Postado por Marco Haurélio em 11/03/2007 12:26
A literatura popular em verso, ao adaptar os contos tradicionais, transpôs para o universo do cordel o ciclo do demônio logrado, segundo a classificação de Câmara Cascudo. Diferentemente do Mefistófeles do Fausto, de Goethe, o demônio da novelística popular é invariavelmente ludibriado por aqueles com quem aposta. São exemplos salutares as estórias O Diabo trabalhando no roçado de São Pedro, Ovelho que enganou o Diabo e A mulher que enganou o Diabo. São todos estes folhetos variações sobre o mesmo tema: após assinar o pacto, o demônio realiza, por determinação do pactuante, uma série determinada de tarefas, com relativa facilidade, pois sempre se vale do seu poder sobrenatural. Porém, na última tarefa, a astúcia do ser humano, com quem o Tinhoso firmou o pacto, acaba se sobressaindo; ora é uma cruz no roçado, ora a construção de uma igreja que selam a derrota do anjo maldito pela impossibilidade da aproximação do local ou artefato sagrado.
Há dois romances intitulados A mulher que enganou o diabo. Um de José da Costa Leite e outro de Manoel D’Almeida Filho. Servimo-nos do último, editado pela Luzeiro. Almeida, poeta inspiradíssimo, prolífico e versátil, para explicar a derrota do demônio, anunciada já no título da obra, tece um prólogo onde, a partir da literatura sagrada, estabelece uma convenção transformada em regra: a mulher é mais astuta do que homem:
Muitas mulheres no mundo
Só exibindo beleza
Enganaram muitos homens
Usando nessa proeza
Os olhos jorrando lágrimas
Como as armas da defesa.
Sem falar em muitas que
Enganaram por paixão,
Falamos só em Dalila
Que subjugou Sansão,
Com as tramas diabólicas
Dos engodos da traição.
Almeida, ao fazer tal comparação, sabe bem o que escreve. É dele o excelente A traição de Dalila e a força de Sansão, de que a estrofe acima parece ser uma evocação. Nesta obra, Almeida assim se refere à mulher para justificar que a inteligência, mesmo voltada para propósitos maléficos, é superior à força:
Sansão teve a maior força
Dos homens de nossa vida
Se apaixonou por Dalila
Uma mulher pervertida
Foi a maior traiçoeira
Até hoje conhecida.
Em A mulher que enganou o Diabo, a personagem principal recebe o nome de Maria da Conceição, o que indiretamente a associa à Virgem Maria, embora a associação não vá além disto. Seu marido, Pedro, é um preguiçoso inveterado, e, além de constantemente invocar o Diabo, almejando riqueza fácil, oferece, em troca, a sua alma e também a da esposa. Na ausência do marido, o Diabo aparece à mulher, personificado num negro , como o que desafiou Manuel Riachão na célebre peleja adaptada ao cordel por Leandro Gomes de Barros. A mulher assina o pacto, mas para que tal se concretize, exige a realização de sete tarefas, que, como foi exposto, com exceção da última, são cumpridas, são empecilhos. A argúcia da mulher fica evidente neste trecho, onde ela tenta tranqüilizar o marido, já ciente de que seu chamado foi atendido:
... Eu tenho certeza:
Mesmo sendo o Satanás,
Ele nunca vai fazer
O que nenhum diabo faz;
Assim, vai sair correndo
Para nos deixar em paz.
Dentre os pedidos estão uma casa “com cem mil metros quadrados/ cobertos com um só teto”, uma barragem “vinte léguas rio acima”, com todos os peixes, inclusive o tubarão (!), e a construção de uma cidade “com dez mil casas bem feitas” (note-se a preocupação social do poeta). Finalmente, a última tarefa, com que o demônio é finalmente logrado:
Quero que construa agora
Uma Catedral Católica
Que caiba todos os santos
Da união apostólica
Para ser interpretada
A ciência parabólica.
Com altares para todos
Sendo maior o primeiro
Para celebrar o santo
Sacrifício do Cordeiro -
E na torre da matriz
Quero um bonito cruzeiro.
A evocação do sacrifício de Cristo, que para a teologia católica significou a derrota do anticristo, foi o golpe com que a mulher venceu o adversário. O Diabo, então, vai buscar na história sagrada a justificativa de sua derrota:
Desde o começo do mundo
Que a mulher só faz traição
A que começou foi Eva
Quando atraiçoou Adão,
Seguindo o mesmo caminho,
Dalila enganou Sansão.
A favor da mulher, é preciso dizer que, antes de iludir Adão, ela foi iludida pela Serpente, posteriormente identificada com Satanás, para a consumação do ato de desobediência, que segundo o autor do Gêneses, deu origem ao pecado original e, conseqüentemente, à humanidade. Antes de ser subjugado, há, por parte do Tisnado (o nome que “batiza” o Diabo na presente estória), uma referência maliciosa ao episódio da tentação. Referência que, aliás, em nada se assemelha com a visão popularizada pelo romantismo, a partir do Satã do Paraíso perdido, de Milton, que se apresenta como um herói vencido, mas não domado, lembrando o Prometeu imortalizado por Ésquilo há dois milênios e meio. Eis a referência:
Você vai mesmo em seu corpo
Pois em você tudo é meu,
Mas não pense que me engana
Com a maçã que escondeu;
Lá você tem que me dar
A fruta que Adão comeu.
A resposta da mulher vem no melhor estilo dos arremates dos cantadores nordestinos, um verdadeiro xeque-mate:
Maria disse: Atrevido,
Sua intenção é medonha,
Porém você vai comer
Uma coisa que nem sonha:
A maçã da sua mãe,
Descarado sem vergonha!
O folheto (oito páginas) O velho que enganou o Diabo segue na mesma direção, mais ao invés da malícia feminina, quem se sobressai na disputa com o demônio, mais uma vez humanizado, é um velho, o que sugere que desta vez a experiência foi decisiva. O velho, como é rotina nestas estórias, tem nome de santo, Braz, e, ao contrário do preguiçoso da outra estória, pede ajuda a Deus:
(...)
- Ai meu Deus se eu alcançasse
um descanço em minha vida
que facilmente eu passasse
sem trabalhar alugado
tratando do meu roçado
Ah! seu Deus me ajudasse.
Sem querer, o poeta acaba suscitando uma questão que tem inquietado filosófos, teológos e estudiosos do ocultismo: apesar de solicitar a ajuda divina, estranhamente quem vem em auxílio do velho Braz é o próprio Diabo, que o redator do livro bíblico de Jó inclui entre os filhos de Deus. É visível também, a influência medieval, desde as crenças populares do período até aquelas sistematizadas em tratados teológicos, de que o Diabo é um instrumento de Deus para testar a fidelidade do homem. A chegada do Tinhoso é assim descrita:
Num dia de sexta-feira
O velho estava sentado
Quando foi chegando um negro
De cabelo aguaribado
Para o velho disse assim:
- A tua vida é ruim
vou te fazer melhorado.
A citação da sexta-feira, considerado pelos ocultistas como um dia funesto, não é fortuita. Mas uma vez, o Diabo é identificado como “um negro de cabelo aguaribado”, o que reforçaria a tese de que há preconceitos por parte de determinados poetas populares, embora tanto neste caso como no anterior, o livreto se origina de um conto popular que o poeta adapta para o cordel, sem intencionalidade de suscitar maiores polêmicas . A descrição física torna-se pormenorizada quando o Diabo se prepara para a primeira tarefa e imposta pelo velho: “um cercado / com estaca de primeira/ e com arame farpado”. Proposta esta bem modesta, aliás, se comparada à da primeira estória analisada:
O negro chegou a tarde
Mais preto do que carvão
Com o cabelo assanhado
Com a foice na mão
Disse: - O cercado está feito
Pra tudo precisa jeito
Tem boi que só no sertão.
