são especificamente humanas e determinadas por uma base social material, que numa mesma sociedade não há ideologia uniforme e geral, mas conceitos e sentimentos divergentes, e que a evolução da vida material dos homens determina a evolução da sua vida mental.

Considerando o homem sob o ponto de vista puramente animal, Darwin atribuiu a causas biológicas o atraso de povos de algumas raças, aproximou-os constantemente (tanto nos seus caracteres físicos como intelectuais) dos animais inferiores e foi ao ponto de considerar alguns macacos moralmente superiores aos "selvagens"...(75) Não compreendeu, assim, a existência de razões sociais determinando o atraso desses povos nem as possibilidades actuais de superar esse atraso.

Darwin fez aceitar pela ciência a origem do homem. A sua contribuição foi, a este respeito, decisiva. Mas foi incapaz de vislumbrar que, a partir de certo momento da sua evolução, os caracteres do homem se diferenciaram qualitativamente dos das outras espécies.

A partir do momento em que o homem fabricou instrumentos de trabalho, a sua evolução passou a reger-se por leis diversas das que regem a evolução das outras espécies. O homem deixou de ser apenas uma espécie animal, adaptando-se ao meio e a novas circunstâncias por acção incontrolável da selecção natural. Na sua evolução, o homem não se limita a adaptar-se ao meio; ele adapta o meio a si próprio. "[...] o homem — escreve Marxage em face da matéria natural como uma força natural. [...] age sobre a natureza exterior, modifica-a e modifica ao mesmo tempo a sua própria natureza."(76) Modificando o meio com um propósito consciente, o homem, na sua luta com a natureza, não se limita a combater e eliminar outras espécies. O homem povoa o mundo com espécies por ele próprio escolhidas e ajuda e orienta a sua selecção. A "luta pela existência" do homem não toma assim apenas o carácter da destruidora e implacável "luta pela vida" de Darwin e Malthus; ela toma, também, o carácter de uma luta construtiva e criadora.

Darwin, que partia da selecção pela domesticação para a selecção natural, que conhecia (como ninguém) as transformações pela selecção, que em alguns casos verificou terem sobrevivido espécies graças apenas à acção do homem, sem a qual soçobrariam na natureza, não soube aí descobrir a afirmação das características específicas da espécie humana. E, embora acreditando no poder seleccionador e transformador do homem sobre outras espécies, apenas considerava a capacidade humana "pelo grande efeito produzido pela acumulação de uma mesma direcção, durante gerações sucessivas, de diferenças absolutamente inapreciáveis para olhos inexperientes"(77). Esta ideia foi ultrapassada pela história. O campo da intervenção modificadora do homem na evolução das espécies animais e vegetais alarga-se dia a dia. Quando nos lembramos de que o visconde de Coruche, justificando o atraso da agricultura, julgou ter encontrado argumento irrespondível e definitivo ao referir que "não é possível produzir hoje cereais, linho, lã, uvas, batatas ou laranjas em menos tempo do que em outras eras"(78), não podemos deixar de sorrir, porque a vida deu já um desmentido literal à fraca ironia do visconde.

O poder do homem permite-lhe construir o seu próprio futuro. Não há qualquer lei natural, quaisquer razões biológicas ou técnicas que limitem o ritmo da produção das subsistências. Esse ritmo depende apenas da acção do homem. De há muito o homem dispõe de meios técnicos capazes de inverter as progressões nos dois termos da "lei" de Malthus.

