Discurso de Lula da Silva (excerto)

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quarta-feira, 12 de março de 2008

Rogério Ribeiro por ele próprio - É SÓ INQUIETAÇÃO

12.10.07


ROGÉRIO RIBEIRO



©opyright: sandra rocha [www.kameraphoto.com]

Ilustrou livros de Namora, Redol, Manuel Alegre, e do camarada dele Manuel Tiago. Ilustrou mesmo quando não lhe pediam, só porque sim, só porque a história que eles contavam era também a dele, só porque o risco era inadiável. Viajou, com e sem bolsas de viagens. Foi, também por isso, por causa desse desejo de mundo inteiro, perseguido pela Pide.
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Assinou os painéis cerâmicos para a estação de comboios de Sete Rios e para a estação de metro Avenida, em Lisboa, e também aquele para a estação de metro de Santa Lucia, em Santiago do Chile. Participou activamente na criação de museus e galerias de arte. Está representado nas colecções de vários museus nacionais e internacionais, e naquelas de inúmeras instituições e outras tantas colecções particulares.
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Membro fundador do Movimento Democrático dos Artistas Plásticos (1974), andou anos a pensar sobre a função social dos artistas. E sobre a geografia da arte contemporânea. E sobre a arte pública. E sobre o ensino artístico. E sobre tudo isso andou pelo país e pelo mundo a falar. E foi professor. E gosta quase tanto de Literatura como de Pintura. E embora se diga reentristecido, foi com um homem inquieto que conversei. Rogério Ribeiro, pintor.
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Sarah Adamopoulos | Fotografias de Sandra Rocha [Kameraphoto]
[Entrevista realizada em Março de 2004]