A segunda tarefa, a construção de um açude, é cumprida sem embaraços: Mais uma característica do Diabo, a expiração ígnea, é ressaltada:
Chegou no dito lugar
Agarrou a ferramenta
Dava pancada no chão
Saindo fogo da venta
Aquele negro infeliz
Ainda tem gente que diz
Que o Diabo não atenta.
A terceira tarefa, diferentemente das anteriores, demora mais tempo para ser concluída, devido ao grau de dificuldade: “cem casas modernas/ para residir doutores” para abrigar os seus “moradores” (agregados?):
O negro com oito dias
Já tinha feito uma praça
Casas modernas, bem feitas
Todas elas com vidraça
O negro muito contente
Porém estava inocente
Que trabalhava de graça.
À medida que o Diabo executava as tarefas, tentava colher do velho o sangue com que selaria o pacto. Este conseguia sempre se desvencilhar até a última tarefa, impossível de ser realizada pelo anjo maldito, pois, como na estória, anterior, evocava o sacríficio com que o seu arquiinimigo redimiu a humanidade:
Disse o velho ao negro:
- Preste atenção a mim
vá amolar a sua foice
e roce aquele capim
que tem dentro do cercado
o negro ficou zangado
achando a coisa ruim.
Porque no dito capim
Tinha uma cruz enfincada
A cruz lá já era antiga
De um mato bem rodeada
E o velho já sabia
Que o Diabo perdia
Por causa da cruz sagrada.
O poeta popular aproveita o medo que o Diabo tem da cruz para expor sua veia picaresca:
O negro se abaixava
Um pouco desconfiado
Pisando devagarinho
Com pescoço estirado
Quando viu a cruz pulou
Do salto que deu quebrou
O que tinha pendurado.
O Diabo, por fim, reconhece a derrota. O autor, no final do folheto, invoca o nome de Deus, como que se precavendo por ter narrado uma estória sobre a sinistra personagem, mesmo que esta tenha sido derrotada em seu objetivo maior: a conquista de uma alma.
O Diabo pode ser vencido, a Morte, não
Câmara Cascudo no intróito aos Contos Tradicionais do Brasil, assim se refere ao ciclo do demônio logrado analisado neste capítulo: “ Todos os contos ou disputas em verso em que o demônio intervem perde a aposta e é derrotado” (, p. 21). Ao contrário, a Morte aparece, na novelística popular, invencível, embora possa ser provisoriamente ludibriada, como no mito grego de Sísifo. Sobre o Ciclo da Morte, escreve ainda mestre Câmara Cascudo:
Nos contos em que aparece o Diabo este perde
infalivelmente. A Morte, ao contrário, vence.
debalde o homem procura enganar,
utilizando todos os recursos da inteligência, o pagamento
fatal da dívida. (Idem, p. 22)
Antônio Teodoro dos Santos teve a ventura de versar, ou seja verter para a literatura de cordel, a estória (história, para os vates populares) de João Soldado , conhecida de muitos estudiosos e dos irmãos Grimm, que a recolheram na Alemanha, há cerca de dois séculos. Há uma versão mais antiga, O Diabo e o Soldado, escrita por Firmino Teixeira do Amaral e publicada pela extinta Editora Guajarina, de Belém do Pará. A versão de Teodoro situa o soldado na Palestina, onde, futuramente, ele irá se encontrar com o próprio Jesus Cristo:
João Soldado se criou
Na terra da Palestina
Ficou órfão logo cedo
Foi bem triste a sua sina
Mas porém foi coroado
Por uma estrela divina.
João, então, resolve “assentar praça”, contudo a sua honestidade impede que faça carreira na polícia; a crítica é sutil e, infelizmente, atual:
O que é certo que João
Na vida não fez carreira
Somente por um motivo
De não pegar na chaleira
Até que saiu da praça
Limpo sem eira nem beira.
Após vinte e quatro anos de bons serviços, João recebe como soldo “uma farda/ quatro vinténs e um pão/ um capacete rasgado/ e um par de botinão”. Voltando para a casa, João tem um encontro que mudará, para sempre, a sua vida: dois mendigos lhe pedem uma esmola e recebem uma parte do pão; por mais três vezes eles aparecerão até que João lhes entregue “o último dinheiro”. Aí há a revelação:
Aqueles dois mendicantes
Eram São Pedro e Jesus
Quando andavam neste mundo
Trazendo a divina luz
Provando os bons corações
Com sua pesada cruz
Em retribuição à boa ação, Jesus se mostra disposto a satisfazer qualquer pedido de João. São Pedro, então, instiga-o a pedir a salvação de sua alma, mas ele acaba fazendo outro pedido:
... Peço ao mestre que me dê
Uma força divinal
De tudo quanto eu mandar
Entre aqui no meu bornal.
O dilema de João Soldado – escolher entre a salvação e a possibilidade de gozo no plano material – está presente em outras adaptações pertencentes ao mesmo ciclo. A título de comparação analisemos algumas delas.
Em Jesus e o homem do Surrão misterioso, de Manoel D’Almeida Filho, há o encontro da personagem principal, apelidado de Moleza, com os dois benfeitores de João Soldado. Almeida assim descreve os dois velhos (note a semelhança com a descrição de Teodoro):
Então aqueles dois velhos
Que falavam com Moleza,
Eram Jesus e São Pedro,
Dentro da sua grandeza,
Que sofriam pela terra
Para ajudar a pobreza.
À pergunta direta de Jesus, “- Quer riqueza ou salvação?”, Moleza não titubeia e responde talqualmente João Soldado:
Quero que neste surrão
Tudo que eu mandar entrar
Entre no mesmo momento
Sem fugir nem recusar,
Seja coisa viva ou morta,
Só saia quando eu mandar.
Já em O ferreiro das três idades, de Natanael de Lima, a personagem principal tem o nome de Pobreza, o que pode ser interpretado como uma personificação ou mesmo uma alegoria, pois a cadela do ferreiro chama-se Miséria. Pobreza, como João Soldado, é contemporâneo de Jesus, que, sabendo do estado de penúria que vivia o ferreiro, vai visitá-lo. Pobreza o hospeda em sua casa, mas, como não possui uma cama sequer, Jesus dorme no chão. No outro dia, respondendo às queixas e pedidos de desculpas do ferreiro, o divino mestre assim se reporta:
... Pobreza,
É triste a tua missão!
Então pede-me três coisas,
Que darei de coração –
Diz-me se queres riqueza,
Vida longa e salvação.
Como os antecessores, Pobreza renega a salvação e a riqueza, mas fará três pedidos que serão cruciais, quando, num futuro embate com o Diabo, conseguirá as três idades a que o título alude. O primeiro pedido:
Pobreza disse: - Eu não quero
Essa tua salvação –
Quero é que quem se sentar
Aqui neste meu pilão
Só possa se levantar
Com minha autorização.
No segundo pedido, ele descarta a riqueza:
- Riqueza também não quero
Que me acostumei pedir –
Quero que naquele pau,
A pessoa que subir
Dele só possa descer
Quando eu manda-lo sair!
Jesus então aconselha-o a pedir mais anos de vida, mas ele reluta novamente:
- Senhor, eu também não quero
Que aumente mais a minha vida –
Quero é que quem penetrar
No meu quarto de dormida
Fique lá preso até quando
Eu der ordem de saída.
Em Jesus, São Pedro e o ferreiro rei dos jogadores, de Manoel Caboclo e Silva, há o mesmo motivo de hospedagem das duas personagens sagradas e o pagamento que, dada a escolha (“ser o rei dos jogadores/ ou ganhar a salvação”), levanta a mesma questão da eterna luta entre o espiritual e o material, o cósmico e o telúrico. O ferreiro, obviamente, preferirá ser o rei dos jogadores e se valerá deste dom para derrotar o Diabo. Pois bem, agora que conhecemos os mesmos motivos – uma dádiva milagrosa – e tipo – o homem que troca a salvação pela possibilidade de se destacar entre os vivos – voltemos a João Soldado.