Com métodos rudimentares, apenas à custa de trabalho e da sua imaginação criadora, pôde o povo português transformar, em vastas regiões, a fisionomia agrícola de Portugal. Nas encostas nuas do Douro ergueu essa monumental escadaria onde hoje se exibem os vinhedos que dão do melhor vinho do mundo. Nas íngremes vertentes e nos vales apertados do Minho, de Trás-os-Montes, da Beira, da Estremadura, foi também dispondo e segurando em socalcos terra trazida à força de braços e foi buscar às entranhas da terra água para fazer verdejar jardins. Desde o canteiro minúsculo ao retalho rendoso, solo fértil surgiu onde ontem existiam apenas penedias. Terras minhotas, naturalmente pobres, tornaram-se terras ricas pela rega e estrumagens. Nas areias safaras da Gafanha ou da Póvoa ou nas dunas das Caldas, com adubações intensas de caranguejo, de sargaços, de moliço, nasceram belas hortas. Nas serras mais pedregosas — na Estrela, na de Aire, em tantas outras — das fendas da pedra brotaram olivais ou, nos ásperos declives, manchas lavradas. Nas charnecas alentejanas e na borda do Tejo, os seareiros romperam os matagais e obrigaram a terra a dar pão. Nos "foros" de Almeirim, Mugem, Salvaterra, culturas viçosas surgiram como oásis em campos de areia. Na generalidade dos casos, todo esse esforço gigantesco, realizado com a miragem de uma vida desafogada, revelou-se uma ilusão para os seus autores. Uns semearam, outros colheram. Mas esse esforço evidencia o poder do homem, evidencia como o homem pode impor e impõe à natureza uma direcção, como pode arrancar e arranca da terra as subsistências que ela por si só recusa, como pode modificar e modifica a terra, as espécies vivas, a paisagem. E se isto pôde fazer o nosso povo à força de braço e de imaginação, mas apegado a recursos velhos de séculos, o que não poderá ele fazer ganhando para o seu serviço a ciência e a técnica modernas?

Quando nos dizem e repetem ser Portugal país pobre, de solo fraco, de terreno acidentado e pedregoso, de clima irregular, e quando assim pretendem amarrar o povo português a um irremediável destino de miséria — nós respondemos que não só o nosso país tem raras e favoráveis aptidões agrícolas, como pode o nosso povo transformá-lo num verdadeiro jardim da Europa à beira-mar, que só o é no entender dos poetas.

Centenas de milhares de hectares no Alentejo, nos incultos e nas terras áridas sem fim podem encher-se de campos vicejantes com águas levadas das bacias do Tejo e do Guadiana ou arrancadas aos lençóis subterrâneos. Os rios podem ser dominados e disciplinados, dando rega e energia, em vez de enxurradas e cheias devastadoras, alternando com secas. Grandes manchas de floresta podem levantar--se em montes descarnados, em areias nuas, em terrenos pantanosos, também junto às linhas de água, dando novos meios de vida, formando cortinas de protecção contra os ventos prejudiciais e contra as areias e torrentes, aumentando a capacidade de absorção de humidade pelos solos, diminuindo o escoamento e a evaporação, facilitando a condensação do vapor de água da atmosfera, defendendo o solo da erosão, dando até melhor ar para o homem respirar e paisagem mais bela para alegria dos olhos.

A oliveira e a nogueira, os freixos e ulmos, o eucalipto e a acácia tornarão ricas e acolhedoras zonas hoje desérticas. A arborização de cumes rochosos de onde as torrentes trazem marés de areia salvará magníficos terrenos de aluvião da ameaça agora iminente da ruína e da esterilidade. A regulamentação do regime das águas abundantes das Beiras oferecerá prados onde se multiplicará o gado. A defesa das cheias, o enxugo, a drenagem, darão produtividade insuspeitada aos aluviões do Mondego e dos seus afluentes, às margens do Lis, às baixas dos afluentes do Tejo, particularmente do Sorraia, assim como aos "focos miasmáticos e palustres" do sul do Tejo. Os ricos fundos dos pauis e brejos numerosos podem ser roubados às águas estagnadas. Pela defesa das marés, o dessalgamento, a drenagem e a irrigação podem tornar-se fertilíssimos os aluviões marítimos e fluviais do Algarve e os vastos sapais do Ribatejo, ilhotas e esteiros no delta do Vouga e podem ser libertados da esterilidade.