É SÓ INQUIETAÇÃO
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Eu vivo tristíssimo outra vez, penso que já fiz o ciclo da Primavera. Agora andam para aí todos a falar nos 30 anos do 25 de Abril, e eu fico danado porque ninguém me fala de fazer o que ainda não foi feito. Há aqui uma coisa que não acontece, é trágico isto. Quem não fez a experiência de viver uns tempos lá fora, ou de conviver com intelectuais de outros países, ou de visitar faculdades, não pode compreender. Estas circunstâncias recentes aqui ao lado em Espanha, isto não é espanhol, é internacional. Há aqui uma falcatrua muito grande.
Às vezes ouço falar na coerência, e falam-me da incoerência como se fosse uma coisa muito normal. Ora, não haver coerência é esquisito, é que às vezes a gente fala de coisas que são elementares como se fossem muito discutíveis. A amizade política, por exemplo, penso que é uma amizade profunda, porque é sincera. Quando há uma amizade que contém risco – eu sei quem você é e você sabe quem eu sou, se eu falo você vai preso, e o contrário também é verdade – e em que a confiança é grande, não pode ficar por aí, tem de criar outras raízes, outro conforto, e esses afectos são transformadores. Agora temos os comissários, é mais uma nova figura, certamente devida a esta crise do emprego. Um pintor sem comissário, o que é que faz coitado? Não tem pai, coitado. Os museus não estão mortos, quem está morto é quem está a tomar conta deles. A pintura portuguesa não está morta. Mas de repente só se vêem estádios! E a alma que se põe no Euro 2004, se se pusesse na alfabetização do país, era uma maravilha. Seja como for, já há muita coisa que não vai ser feita por causa do Euro 2004. E os políticos têm que viver com o medo das bombas, não há saída, já está feito, faz parte da despesa do Estado, já todos contribuímos.
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Ser um artista plástico durante o Antigo Regime | Fiz a António Arroio, e depois fui para as Belas Artes. Havia um determinado contexto, é muito importante o contexto. Quando nascemos não sabemos se vamos por aqui ou por ali, conheci-a a si [a Sarah, que escreve] ou conheci-a a si [a Sandra, que fotografa], quer dizer, há momentos que são decisivos mas nós só lhes tomamos o peso anos mais tarde, só anos mais tarde é que podemos pensar nas consequências desses acasos. Há uma contingência que no meu caso eu considero muito importante: o facto do meu pai e da minha mãe não estarem em Lisboa, o facto de eu ter estado entregue a mim, a estudar sozinho. Isso deu-me uma liberdade com uma outra dimensão, eu cheguei a viver num quarto ali na Rua dos Fanqueiros porque estava mais perto da Baixa, mais perto do Café Chiado, mais perto das pessoas que passei a conhecer. Através do Alves Redol conheci o Mário Dionísio, através do Mário Dionísio conheci o Pomar.
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O importante nas escolas são os colegas, são as pessoas que encontramos, não são os professores. Na altura havia um professor de Geometria que fazia da cadeira dele um potentado onde chumbava toda a gente, fazia questão de chumbar as pessoas, de uma forma ridícula, maldosa, pequenina. Nós deixávamos de lá ir, às aulas dele, porque ele fazia daquele magro conhecimento, uma torre. De resto, a [Geometria] Descritiva foi sempre naquela escola a cadeira difícil, porque os artistas são uns desgraçados que pintam e a quem basta a 4ª classe, uns rapazes acéfalos com jeito para o desenho. Portanto, essa é talvez uma primeira desgraça daquela escola, um primeiro bloco de cimento que parte porque não serve.
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Depois tive um professor de Pintura que era uma simpatia, que era o pintor Varela Aldemira, que chegou aliás a escrever uns livros sobre a Composição. Mas esse professor sentava-se na aula, abria o Diário de Notícias, que na altura era aquela folha grande, e lia o jornal enquanto a gente estava ali a pintar um modelo ou coisa que o valha. Quando chegávamos ao Egipto era uma sorte, depois de passar aquelas mesopotâmias, o Egipto era o mais moderno que se arranjava. Era uma coisa um bocado surreal, aquela escola. Quando fui para a António Arroio para entrar para a Escola de Belas Artes tive um professor que foi uma sorte grande que me aconteceu: o Mestre Abel Manta. Um dia apareci numa aula dele com uma folhinha de papel Ingres e ele perguntou-me se eu era rico, e depois mandou-me ir comprar papel de cenário. Disse-me então que desenhasse aquele casaco que está ali atrás da porta. Essa iniciação – eu começo a desenhar o casaco atrás da porta, ele apaga aquilo com a mão, limpa o carvão todo, desenha por cima, e depois pede-me para desenhar outra vez – foi fabulosa. E de facto o ensino é isto, é nós exercermos treinos, é aprender a ver, e a registar. Não é coleccionar. Contrariamente a isto, vou para a Escola de Belas Artes e conheço o Leopoldo de Almeida.
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No exame de admissão à escola, tive o José Dias Coelho. Havia três estátuas, o resto estava tudo partido. Nós sabíamos que só saía uma das três, treinávamos as três, de vários ângulos, e pronto. Era assim uma admissão um bocado parca.