Após conceder-lhe o dom, Jesus abençoa o soldado e segue para a Galiléia. João, já na Judéia, passa em frente a um hotel (o anacronismo na literatura de cordel é fascinante), “Onde tinha um lombo frito”. É este o primeiro milagre, pois, assim que João o chama, o “lombo” vai parar no bornal. Em seguida, João atrai um grande pão numa “padaria/ dum sovino tubarão”. Para evitar confusões, de acordo com os mores nordestinos, o autor faz questão de explicar que a atitude do soldado nada tinha de ilícita:
João fartou-se de comer
no bornal misterioso
porém não era roubando
é porque foi caridoso
e tudo isso eram obras
do grande Deus poderoso.
Em seguida, João chega a uma fazenda “dum rico bem pabulento” onde pede aposento, o que lhe é negado. Contudo, o rico lhe aponta um velho sobrado assombrado por um fantasma. Lá, ele deparará com todo o tipo de visão. Por fim, a alma condenada aparece e começa a desmontar-se, sempre se dirigindo ao soldado: “Seu João, eu quero cair!”, despencando todas as partes do corpo, que depois se reúnem. Trata-se de uma alma penada que, graças à coragem de João Soldado, é salva do inferno. Há versões orais desta estória em que não há nenhuma alma penada mas uma legião de diabos a quem João aprisiona no saco e espanca impiedosamente. Na adaptação de Teodoro, a alma, para purificar-se de seu pecado, a avareza, presenteia João com três caixões de moedas de ouro, enterrados na casa. No Nordeste, são muito comuns as estórias de tesouros oferecidos aos vivos por almas penadas. O mesmo motivo se repete em outras obras de cordel como O príncipe João Sem-Medo e a princesa da Ilha dos Diamantes, de Francisco Sales de Areda, e O gigante Quebra-osso e o Castelo mal-assombrado, que Minelvino Francisco Silva adaptou de um conto popular em que, em algumas versões, o Bocage folclórico aparece como herói.
Por ter resgatado a alma das trevas, João enfrentará a ira de Lúcifer, que envia um subalterno, o “cão” Permanente, disfarçado em “chefe de cabaré” (outro anacronismo) para iludir João Soldado. Quando este faz o sinal da cruz o “cão” se denuncia e João o convida a entrar no bornal. E, assim que ele entra, João...
Pegou a mão de pilão
Mandou no cabra sem pena
O cão velho estrebuchava
Igual a gota serena
João Soldado o machucou
Só Jesus viu esta cena.
Quando o cão é solto, ainda leva outra surra no Inferno. Agora é Lúcifer, o próprio, quem vai buscar o soldado. Há um embate verbal interessante onde o Diabo se reafirma príncipe deste mundo, respondendo a João, que se diz “filho de Adão/ Imagem do Criador!...”.
Ora, disse Lúcifer
Adão caiu de bandão
Foi iludido e comeu
O fruto da perdição
Quem tem alma, carne e osso
Vive preso em minha mão...
Quando João evoca Jesus como guia, a resposta do Diabo vem salpicada de fina ironia:
... É bem errado o teu guia;
Se todos o emitassem
O mundo não existia
Não havendo cruzamento
Também gente não havia...
Trava-se uma luta onde João “arrancou o chifre” do Diabo. Depois, com outra espadada, “arrancou o tornozelo”; esta cena explica, à maneira dos contos etiológicos, o porquê de o Demônio ser coxo. Após infligir uma queda ao oponente “que quasi quebra o focinho”, o Diabo, “o chefe de todo cão”, é obrigado a entrar no bornal, sendo espancado com um “cacete/ dos que se bate feijão”. A tentativa de “suborno”, visando à liberdade, é hilária. Disse o Diabo:
... João, me solta
Que eu te ensino uma maneira
De você ficar querido
De toda moça solteira
E se quizer as casadas
Elas caem quasi em cegueira.
Ensino como se ganha
Dinheiro na loteria;
Como se corta baralho;
Como se atrai freguesia;
Ensino curar doentes
Toda espécie de magia.
Na literatura de cordel, às vezes, o Diabo se porta como o adversário do Altíssimo mas no presente caso, ele é apenas um charlatão de feira. João, obviamente, recusa as ofertas e redobra a pisa, só libertando o demônio mediante intervenção divina, atendendo ao pedido de um anjo “figurado numa ave”.
O autor prossegue narrando a estória à maneira dos autos medievais. João está com setenta anos, embora não conheça doença. Porém o inevitável, na caracterização da Morte, aparece . Faz-se necessário descrever este encontro, pois a narração ratifica a assertiva de Câmara Cascudo, ao estabelecer a diferença entre a Morte e o Diabo na psicologia popular. João Soldado, percebendo a proximidade da Morte,
... Sentiu um pavor
Sentiu o mundo rodando
E o céu de toda cor
Viu anjos lá na altura
Cantando ao pai criador.
A descrição da Morte não podia ser mais perfeita; apesar de personificada como uma entidade feminina, remete a Hell , a deusa dos mortos na mitologia nórdica, e a Tânatos, divindade masculina da Morte na mitologia grega:
Viu uma velha sizuda
Com grande foice no ombro
O nariz era um serrote
Cada olho era um rombo
Muito magra esfarrapada
E a boca era um assombro.
Na seqüência, uma imagem digna do Apocalipse; o cavaleiro pálido:
Tinha azas sobre as costas
Os dentes bem volteados
Riscava o céu com as unhas
Fazia relampejados
Pegava o sol e a lua
Tragava de dois bocados.
A reação de João Soldado mostra-se patética:
João quasi fica nervoso
Nesse momento atual
Logo apressou-se rezando
Fazendo o pelo sinal
Disse ele: Minha velha
Entre aqui no meu bornal.
Inapelavelmente, a Morte o conduz ao Inferno, aonde ele chega fazendo estragos, ferindo “dois irmãos”, que guardavam o local. Lúcifer, logicamente, não o acolhe e a “santa mulher” o escolta ao Purgatório, que ele confunde com o inferno. Lá “Vomitou toda a cachaça/ Inguiou leite materno/ Queimou as cascas dos olhos/ Por ver os ‘usos moderno’.” Só depois de purgar os pecados é que a Morte deixa-o no céu, na fila das almas. Ao tentar cortar a fila João é agredido por Sansão, que descontou nele a raiva que tinha de Dalila e é advertido por São Gabriel, “que ali era o regente”. Logo após surgem dois santos, cujas atribuições pré –cristãs o autor faz questão de descrever:
Santa Bárbara já zangada
Rosnou no peito um trovão
Lá se vinha São Miguel
Com a balança na mão.
Em Anúbis , Câmara Cascudo discute a sobrevivência de crenças originárias no antigo Egito, como a Psicostasia, a pesagem da alma, realizada no tribunal presidido por Osíris, por Anúbis o deus psicopompo , ancestral do São Miguel do catolicismo popular. Não é por acaso que Teodoro insere estas figuras no cenário pos mortem por onde vagueia a alma de João Soldado.
No céu, João reencontra São Pedro, que o impede de entrar na glória sem o julgamento. Estranhamente, o santo que acompanhava Jesus quando este lhe concedeu a dádiva milagrosa, não o reconhece e o incita a provar se realmente o tal bornal era milagroso:
Abriu João o seu bornal
E mandou São Pedro entrar
Ele dentro da capanga
O recurso foi gritar
Dizendo: - Me solta João
Pois é certo o teu lugar!
A recompensa não tarda:
Ele alegre desatou
O seu bendito bornal;
São Pedro lhe deu o trono
No reino celestial
João Soldado hoje é santo
Foi grande o seu ideal.