Podem fabricar-se solos ricos das terras pobres. Podem escolher-se, seleccionar-se e criar-se os tipos de plantas mais apropriados ao meio português, ou, mais exactamente, aos diversos meios portugueses. Podem obter-se plantas mais rendosas e também animais mais rendosos: podem apressar-se os prazos de maturação das plantas e de desenvolvimento dos animais. Uma planificação da agricultura permitirá um melhor aproveitamento do solo nacional. Com as máquinas e a técnica ao seu serviço, o trabalho será menos penoso e renderá incomparavelmente mais.

Haverá mais fartura nos lares e sairá do que se produz para a compra do que se necessita.

Temos no nosso próprio país todo um novo país a conquistar, um país mais fértil e até mais belo. Temos todas as condições naturais para uma vida desafogada para todos os portugueses. Que se chame a isto um sonho: são legítimos os sonhos de quem dá a vida para realizá-los. Mas não, não é apenas um sonho. Acrescentando-se à simples consideração dos factos nacionais, o triunfo do socialismo em grande parte do mundo dá a certeza de que tal sonho será realizado.

Se já no século XIX alguém pôde dizer ter o homem modificado de tal forma a natureza que "os efeitos da sua actividade não podem desaparecer senão com a morte geral do planeta"(79), seguindo o mesmo pensamento os mitchurianos, seguros do carácter material da vida, puderam demonstrar no século XX ser possível "obrigar cada variedade de animais ou vegetais a desenvolver-se e a modificar--se mais rapidamente e no sentido favorável ao homem". Sendo o homem guiado pela máxima de que não podemos esperar as dádivas da natureza, antes é necessário arrancar-lhas, não é possível prever quaisquer limites a essa criadora intervenção humana.

Não há qualquer lei natural, quaisquer razões biológicas ou técnicas, qualquer fraqueza de espécie humana, que forcem a agricultura ao atraso. Apenas factores sociais a isso a obrigam.

Notas:

(67) The Origin of Species by Means of Natural Selection or the Preseruation of Favored Races in the Struggle for Life, Ed. The Modern Library, New York, III, p. 53.

(68) Ibid., VII, p. 182.

(69) Ibid., X, p. 249.

(70) Ibid., XV, p. 351.

(71) Ibid., IV, p. 64.

(72) Ibid., Conclusão, p. 373.

(73) The Descent of Man and Selection in Relation to Sex, Ed. The Modern Library, VI, p. 513.

(74) Ibid., III, pp. 467-468; VIII, pp. 570-571; XIII, p. 697; IV, pp. 480-481; V, p. 498; etc.

(75) Ibid., Conclusão, pp. 919-920.

(76) Marx, O Capital, t. 1, 3.ª secção, V, 1.

(77) The Origin of Species, 1, p. 30.

(78) Visconde de Coruche, A Agricultura e o País, p. 7.

(79) Engels, Dialéctica da Natureza, Introdução.

In «Contribuição para o Estudo da Questão Agrária», Edições «Avante!», 1976, Vol. 1, págª 125-132

Transcrito de AQUI

Para Ler:

adaptado de um e-mail enviado pelo Raimundo e pelo Jorge


sinto-me:

publicado por António Vilarigues às 13:45

1 comentário:

De João Valente Aguiar a 13 de Fevereiro de 2009 às 11:14
Este texto do Álvaro é extraordinário! Não o conhecia e é uma desmontagem genial e simples das teses biologistas (e hoje muito em voga por causa da descodificação do genoma humano) e geneticistas que atribuem os comportamentos humanos unicamente a características naturais e biológicas. Aliás, esse é um lado da luta ideológica que por vezes se descura e que tem um impacto imenso na reprodução da ideologia (e da classe) dominante.
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in -
http://ocastendo.blogs.sapo.pt/565394.html
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