MFA - Natal 1974
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João Abel Manta, arquitecto e artista plástico, trabalha em várias áreas dessas disciplinas deixando obra notável em todas elas. No entanto, incorre no risco de se tornar quase só conhecido publicamente pela sua obra gráfica, ilustrações de livros, composições gráficas para artes aplicadas, principalmente os cartoons que as urgências de intervir, politica e culturalmente, desde os anos 40, na revista Arquitectura até à colaboração no JL nos anos 80/90, sem obviamente esquecer todos os que de 1969 a finais de 1975 escreveram a história de Portugal e que são indispensáveis para a compreender.
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Obra gráfica vasta que por força da sua difusão é, naturalmente, mais imediatamente acessível o que, dada inexistência de uma História de Arte e de edições sobre artes livres de preconceitos temporais arrisca a fabricar um conhecimento sumário, incompleto e incorrecto deste artista maior nosso contemporâneo e um dos maiores artistas portugueses de sempre. Um reconhecimento que inevitavelmente acontecerá quando muitas das «glórias» do passado recente e actuais ficarem sepultadas na efemeridade do que produzem e se valorar a arte, a criatividade, a originalidade, o saber, a inteligência, a verticalidade e a dignidade sem transigências com um mundo medíocre.
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Tão importante quanto a sua obra gráfica é o seu trabalho enquanto arquitecto, sua formação e profissão de base. Se nada mais tivesse feito bastaria ter projectado, com Alberto Pessoa e Hernâni Gandra, os Blocos Habitacionais na avenida Infante Santo em Lisboa, uma referência na arquitectura da capital. Edifícios isolados, orientados nascente-poente, frente para sul a captar francamente a lisboeta luz, organizam-se em blocos perpendiculares ao eixo viário de tráfego rápido, assentes em pilotis implantados numa plataforma onde se promove clara distinção entre as vias de acesso local e zonas públicas. A diferença de cotas entre o conjunto habitacional e a avenida Infante Santo são vencidas por sucessivos núcleos de escadarias que rompem regularmente um muro revestido com painéis de azulejos realizados por Carlos Botelho, Sá Nogueira, Maria Keil, Júlio Pomar com Alice Jorge, Eduardo Nery. Uma conceptualização espacial clara que hoje fica mais sublinhada, é mais evidente por se confrontar directamente com a mediocridade do que foi crescendo na envolvente. Um pedaço exemplar de cidade dentro da cidade.
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A pintura de João Abel Manta, o que se conhece da pintura de João Abel Manta que já não expõe há alguns largos anos, é a afirmação da defesa da arte contra a banalidade. Homem atento, de larga e vasta cultura, a sua pintura evidencia um conhecimento, um talento e uma originalidade que o destacam mesmo quando deliberadamente procura um academismo palpável, para se demarcar de uma pintura que só existe como arte pelo que se diz sobre ela. Pintura que recolhe e reconhece valores académicos, sejam naturalistas ou abstractos, para ampliar o universo significativo da sua linguagem, trabalhando a cor, a luz, as texturas, as linhas, etc. todos os elementos que constroem a gramática pictórica e exploram os seus valores semânticos para originar significados novos, ultrapassando constantemente o seu universo expressivo. O novo, na pintura de João Abel Manta, nunca foi o desejo superficial de inovar, mas a ferramenta que usa como meio imprescindível para exprimir a sua visão própria. Decorre de uma necessidade do processo criativo. Não lhe é exterior, o que liberta a sua pintura do uso mecânico, burocrático, das linguagens pictóricas em uso ou desuso. Não tem a pretensão de explicar o mundo mas penetra na sua opacidade, descasca a sua insuportável estranheza. Humaniza-o e revela-o.
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Explorar as técnicas próprias, as técnicas fundadoras que caracterizam as disciplinas artísticas, usando conhecimentos adquiridos noutras práticas, fazem com que João Abel Manta adquira uma rara solidez em todas as obras que realiza. As tapeçarias do Salão Nobre da Sede da Fundação Gulbenkian em Lisboa, os pavimentos de mosaico para arruamentos na Figueira da Foz e na Praça dos Restauradores (Lisboa), os cenários e figurinos para A Relíquia de Eça de Queiroz ou O Processo, de Kafka, ou os desenhos para painéis de azulejos integrados em obras de arquitectura para a Associação Académica de Coimbra ou nos paramentos dos muros de suporte de uma via rápida são, na sua imensa diversidade, exemplares da sua criatividade, do rigor dos seus processos de trabalho, do conhecimento dos materiais que utiliza.