Partindo do ponto de vista do poeta que versa a estória popular, é perceptível a existência de um esquema que estabelece não apenas a oposição entre dois mundos – o espiritual e o material, como foi dito – mas também entre a virtude e o vício, sendo o último finalmente derrotado. O que pode gerar certa confusão, pois os autores de cordel, independentemente de gênero ou tema que abracem, sempre pontuam as suas narrações com comentários que explicam como ao final das estórias, os bons são recompensados e os maus punidos. João Soldado, assim, não é uma estória de exemplo, embora haja certa identificação temática: João Soldado é recompensado por Jesus por sua caridade; com o dom recebido, se apossa do pão “dum sovino tubarão” ; depois, graças à sua coragem, liberta uma alma penada, cujo crime em vida foi a avareza. E por aí vai. O triunfo da virtude cristã sobre a avareza, um dos sete pecados capitais, é ressaltado nos dois últimos versos da penúltima estrofe (“Ninguém perde quando dá/ Do pouco que tem na mão”.) e no acróstico final (invertido):
Ornando a vida de glória
Imitemos João Soldado
Nas alturas está Deus
Olhando pra todo lado
Tomba o casquinha avarento,
Navega em mar opulento
Aquele que é denodado.
Os irmãos Grimm recolheram muitos contos em que a bondade do herói é recompensada por anões e outros seres do folclore europeu. João Soldado seria, portanto, um conto de convergência, amalgamando tradições pagãs e cristãs, sendo o motivo da recompensa também comum nas estórias árabes. O motivo da punição pela falta de hospitalidade está presente na lenda grega de Licaon, transformado em lobo por ter negado abrigo a Zeus, travestido em peregrino. Dos irmãos Grimm, temos o conto Folgazão , em que a dádiva provém de São Pedro, disfarçado em mendigo. Folgazão é igualmente soldado e, da mesma forma recebe como soldo “um pão e quatro vinténs” que divide com o santo, que será seu companheiro de viagem e a quem burlará com a mochila mágica, quando tentar entrar no céu.
Variantes no Ciclo dos anti-heróis
Em Tradições Populares, no capítulo sobre Pedro Malazarte, Amadeu Amaral cita, no ciclo deste anti-herói, uma estória onde o famoso burlão, trabalhando como ferreiro, encontra São Pedro e Jesus, que lhe pedem que ferre o seu burrico, concedendo-lhe por isso três graças: que quem sentasse em sua macieira não se levantasse; quem entrasse em sua bolsa de couro não pudesse sair e, por último, que ninguém além dele pudesse pegar a sua carapuça. Pedro se vale do mesmo expediente de João Soldado para aprisionar e castigar Satanás, a quem havia prometido a alma. O burlão consegue entrar no céu atirando a carapuça, que só ele podia apanhar, ludibriando São Pedro.
O poeta popular baiano Minelvino Francisco Silva promoveu O Encontro de Cancão de Fogo com Pedro Malazarte, onde este último, após ganhar no carteado muitas almas de Lucifer, as conduz para o céu, onde São Miguel era porteiro(?). Quando este santo facilita, Pedro senta no seu trono e faz lembrar a Jesus, a quem havia encontrado e hospedado na terra, que lhe pedira para que “no lugar/ Que ele calmo sentasse/ Ninguém mandar levantar”. Jesus se lembra da promessa e São Miguel, a partir deste momento, deixará de ser porteiro:
Malazarte virou santo,
Deixou de ser trapaceiro
Na vida de jogador
Foi um grande aventureiro;
São Miguel foi pesar almas
“São” Pedro foi ser chaveiro.
Aparentemente estas duas estórias – a citada por Amadeu Amaral e a fabulada por Minelvino – estão deslocadas do ciclo de Malazarte. Se João Soldado foi promovido a santo – São João (?) -, Pedro Malazarte tornar-se-á São Pedro, identificação que pareceria absurda se no verbete Pedro Malasartes (p. 445-6), do Dicionário do Folclore Brasileiro, Câmara Cascudo não a registrasse:
O nome de Pedro se associa ao apostolo São Pedro, com anedotário de habilidade imperturbável, nem sempre própria do seu estado e título. Na Itália, França, Espanha, Portugal, São Pedro aparece como simplório, bonachão, mas cheio de manhas e cálculos, vencendo infalivelmente.
Este São Pedro ladino do folclore europeu contrasta com o santo do anedotário brasileiro, teimoso, azarado,por vezes inescrupuloso, mas companheiro inseparável de Jesus, com quem vive às turras. Esse aspecto ambivalente do santo está presente em João Soldado, como foi demonstrando em suas duas aparições na estória. Mas também este futuro São Pedro do livreto de Minelvino, apesar de sua identificação com o personagem velhaco e supostamente imbatível, sucumbe à Morte, que o transportará para o céu num “avião de vento”.
No conto O Baralho mágico, recolhido por Waldemar I. Fernandes , a personagem principal é um pobre homem que, hospedando Jesus e os apóstolos, tem dois pedidos satisfeitos: ser invencível no carteado (Como Malazarte no cordel de Minelvino) e que ninguém que subisse na figueira descesse sem a sua ordem. É o estratagema usado pelo homem para se livrar da Morte, que, não podendo descer da árvore, lhe concede mais cinqüenta anos de troca da liberdade. Manoel D’Almeida Filho adaptou para o cordel a estória do Homem que prendeu a Morte, em que o protagonista, chamado Abraão é apelidado de Ambição. Abraão em hebraico significa “pai de muitos filhos” e a personagem de Almeida, já no inicio do folheto (38 versos) tem quinze filhos, com a mulher já no nono mês de gravidez. Sem encontrar mais um vizinho que não fosse seu compadre, o homem acaba encontrando uma “mulher/ Muita alta e muito forte” a quem propõe que batize o seu filho recém-nascido, o que a mulher, que é na verdade a Morte, aceita. Não é preciso repetir a estória, já narrada por Câmara Cascudo em seu Contos tradicionais, com uma diferença que nesta versão, Ambição consegue prender a Morte numa armadilha por ele preparada, enquanto que na estória de Piracicaba, recolhida por Iglésias, ele o faz por intermédio de um dom concedido por Jesus. Ressalte-se novamente o mito grego de Sísifo, onde este burlão aprisiona a Tânatos, o que provoca a intervenção dos deuses. Após dez anos, eis o quadro descrito por Almeida:
Dez anos eram passados
No mundo ninguém morria,
Ninguém chegava no céu
Jesus fez que não sabia
E mandou um anjo à terra
Pra saber o que havia.
O anjo “aperta” Ambição, que confessa ter aprisionado a Morte, burlando uma lei natural. Para libertá-la, exige que nunca seja morto, no que é atendido por Jesus, que lhe envia “O cartão de garantia”. A Morte, a princípio descrita como “muito alta e muito forte”, depois de dez anos de enxovia, adquiriu as características com que normalmente é representada, mais um motivo etiológico:
Foi como Ambição soltou
A Morte na mesma hora,
Triste, magra e amarela,
Os dentes todos de fora,
Nunca mais lhe chegou carne
Ficou magra até agora.
No conto de Piracicaba, após cinqüenta anos, o homem, “enjoado de viver”, deixa-se vencer pela morte. No folheto de Almeida tal não ocorre e o protagonista é premiado com a imortalidade. Parece um contra-senso, especialmente se for levada em conta a visão de Câmara Cascudo acerca da invencibilidade da Morte. Mais uma vez a sabedoria popular tenta explicar a razão de a Ambição, que na estória é também uma personificação, exercer domínio absoluto sobre a humanidade:
Ambição ficou na terra
Tendo plena liberdade,
Nunca morreu e nem morre,
Vive na sociedade,
Enquanto existir o mundo
Domina a humanidade.
O final lembra as velhas fábulas mitológicas, o desejo e a curiosidade do homem em entender o mundo à sua volta. Sabendo que o poeta de cordel, quando versa um tema tradicional, se apropria de uma história cuja ancianidade desconhece, compreendemos a atemporalidade da literatura popular em verso, tratada na primeira parte deste trabalho. Daí a fidelidade a velhos paradigmas; velhos mas não caducos, como a vitória final da Morte e a derrota do demônio, que na visão popular é destituído de sua ancestral majestade.