Havia um companheirismo forte. Andava por lá o Sá Nogueira, o Querubim Lapa, o João Vieira, toda essa geração que hoje está sossegadamente instalada, eram esses que agitavam aquela escola. O porteiro era da Pide, era uma maçã que tinha vindo das Beiras e que apodreceu ali na porta. Era um tipo triste, um tipo que entristeceu ali sentado. Era um informador. Havia uns boletins na escola que referem ‘tumultos sem grande importância e alguns agitadores’.
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Um dia fui fazer umas provas de admissão para ingressar no Ensino, e fui fazer a prova de desenho à António Arroio. Esta é uma história um bocado vaidosa. Bem, o Lino António chamou-me e perguntou-me se eu queria mesmo ir dar aulas. Eu disse-lhe que não tinha outra saída. E no ano seguinte fui ensinar para a António Arroio. Só que a Pide já andava em cima de mim e só lá consegui estar um ano. Ele aguentou-me um ano, a mim como a outros colegas. Acho que era uma figura muito interessante, alguém que fazia um esforço muito grande, e a verdade é que os meninos da António Arroio, quando chegavam às Belas Artes, eram mal recebidos porque sabiam demais, porque estavam muito mais bem preparados do que os outros.
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A Pide andava atrás de mim porque eu tinha ido ao Festival da Juventude de Moscovo. As pessoas que queriam ir ao Festival iam primeiro para Paris. E eles começavam a prender a malta que queria ir para Paris. Estamos nos anos 50. Bem, eu tinha meios para poder ir sem ser pago por uma organização subversiva. A Pide distinguia entre os intelectuais e os operários, claro, e largaram-me, mas foi o suficiente para ficar com uma ficha. Estive 12 anos sem ensinar. Só depois de várias propostas de colegas meus a pedir para eu entrar para as Belas Artes como professor, só na altura do Marcelo Caetano é que consegui. O regime era surreal. Tudo isto era idiota, era maricas. Anos depois dessa viagem ainda me retinham para interrogatório, com as perguntas mais ridículas. Uma vez fui a Sevilha com o Alves Redol – que ele sim, tinha uma verdadeira actividade política -, e ele teve de ficar sentado na sala de espera enquanto eu estava a ser inspeccionado.
A ligação às palavras | Comecei com o Fernando Namora, que ilustrei. A minha primeira exposição foi com ele. Para mim, como espectador, a literatura é um mundo tão importante como é a pintura. Eu gosto muito de escrever, a ligação com as palavras é uma ligação muito desejada, e ler é uma coisa impressionante, que proporciona alegria, que ensina uma quantidade impressionante de coisas. Eu sempre ilustrei. Mesmo quando não me pediam para ilustrar, eu ilustrava à mesma. O “Até Amanhã Camaradas”, por exemplo, ninguém me pediu. Rigorosamente ninguém me pediu. Aquilo corresponde a muita coisa da minha própria experiência, corresponde a uma história que não se sabia, que muita gente não conhecia. E, portanto, aqueles desenhos todos apeteceram-me muito. Há sempre uma grande questão: a da pintura ser ou não ilustração, a de ultrapassar a ilustração, mas eu penso que são pequenos pecados que a pintura resolve. O retrato, por exemplo, também é uma ilustração. O Velasquez quando faz “As Meninas” não estava a pensar se a menina era bonita ou feia, e fez uma grande pintura e rebentou com o retrato todo, a pintura tem essa força. Penso que quando nos impomos a ideia de ter de pintar de uma forma que não seja ilustrativa, corremos o risco de esvaziar a própria ideia. O Namora, o Carlos de Oliveira, o Redol, conheci-os a todos.
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O Redol dizia-me épá senta-te aí, vou-te ler isto, e lia-me bocados de livros que estava a fazer, e às vezes penso que ele precisava de ler com alguém sentado, e eu ficava deliciado. Era ele a ler e ele a contar o que estava a ler, era o espectáculo dele a ler, era uma coisa muito visual, ele tinha uma grande capacidade de comunicação, contava muito bem, e essa forma de narrar era uma maravilha.
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A leitura sempre me acompanhou. Mas de há uns anos para cá comecei sobretudo a ler na Finlândia. A disponibilidade que eu consigo para ler acontece-me lá, na Finlândia. Consigo ler, consigo ficar com as coisas que leio, consigo emocionar-me com o que leio, consigo estar feliz por ler. Aqui quase não leio. Aqui tenho uma vida ensarilhada. Agora você vai ficar cheia de inveja, mas olhe: lá [na Finlândia] acordo no meio da floresta, acordo pelas 7 e meia, oito horas, tomo o pequeno-almoço e depois até às 10 sento-me cá fora a ler. Agora li o Garcia Márquez. Depois comprei o mapa da Colômbia, andei com ele a dar aquelas voltas todas que ele conta, aquele homem é espantoso. Por vezes não é tanto o assunto, é a maneira como se conta.
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Sim, talvez antigamente a leitura ajudasse ainda mais a conquistar esse espaço de liberdade. Mas eu não reflectia sobre isso, quando eu estava a passar para uma coisa mais abstracta em detrimento do neo-realismo, eu fazia-o porque precisava de o fazer, por circunstâncias que não eram deliberadas. Agora é que eu penso que isso correspondeu a pensamentos sobre os quais não reflecti, antes, e sobretudo, actuei.