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A tapeçaria não é uma transcrição de um desenho de um cartão é o desenho do cartão que valoriza as técnicas construtivas da tapeçaria para a tornar numa obra de arte que não é uma imitação de pintura. Os desenhos de mosaicos para os pavimentos exploram os contrastes entre as pedras brancas e negras e as possibilidades dos desenhos dos padrões abstractos num preciso enquadramento urbano pré-existente. Os painéis de azulejos dos muros de suporte da avenida Gulbenkian e no Eixo Norte-Sul adquirem significado quando lidos na velocidade de deslocação dos automóveis.
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Tudo isso se faz, desenha, pinta, projecta com uma quase insuperável qualidade oficinal em que apoia esse empenho no detalhe, no pormenor que nunca se distrai de uma aguda visão global. Está em toda a sua obra e está bem presente nos cartoons, anglicismo que propositadamente utilizou para acentuar o carácter de intervenção desse seu trabalho. Conhecidos são sobretudo os cartoons que em 1974 e 1975 acompanharam o que se viveu em Portugal durante esses dois anos de todas as esperanças. Com o seu fenecimento o cartoonista João Abel Manta que tinha durante dezenas de anos enfrentado processos, lutado contra o impiedoso lápis azul da censura sem um desfalecimento, com uma coragem exemplar, desaparece do convívio público quase diário com que, entusiasticamente, cartografava a Revolução de Abril. Eram comentários urgentes, acutilantes, em cima do acontecimento. O que era e continua a ser espantoso, é nunca perderem o norte, acertarem sempre no alvo com uma precisão tão rigorosa que só é comparável à certeza cinematográfica dos golpes de kung-fu. A história de Portugal entre 1969 e Novembro de 1975 pode sofrer um terramoto, pode ser objecto das melhores ou das piores rescritas, mas existindo os cartoons de João Abel Manta, a nossa memória e a memória do país está garantida pelo registo e o selo branco de um dos nossos maiores artistas.
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Irá reaparecer em 1981 com um álbum deslumbrante: As Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar. Como os cartoons dos anos de brasa da Revolução, esse conjunto de desenhos são indispensáveis para se compreender a História de Portugal. Fazem-nos sorrir, são de uma ironia cortante. Fazem-nos sobretudo pensar. São leitura de uma clareza fulgurante sobre a nossa história. Está tudo lá. Estamos lá todos. A mediocridade da nossa burguesia provinciana, os seus valores patéticos, a arrogância e a fatuidade do nosso pequeno mundo bem português de falsos brandos costumes, ancorada numa ordem político-militar que perseguia, amordaçava e, sempre que necessário, eliminava fisicamente a resistência. É essa história que João Abel Manta conta com uma ironia sofisticadamente inteligente donde exclui o riso fácil.
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Como sempre o fez. Como sempre o tinha feito. Vejam-se os Diálogos Confidenciais, as ilustrações para o Burro em Pé e Dinossáurio Excelentíssimo com textos de José Cardoso Pires, as séries temáticas Shakespeare, Missionários, Santo Ofício, Gaslight em que a inteligência crítica e a qualidade do desenho, aliás imediatamente reconhecível logo nos anos 40 ainda aluno da Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, o colocam como um dos maiores artistas portugueses. Olhar, rever a sua obra gráfica conduz-nos a Goya, Steinberg, François, cá da casa um Bordalo. Há referências óbvias, proximidades, confessadas admirações o que não retira originalidade nem desvia João Abel Manta do seu caminho, da solidão em que trabalha e ao direito a essa solidão que defende com alguma ferocidade. Da solidão em que mergulha na literatura, na música, nas artes plásticas, no cinema, na filosofia, no travejamento do mundo eruditamente culto que é seu, que partilha com os amigos, que está bem vísivel em toda a sua obra.
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José Cardoso Pires, numa conferência, foi lapidar em relação a João Abel Manta «é um artista de visão global, poliédrica, vejo-o em dimensão renascentista. Ele que me perdoe a lisonja, mas vejo-o. Por vezes tem para mim os vícios aristocráticos e individuais do espírito da Renascença, mas tem a imaginação, o rigor e a coragem que fazem a amplitude dos humanistas. Todas as técnicas e todas as expressões do nosso tempo o desafiam e lhe são dele enquanto traço e cor; toda a comunicação, todos os Media o provocam como partes duma exploração do homem global».
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A história contemporânea de arte portuguesa, ensarilhada nas mais diversas contradanças, tem deliberadamente esquecido João Abel Manta que, como já se disse, será sempre um dos artistas maiores da nossa História de Arte. Não está só nesse quarto escuro do olvido. Já é tempo de se realizar uma retrospectiva de toda a sua obra.
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in Avante
Nº 1794
17.Abril.2008
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