A literatura popular em verso, ao adaptar os contos tradicionais, transpôs para o universo do cordel o ciclo do demônio logrado, segundo a classificação de Câmara Cascudo. Diferentemente do Mefistófeles do Fausto, de Goethe, o demônio da novelística popular é invariavelmente ludibriado por aqueles com quem aposta. São exemplos salutares as estórias O Diabo trabalhando no roçado de São Pedro, Ovelho que enganou o Diabo e A mulher que enganou o Diabo. São todos estes folhetos variações sobre o mesmo tema: após assinar o pacto, o demônio realiza, por determinação do pactuante, uma série determinada de tarefas, com relativa facilidade, pois sempre se vale do seu poder sobrenatural. Porém, na última tarefa, a astúcia do ser humano, com quem o Tinhoso firmou o pacto, acaba se sobressaindo; ora é uma cruz no roçado, ora a construção de uma igreja que selam a derrota do anjo maldito pela impossibilidade da aproximação do local ou artefato sagrado.
Há dois romances intitulados A mulher que enganou o diabo. Um de José da Costa Leite e outro de Manoel D’Almeida Filho. Servimo-nos do último, editado pela Luzeiro. Almeida, poeta inspiradíssimo, prolífico e versátil, para explicar a derrota do demônio, anunciada já no título da obra, tece um prólogo onde, a partir da literatura sagrada, estabelece uma convenção transformada em regra: a mulher é mais astuta do que homem:
Muitas mulheres no mundo
Só exibindo beleza
Enganaram muitos homens
Usando nessa proeza
Os olhos jorrando lágrimas
Como as armas da defesa.
Sem falar em muitas que
Enganaram por paixão,
Falamos só em Dalila
Que subjugou Sansão,
Com as tramas diabólicas
Dos engodos da traição.
Almeida, ao fazer tal comparação, sabe bem o que escreve. É dele o excelente A traição de Dalila e a força de Sansão, de que a estrofe acima parece ser uma evocação. Nesta obra, Almeida assim se refere à mulher para justificar que a inteligência, mesmo voltada para propósitos maléficos, é superior à força:
Sansão teve a maior força
Dos homens de nossa vida
Se apaixonou por Dalila
Uma mulher pervertida
Foi a maior traiçoeira
Até hoje conhecida.
Em A mulher que enganou o Diabo, a personagem principal recebe o nome de Maria da Conceição, o que indiretamente a associa à Virgem Maria, embora a associação não vá além disto. Seu marido, Pedro, é um preguiçoso inveterado, e, além de constantemente invocar o Diabo, almejando riqueza fácil, oferece, em troca, a sua alma e também a da esposa. Na ausência do marido, o Diabo aparece à mulher, personificado num negro , como o que desafiou Manuel Riachão na célebre peleja adaptada ao cordel por Leandro Gomes de Barros. A mulher assina o pacto, mas para que tal se concretize, exige a realização de sete tarefas, que, como foi exposto, com exceção da última, são cumpridas, são empecilhos. A argúcia da mulher fica evidente neste trecho, onde ela tenta tranqüilizar o marido, já ciente de que seu chamado foi atendido:
... Eu tenho certeza:
Mesmo sendo o Satanás,
Ele nunca vai fazer
O que nenhum diabo faz;
Assim, vai sair correndo
Para nos deixar em paz.
Dentre os pedidos estão uma casa “com cem mil metros quadrados/ cobertos com um só teto”, uma barragem “vinte léguas rio acima”, com todos os peixes, inclusive o tubarão (!), e a construção de uma cidade “com dez mil casas bem feitas” (note-se a preocupação social do poeta). Finalmente, a última tarefa, com que o demônio é finalmente logrado:
Quero que construa agora
Uma Catedral Católica
Que caiba todos os santos
Da união apostólica
Para ser interpretada
A ciência parabólica.
Com altares para todos
Sendo maior o primeiro
Para celebrar o santo
Sacrifício do Cordeiro -
E na torre da matriz
Quero um bonito cruzeiro.
A evocação do sacrifício de Cristo, que para a teologia católica significou a derrota do anticristo, foi o golpe com que a mulher venceu o adversário. O Diabo, então, vai buscar na história sagrada a justificativa de sua derrota:
Desde o começo do mundo
Que a mulher só faz traição
A que começou foi Eva
Quando atraiçoou Adão,
Seguindo o mesmo caminho,
Dalila enganou Sansão.
A favor da mulher, é preciso dizer que, antes de iludir Adão, ela foi iludida pela Serpente, posteriormente identificada com Satanás, para a consumação do ato de desobediência, que segundo o autor do Gêneses, deu origem ao pecado original e, conseqüentemente, à humanidade. Antes de ser subjugado, há, por parte do Tisnado (o nome que “batiza” o Diabo na presente estória), uma referência maliciosa ao episódio da tentação. Referência que, aliás, em nada se assemelha com a visão popularizada pelo romantismo, a partir do Satã do Paraíso perdido, de Milton, que se apresenta como um herói vencido, mas não domado, lembrando o Prometeu imortalizado por Ésquilo há dois milênios e meio. Eis a referência:
Você vai mesmo em seu corpo
Pois em você tudo é meu,
Mas não pense que me engana
Com a maçã que escondeu;
Lá você tem que me dar
A fruta que Adão comeu.
A resposta da mulher vem no melhor estilo dos arremates dos cantadores nordestinos, um verdadeiro xeque-mate:
Maria disse: Atrevido,
Sua intenção é medonha,
Porém você vai comer
Uma coisa que nem sonha:
A maçã da sua mãe,
Descarado sem vergonha!
O folheto (oito páginas) O velho que enganou o Diabo segue na mesma direção, mais ao invés da malícia feminina, quem se sobressai na disputa com o demônio, mais uma vez humanizado, é um velho, o que sugere que desta vez a experiência foi decisiva. O velho, como é rotina nestas estórias, tem nome de santo, Braz, e, ao contrário do preguiçoso da outra estória, pede ajuda a Deus:
(...)
- Ai meu Deus se eu alcançasse
um descanço em minha vida
que facilmente eu passasse
sem trabalhar alugado
tratando do meu roçado
Ah! seu Deus me ajudasse.
Sem querer, o poeta acaba suscitando uma questão que tem inquietado filosófos, teológos e estudiosos do ocultismo: apesar de solicitar a ajuda divina, estranhamente quem vem em auxílio do velho Braz é o próprio Diabo, que o redator do livro bíblico de Jó inclui entre os filhos de Deus. É visível também, a influência medieval, desde as crenças populares do período até aquelas sistematizadas em tratados teológicos, de que o Diabo é um instrumento de Deus para testar a fidelidade do homem. A chegada do Tinhoso é assim descrita:
Num dia de sexta-feira
O velho estava sentado
Quando foi chegando um negro
De cabelo aguaribado
Para o velho disse assim:
- A tua vida é ruim
vou te fazer melhorado.
A citação da sexta-feira, considerado pelos ocultistas como um dia funesto, não é fortuita. Mas uma vez, o Diabo é identificado como “um negro de cabelo aguaribado”, o que reforçaria a tese de que há preconceitos por parte de determinados poetas populares, embora tanto neste caso como no anterior, o livreto se origina de um conto popular que o poeta adapta para o cordel, sem intencionalidade de suscitar maiores polêmicas . A descrição física torna-se pormenorizada quando o Diabo se prepara para a primeira tarefa e imposta pelo velho: “um cercado / com estaca de primeira/ e com arame farpado”. Proposta esta bem modesta, aliás, se comparada à da primeira estória analisada:
O negro chegou a tarde
Mais preto do que carvão
Com o cabelo assanhado
Com a foice na mão
Disse: - O cercado está feito
Pra tudo precisa jeito
Tem boi que só no sertão.
A segunda tarefa, a construção de um açude, é cumprida sem embaraços: Mais uma característica do Diabo, a expiração ígnea, é ressaltada:
Chegou no dito lugar
Agarrou a ferramenta
Dava pancada no chão
Saindo fogo da venta
Aquele negro infeliz
Ainda tem gente que diz
Que o Diabo não atenta.
