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Sexta-feira, Agosto 18, 2006
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"Recepção Académica"
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Caricatura de João Abel Manta, editada em "Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar", Lisboa, O Jornal, 1978; idem, Porto, Campo das Letras, 1998, pág. 60.
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Partindo do conceito "fascismo de cátedra", definido premonitoriamente por Miguel Unamuno, João Abel Manta descarna as sucessivas embaixadas coimbrãs de lentes e estudantes que foram visitando Salazar ao longo da sua carreira política, e mais proximamente alude a uma visita de alunos da UC quando o ditador pareceu recuperar do acidente e participou no acto eleitoral de 1969.
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Abel Manta destaca, pela centralidade glacial e estado comatoso, a figura isolada do ditador, diante de quem fazem reverenciosa genuflexão diversos estudantes. As insígnias doutorais de Direito comportam ornatos facilmente confundíveis com tíbias (alusão à morte) e o vermelho, cor tradicional do Direito, pode ser descodificado como sangue. Sobre a cabeça do ditador paira um abutre.
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Salazar e as figuras mais proeminentes do pensamento jurídico do Estado Novo foram desde cedo representados com o Hábito Talar e Insígnias Doutorais de modelo tradicional conimbricense. Seja em vulto redondo (Salazar, por Francisco Franco), seja em bustos espalhados por jardins e tribunais, os professores ligados ao regime ventilavam uma configuração cónica e maciça que nada tinha a ver com o aspecto doce e intimista imprimido por Soares dos Reis à estátua sentada de Avelar Brotero (entrada do Jardim Botânico, 1887). António Soares dos Reis, nos primeiros estudos para o Brotero chegou a propôr uma estátua erecta, mas no tratamento da cabeça e das linhas do rosto, braços e insígnias, estava longe de sugerir a gélida distância que Francisco Franco propositadamente conferiu ao seu Salazar.
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Ao criticar o regime e o ditador que o prolongava, Abel Manta permitia-se incorporar na caricatura a UC, instituição que durante décadas se reviu no Estado Novo e o ajudou a sustentar. Este golpe de perspicácia de Abel Manta é tão mais notável, quanto Oliveira Salazar soube jogar por longos anos com ardis do tipo que era um lente de Coimbra exilado em Lisboa, que não estava agarrado ao poder e desejava regressar à docência em Coimbra, que não se assumia como político compulsivo mas sim como professor, ou que era doutorado em Direito mas não tinha insígnias doutorais. E não se diga que estes argumentos não andaram na rua nos tempos que correm...
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AMNunes .
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