A terceira tarefa, diferentemente das anteriores, demora mais tempo para ser concluída, devido ao grau de dificuldade: “cem casas modernas/ para residir doutores” para abrigar os seus “moradores” (agregados?):
O negro com oito dias
Já tinha feito uma praça
Casas modernas, bem feitas
Todas elas com vidraça
O negro muito contente
Porém estava inocente
Que trabalhava de graça.
À medida que o Diabo executava as tarefas, tentava colher do velho o sangue com que selaria o pacto. Este conseguia sempre se desvencilhar até a última tarefa, impossível de ser realizada pelo anjo maldito, pois, como na estória, anterior, evocava o sacríficio com que o seu arquiinimigo redimiu a humanidade:
Disse o velho ao negro:
- Preste atenção a mim
vá amolar a sua foice
e roce aquele capim
que tem dentro do cercado
o negro ficou zangado
achando a coisa ruim.
Porque no dito capim
Tinha uma cruz enfincada
A cruz lá já era antiga
De um mato bem rodeada
E o velho já sabia
Que o Diabo perdia
Por causa da cruz sagrada.
O poeta popular aproveita o medo que o Diabo tem da cruz para expor sua veia picaresca:
O negro se abaixava
Um pouco desconfiado
Pisando devagarinho
Com pescoço estirado
Quando viu a cruz pulou
Do salto que deu quebrou
O que tinha pendurado.
O Diabo, por fim, reconhece a derrota. O autor, no final do folheto, invoca o nome de Deus, como que se precavendo por ter narrado uma estória sobre a sinistra personagem, mesmo que esta tenha sido derrotada em seu objetivo maior: a conquista de uma alma.
O Diabo pode ser vencido, a Morte, não
Câmara Cascudo no intróito aos Contos Tradicionais do Brasil, assim se refere ao ciclo do demônio logrado analisado neste capítulo: “ Todos os contos ou disputas em verso em que o demônio intervem perde a aposta e é derrotado” (, p. 21). Ao contrário, a Morte aparece, na novelística popular, invencível, embora possa ser provisoriamente ludibriada, como no mito grego de Sísifo. Sobre o Ciclo da Morte, escreve ainda mestre Câmara Cascudo:
Nos contos em que aparece o Diabo este perde
infalivelmente. A Morte, ao contrário, vence.
debalde o homem procura enganar,
utilizando todos os recursos da inteligência, o pagamento
fatal da dívida. (Idem, p. 22)
Antônio Teodoro dos Santos teve a ventura de versar, ou seja verter para a literatura de cordel, a estória (história, para os vates populares) de João Soldado , conhecida de muitos estudiosos e dos irmãos Grimm, que a recolheram na Alemanha, há cerca de dois séculos. Há uma versão mais antiga, O Diabo e o Soldado, escrita por Firmino Teixeira do Amaral e publicada pela extinta Editora Guajarina, de Belém do Pará. A versão de Teodoro situa o soldado na Palestina, onde, futuramente, ele irá se encontrar com o próprio Jesus Cristo:
João Soldado se criou
Na terra da Palestina
Ficou órfão logo cedo
Foi bem triste a sua sina
Mas porém foi coroado
Por uma estrela divina.
João, então, resolve “assentar praça”, contudo a sua honestidade impede que faça carreira na polícia; a crítica é sutil e, infelizmente, atual:
O que é certo que João
Na vida não fez carreira
Somente por um motivo
De não pegar na chaleira
Até que saiu da praça
Limpo sem eira nem beira.
Após vinte e quatro anos de bons serviços, João recebe como soldo “uma farda/ quatro vinténs e um pão/ um capacete rasgado/ e um par de botinão”. Voltando para a casa, João tem um encontro que mudará, para sempre, a sua vida: dois mendigos lhe pedem uma esmola e recebem uma parte do pão; por mais três vezes eles aparecerão até que João lhes entregue “o último dinheiro”. Aí há a revelação:
Aqueles dois mendicantes
Eram São Pedro e Jesus
Quando andavam neste mundo
Trazendo a divina luz
Provando os bons corações
Com sua pesada cruz
Em retribuição à boa ação, Jesus se mostra disposto a satisfazer qualquer pedido de João. São Pedro, então, instiga-o a pedir a salvação de sua alma, mas ele acaba fazendo outro pedido:
... Peço ao mestre que me dê
Uma força divinal
De tudo quanto eu mandar
Entre aqui no meu bornal.
O dilema de João Soldado – escolher entre a salvação e a possibilidade de gozo no plano material – está presente em outras adaptações pertencentes ao mesmo ciclo. A título de comparação analisemos algumas delas.
Em Jesus e o homem do Surrão misterioso, de Manoel D’Almeida Filho, há o encontro da personagem principal, apelidado de Moleza, com os dois benfeitores de João Soldado. Almeida assim descreve os dois velhos (note a semelhança com a descrição de Teodoro):
Então aqueles dois velhos
Que falavam com Moleza,
Eram Jesus e São Pedro,
Dentro da sua grandeza,
Que sofriam pela terra
Para ajudar a pobreza.
À pergunta direta de Jesus, “- Quer riqueza ou salvação?”, Moleza não titubeia e responde talqualmente João Soldado:
Quero que neste surrão
Tudo que eu mandar entrar
Entre no mesmo momento
Sem fugir nem recusar,
Seja coisa viva ou morta,
Só saia quando eu mandar.
Já em O ferreiro das três idades, de Natanael de Lima, a personagem principal tem o nome de Pobreza, o que pode ser interpretado como uma personificação ou mesmo uma alegoria, pois a cadela do ferreiro chama-se Miséria. Pobreza, como João Soldado, é contemporâneo de Jesus, que, sabendo do estado de penúria que vivia o ferreiro, vai visitá-lo. Pobreza o hospeda em sua casa, mas, como não possui uma cama sequer, Jesus dorme no chão. No outro dia, respondendo às queixas e pedidos de desculpas do ferreiro, o divino mestre assim se reporta:
... Pobreza,
É triste a tua missão!
Então pede-me três coisas,
Que darei de coração –
Diz-me se queres riqueza,
Vida longa e salvação.
Como os antecessores, Pobreza renega a salvação e a riqueza, mas fará três pedidos que serão cruciais, quando, num futuro embate com o Diabo, conseguirá as três idades a que o título alude. O primeiro pedido:
Pobreza disse: - Eu não quero
Essa tua salvação –
Quero é que quem se sentar
Aqui neste meu pilão
Só possa se levantar
Com minha autorização.
No segundo pedido, ele descarta a riqueza:
- Riqueza também não quero
Que me acostumei pedir –
Quero que naquele pau,
A pessoa que subir
Dele só possa descer
Quando eu manda-lo sair!
Jesus então aconselha-o a pedir mais anos de vida, mas ele reluta novamente:
- Senhor, eu também não quero
Que aumente mais a minha vida –
Quero é que quem penetrar
No meu quarto de dormida
Fique lá preso até quando
Eu der ordem de saída.
Em Jesus, São Pedro e o ferreiro rei dos jogadores, de Manoel Caboclo e Silva, há o mesmo motivo de hospedagem das duas personagens sagradas e o pagamento que, dada a escolha (“ser o rei dos jogadores/ ou ganhar a salvação”), levanta a mesma questão da eterna luta entre o espiritual e o material, o cósmico e o telúrico. O ferreiro, obviamente, preferirá ser o rei dos jogadores e se valerá deste dom para derrotar o Diabo. Pois bem, agora que conhecemos os mesmos motivos – uma dádiva milagrosa – e tipo – o homem que troca a salvação pela possibilidade de se destacar entre os vivos – voltemos a João Soldado.
Após conceder-lhe o dom, Jesus abençoa o soldado e segue para a Galiléia. João, já na Judéia, passa em frente a um hotel (o anacronismo na literatura de cordel é fascinante), “Onde tinha um lombo frito”. É este o primeiro milagre, pois, assim que João o chama, o “lombo” vai parar no bornal. Em seguida, João atrai um grande pão numa “padaria/ dum sovino tubarão”. Para evitar confusões, de acordo com os mores nordestinos, o autor faz questão de explicar que a atitude do soldado nada tinha de ilícita:
João fartou-se de comer
no bornal misterioso
porém não era roubando
é porque foi caridoso
e tudo isso eram obras
do grande Deus poderoso.
Em seguida, João chega a uma fazenda “dum rico bem pabulento” onde pede aposento, o que lhe é negado. Contudo, o rico lhe aponta um velho sobrado assombrado por um fantasma. Lá, ele deparará com todo o tipo de visão. Por fim, a alma condenada aparece e começa a desmontar-se, sempre se dirigindo ao soldado: “Seu João, eu quero cair!”, despencando todas as partes do corpo, que depois se reúnem. Trata-se de uma alma penada que, graças à coragem de João Soldado, é salva do inferno. Há versões orais desta estória em que não há nenhuma alma penada mas uma legião de diabos a quem João aprisiona no saco e espanca impiedosamente. Na adaptação de Teodoro, a alma, para purificar-se de seu pecado, a avareza, presenteia João com três caixões de moedas de ouro, enterrados na casa. No Nordeste, são muito comuns as estórias de tesouros oferecidos aos vivos por almas penadas. O mesmo motivo se repete em outras obras de cordel como O príncipe João Sem-Medo e a princesa da Ilha dos Diamantes, de Francisco Sales de Areda, e O gigante Quebra-osso e o Castelo mal-assombrado, que Minelvino Francisco Silva adaptou de um conto popular em que, em algumas versões, o Bocage folclórico aparece como herói.
Por ter resgatado a alma das trevas, João enfrentará a ira de Lúcifer, que envia um subalterno, o “cão” Permanente, disfarçado em “chefe de cabaré” (outro anacronismo) para iludir João Soldado. Quando este faz o sinal da cruz o “cão” se denuncia e João o convida a entrar no bornal. E, assim que ele entra, João...
Pegou a mão de pilão
Mandou no cabra sem pena
O cão velho estrebuchava
Igual a gota serena
João Soldado o machucou
Só Jesus viu esta cena.
Quando o cão é solto, ainda leva outra surra no Inferno. Agora é Lúcifer, o próprio, quem vai buscar o soldado. Há um embate verbal interessante onde o Diabo se reafirma príncipe deste mundo, respondendo a João, que se diz “filho de Adão/ Imagem do Criador!...”.
Ora, disse Lúcifer
Adão caiu de bandão
Foi iludido e comeu
O fruto da perdição
Quem tem alma, carne e osso
Vive preso em minha mão...
Quando João evoca Jesus como guia, a resposta do Diabo vem salpicada de fina ironia:
... É bem errado o teu guia;
Se todos o emitassem
O mundo não existia
Não havendo cruzamento
Também gente não havia...
Trava-se uma luta onde João “arrancou o chifre” do Diabo. Depois, com outra espadada, “arrancou o tornozelo”; esta cena explica, à maneira dos contos etiológicos, o porquê de o Demônio ser coxo. Após infligir uma queda ao oponente “que quasi quebra o focinho”, o Diabo, “o chefe de todo cão”, é obrigado a entrar no bornal, sendo espancado com um “cacete/ dos que se bate feijão”. A tentativa de “suborno”, visando à liberdade, é hilária. Disse o Diabo:
... João, me solta
Que eu te ensino uma maneira
De você ficar querido
De toda moça solteira
E se quizer as casadas
Elas caem quasi em cegueira.
Ensino como se ganha
Dinheiro na loteria;
Como se corta baralho;
Como se atrai freguesia;
Ensino curar doentes
Toda espécie de magia.
Na literatura de cordel, às vezes, o Diabo se porta como o adversário do Altíssimo mas no presente caso, ele é apenas um charlatão de feira. João, obviamente, recusa as ofertas e redobra a pisa, só libertando o demônio mediante intervenção divina, atendendo ao pedido de um anjo “figurado numa ave”.
O autor prossegue narrando a estória à maneira dos autos medievais. João está com setenta anos, embora não conheça doença. Porém o inevitável, na caracterização da Morte, aparece . Faz-se necessário descrever este encontro, pois a narração ratifica a assertiva de Câmara Cascudo, ao estabelecer a diferença entre a Morte e o Diabo na psicologia popular. João Soldado, percebendo a proximidade da Morte,
... Sentiu um pavor
Sentiu o mundo rodando
E o céu de toda cor
Viu anjos lá na altura
Cantando ao pai criador.
A descrição da Morte não podia ser mais perfeita; apesar de personificada como uma entidade feminina, remete a Hell , a deusa dos mortos na mitologia nórdica, e a Tânatos, divindade masculina da Morte na mitologia grega:
Viu uma velha sizuda
Com grande foice no ombro
O nariz era um serrote
Cada olho era um rombo
Muito magra esfarrapada
E a boca era um assombro.
Na seqüência, uma imagem digna do Apocalipse; o cavaleiro pálido:
Tinha azas sobre as costas
Os dentes bem volteados
Riscava o céu com as unhas
Fazia relampejados
Pegava o sol e a lua
Tragava de dois bocados.
A reação de João Soldado mostra-se patética:
João quasi fica nervoso
Nesse momento atual
Logo apressou-se rezando
Fazendo o pelo sinal
Disse ele: Minha velha
Entre aqui no meu bornal.
Inapelavelmente, a Morte o conduz ao Inferno, aonde ele chega fazendo estragos, ferindo “dois irmãos”, que guardavam o local. Lúcifer, logicamente, não o acolhe e a “santa mulher” o escolta ao Purgatório, que ele confunde com o inferno. Lá “Vomitou toda a cachaça/ Inguiou leite materno/ Queimou as cascas dos olhos/ Por ver os ‘usos moderno’.” Só depois de purgar os pecados é que a Morte deixa-o no céu, na fila das almas. Ao tentar cortar a fila João é agredido por Sansão, que descontou nele a raiva que tinha de Dalila e é advertido por São Gabriel, “que ali era o regente”. Logo após surgem dois santos, cujas atribuições pré –cristãs o autor faz questão de descrever:
Santa Bárbara já zangada
Rosnou no peito um trovão
Lá se vinha São Miguel
Com a balança na mão.
Em Anúbis , Câmara Cascudo discute a sobrevivência de crenças originárias no antigo Egito, como a Psicostasia, a pesagem da alma, realizada no tribunal presidido por Osíris, por Anúbis o deus psicopompo , ancestral do São Miguel do catolicismo popular. Não é por acaso que Teodoro insere estas figuras no cenário pos mortem por onde vagueia a alma de João Soldado.
No céu, João reencontra São Pedro, que o impede de entrar na glória sem o julgamento. Estranhamente, o santo que acompanhava Jesus quando este lhe concedeu a dádiva milagrosa, não o reconhece e o incita a provar se realmente o tal bornal era milagroso:
Abriu João o seu bornal
E mandou São Pedro entrar
Ele dentro da capanga
O recurso foi gritar
Dizendo: - Me solta João
Pois é certo o teu lugar!
A recompensa não tarda:
Ele alegre desatou
O seu bendito bornal;
São Pedro lhe deu o trono
No reino celestial
João Soldado hoje é santo
Foi grande o seu ideal.
Partindo do ponto de vista do poeta que versa a estória popular, é perceptível a existência de um esquema que estabelece não apenas a oposição entre dois mundos – o espiritual e o material, como foi dito – mas também entre a virtude e o vício, sendo o último finalmente derrotado. O que pode gerar certa confusão, pois os autores de cordel, independentemente de gênero ou tema que abracem, sempre pontuam as suas narrações com comentários que explicam como ao final das estórias, os bons são recompensados e os maus punidos. João Soldado, assim, não é uma estória de exemplo, embora haja certa identificação temática: João Soldado é recompensado por Jesus por sua caridade; com o dom recebido, se apossa do pão “dum sovino tubarão” ; depois, graças à sua coragem, liberta uma alma penada, cujo crime em vida foi a avareza. E por aí vai. O triunfo da virtude cristã sobre a avareza, um dos sete pecados capitais, é ressaltado nos dois últimos versos da penúltima estrofe (“Ninguém perde quando dá/ Do pouco que tem na mão”.) e no acróstico final (invertido):
Ornando a vida de glória
Imitemos João Soldado
Nas alturas está Deus
Olhando pra todo lado
Tomba o casquinha avarento,
Navega em mar opulento
Aquele que é denodado.
Os irmãos Grimm recolheram muitos contos em que a bondade do herói é recompensada por anões e outros seres do folclore europeu. João Soldado seria, portanto, um conto de convergência, amalgamando tradições pagãs e cristãs, sendo o motivo da recompensa também comum nas estórias árabes. O motivo da punição pela falta de hospitalidade está presente na lenda grega de Licaon, transformado em lobo por ter negado abrigo a Zeus, travestido em peregrino. Dos irmãos Grimm, temos o conto Folgazão , em que a dádiva provém de São Pedro, disfarçado em mendigo. Folgazão é igualmente soldado e, da mesma forma recebe como soldo “um pão e quatro vinténs” que divide com o santo, que será seu companheiro de viagem e a quem burlará com a mochila mágica, quando tentar entrar no céu.
Variantes no Ciclo dos anti-heróis
Em Tradições Populares, no capítulo sobre Pedro Malazarte, Amadeu Amaral cita, no ciclo deste anti-herói, uma estória onde o famoso burlão, trabalhando como ferreiro, encontra São Pedro e Jesus, que lhe pedem que ferre o seu burrico, concedendo-lhe por isso três graças: que quem sentasse em sua macieira não se levantasse; quem entrasse em sua bolsa de couro não pudesse sair e, por último, que ninguém além dele pudesse pegar a sua carapuça. Pedro se vale do mesmo expediente de João Soldado para aprisionar e castigar Satanás, a quem havia prometido a alma. O burlão consegue entrar no céu atirando a carapuça, que só ele podia apanhar, ludibriando São Pedro.
O poeta popular baiano Minelvino Francisco Silva promoveu O Encontro de Cancão de Fogo com Pedro Malazarte, onde este último, após ganhar no carteado muitas almas de Lucifer, as conduz para o céu, onde São Miguel era porteiro(?). Quando este santo facilita, Pedro senta no seu trono e faz lembrar a Jesus, a quem havia encontrado e hospedado na terra, que lhe pedira para que “no lugar/ Que ele calmo sentasse/ Ninguém mandar levantar”. Jesus se lembra da promessa e São Miguel, a partir deste momento, deixará de ser porteiro:
Malazarte virou santo,
Deixou de ser trapaceiro
Na vida de jogador
Foi um grande aventureiro;
São Miguel foi pesar almas
“São” Pedro foi ser chaveiro.
Aparentemente estas duas estórias – a citada por Amadeu Amaral e a fabulada por Minelvino – estão deslocadas do ciclo de Malazarte. Se João Soldado foi promovido a santo – São João (?) -, Pedro Malazarte tornar-se-á São Pedro, identificação que pareceria absurda se no verbete Pedro Malasartes (p. 445-6), do Dicionário do Folclore Brasileiro, Câmara Cascudo não a registrasse:
O nome de Pedro se associa ao apostolo São Pedro, com anedotário de habilidade imperturbável, nem sempre própria do seu estado e título. Na Itália, França, Espanha, Portugal, São Pedro aparece como simplório, bonachão, mas cheio de manhas e cálculos, vencendo infalivelmente.
Este São Pedro ladino do folclore europeu contrasta com o santo do anedotário brasileiro, teimoso, azarado,por vezes inescrupuloso, mas companheiro inseparável de Jesus, com quem vive às turras. Esse aspecto ambivalente do santo está presente em João Soldado, como foi demonstrando em suas duas aparições na estória. Mas também este futuro São Pedro do livreto de Minelvino, apesar de sua identificação com o personagem velhaco e supostamente imbatível, sucumbe à Morte, que o transportará para o céu num “avião de vento”.
No conto O Baralho mágico, recolhido por Waldemar I. Fernandes , a personagem principal é um pobre homem que, hospedando Jesus e os apóstolos, tem dois pedidos satisfeitos: ser invencível no carteado (Como Malazarte no cordel de Minelvino) e que ninguém que subisse na figueira descesse sem a sua ordem. É o estratagema usado pelo homem para se livrar da Morte, que, não podendo descer da árvore, lhe concede mais cinqüenta anos de troca da liberdade. Manoel D’Almeida Filho adaptou para o cordel a estória do Homem que prendeu a Morte, em que o protagonista, chamado Abraão é apelidado de Ambição. Abraão em hebraico significa “pai de muitos filhos” e a personagem de Almeida, já no inicio do folheto (38 versos) tem quinze filhos, com a mulher já no nono mês de gravidez. Sem encontrar mais um vizinho que não fosse seu compadre, o homem acaba encontrando uma “mulher/ Muita alta e muito forte” a quem propõe que batize o seu filho recém-nascido, o que a mulher, que é na verdade a Morte, aceita. Não é preciso repetir a estória, já narrada por Câmara Cascudo em seu Contos tradicionais, com uma diferença que nesta versão, Ambição consegue prender a Morte numa armadilha por ele preparada, enquanto que na estória de Piracicaba, recolhida por Iglésias, ele o faz por intermédio de um dom concedido por Jesus. Ressalte-se novamente o mito grego de Sísifo, onde este burlão aprisiona a Tânatos, o que provoca a intervenção dos deuses. Após dez anos, eis o quadro descrito por Almeida:
Dez anos eram passados
No mundo ninguém morria,
Ninguém chegava no céu
Jesus fez que não sabia
E mandou um anjo à terra
Pra saber o que havia.
O anjo “aperta” Ambição, que confessa ter aprisionado a Morte, burlando uma lei natural. Para libertá-la, exige que nunca seja morto, no que é atendido por Jesus, que lhe envia “O cartão de garantia”. A Morte, a princípio descrita como “muito alta e muito forte”, depois de dez anos de enxovia, adquiriu as características com que normalmente é representada, mais um motivo etiológico:
Foi como Ambição soltou
A Morte na mesma hora,
Triste, magra e amarela,
Os dentes todos de fora,
Nunca mais lhe chegou carne
Ficou magra até agora.
No conto de Piracicaba, após cinqüenta anos, o homem, “enjoado de viver”, deixa-se vencer pela morte. No folheto de Almeida tal não ocorre e o protagonista é premiado com a imortalidade. Parece um contra-senso, especialmente se for levada em conta a visão de Câmara Cascudo acerca da invencibilidade da Morte. Mais uma vez a sabedoria popular tenta explicar a razão de a Ambição, que na estória é também uma personificação, exercer domínio absoluto sobre a humanidade:
Ambição ficou na terra
Tendo plena liberdade,
Nunca morreu e nem morre,
Vive na sociedade,
Enquanto existir o mundo
Domina a humanidade.
O final lembra as velhas fábulas mitológicas, o desejo e a curiosidade do homem em entender o mundo à sua volta. Sabendo que o poeta de cordel, quando versa um tema tradicional, se apropria de uma história cuja ancianidade desconhece, compreendemos a atemporalidade da literatura popular em verso, tratada na primeira parte deste trabalho. Daí a fidelidade a velhos paradigmas; velhos mas não caducos, como a vitória final da Morte e a derrota do demônio, que na visão popular é destituído de sua ancestral majestade.
MARCO HAURÉLIO, poeta popular, é selecionador de textos da Editora Luzeiro (www.editoraluzeiro.com.br).
Contato: marcohaurelio@hotmail.com
06/07/2006
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Usina de Letras
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