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Subir a Avenida com o José Gomes Ferreira, era qualquer coisa de espantoso. Nós éramos pequenitos, andávamos ao lado dele, ele é que era o homem. E depois ele ficava na tertúlia do Ferreira de Castro, e começavam na conversa, e eu ficava para ali esquecido, mas aquilo para nós era de facto precioso, e quando digo precioso é difícil transmitir até que ponto era efectivamente precioso, eu não consigo explicar isto a um jovem de 17 anos. Enfim, eu percebo que isto não é prato que se sirva aos outros.
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Sobre “O risco inadiável”: isso foi um texto que eu escrevi para o Lagoa Henriques, e aliás essa frase é dele. Usei-a como uma metáfora.
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Há de facto na literatura zonas de liberdade. Penso que a gente encontra sempre parceiros, em toda a parte. E essa aproximação ajuda. A arte facilita, embora deva dizer que é mais difícil reconhecer-me na pintura de outros. A literatura traz-me, contém-me de uma forma mais vasta.
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A arte contemporânea | Sim, a arte contemporânea interessa-me, embora haja uma palavra de que eu gosto muito e que eu penso que está muito ausente da arte contemporânea: a paixão. Há um lado muito desapaixonado. Eu gosto mais de ver os quadros, ou as instalações, ou as exposições, o que for, explicados não os vendo. Os conteúdos explicados não correspondem àquilo que depois vou ver, que muitas vezes não me encanta. Felizmente, isso não é verdade em tudo.
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Há um grande pintor moderno, que não é contemporâneo, mas que eu admiro muito e que revejo constantemente, que é para mim uma referência importante do Impressionismo: o Bonnard. Tenho a imagem dele a viver num vestíbulo da casa dele e de vez em quando olhava para a casa de jantar ou olhava para a cozinha e ia pintando, e depois encontrava a mulher na casa de banho, e depois a tia a comer, e tudo isto ele ia pintando. Como é que se faz uma obra tão importante, sentado num vestíbulo a olhar para a casa?
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Gosto também muito de um homem que é o Kieffer, gosto nele da desdimensão, há uma monumentalidade que é perversa, muito agitada, muito forte, é uma pintura da qual eu me sinto muito perto, perto por gosto e perto por desejo. Depois há a filha do Wirkala, o designer, a filha dele é uma finlandesa que faz umas instalações espantosas.
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Há um homem cujo trabalho eu tenho acompanhado e que é o Pedro Cabrita Reis. Lembro-me dele na escola, ainda estava tudo muito saltitão na cabeça dele, mas já na altura ele era corajoso, era forte. Ele tem um discurso inteligente, que não é empolado, é o discurso da procura da beleza, do encontro com as coisas, de uma certa saudade dos materiais, de os puxar até si, de ser um transformador, é um discurso clássico e ele consegue agir de uma forma e com uma violência contemporânea. A arte contemporânea conseguiu quebrar com alguns compromissos que havia do ponto de vista formal, conseguiu essa liberdade, e penso que o Croft tem também coisas muito bonitas, muito interessantes do ponto de vista artístico, invenções extraordinárias, jogando com o peso, com os espelhos, enfim, acho que é uma construção muito interessante. E tenho acompanhado evidentemente o Pomar, e acho que está a ser maltratado, é um pintor de tela, um pintor que continua a pintar, um pintor apaixonado, inquieto, sempre a discutir-se a si próprio.
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E depois há um homem que é um grande amigo meu e por quem eu tenho grande respeito, que é o Jorge Pinheiro. É um percurso muito raro, um homem de uma grande exigência, um homem extremamente reflectido. Eu vou para um quadro e a tela está branca, e sei mais ou menos, mas se não for aquilo que sei será outra coisa, e começo a trabalhar e a conversa vai crescendo. Não planifico. O Jorge não, o Jorge pensa e executa um quadro de uma forma muito rigorosa, com um distanciamento notável.
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Dor instalada que a morte não mata | Há coisas que não se compreendem, que são inaceitáveis. Que as escolas não funcionem, que os museus não abram, que tenhamos um museu do Chiado com o século XIX todo guardado, que a polícia esteja ali instalada – que a polícia está ali instalada desde que eu entrei para a escola de Belas Artes! Como é que é possível, no centro de Lisboa, de que toda a gente carece, esteja ainda hoje instalada a polícia? Não sei como é que se quebram essas heranças e essas redes de interesses, não tenho receitas mas tenho pena. Se me perguntasse isso em 1954 eu se calhar tinha uma resposta. Hoje não tenho. As alegrias encontram-se nas pequenas coisas e lá vamos arranjando com que nos encantar. Estou a pintar sobre um tema a que chamei ‘a morte não mata a dor’.
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Eu penso que hoje, mais do que a morte, a dor se instalou em nós. Há uma dor instalada que a morte não mata. Penso que é uma dor composta, porque é uma dor que também tem ódio. A Palestina, por exemplo, a gente liga a televisão e só vê trapos com gente morta lá dentro, parece que estamos a brincar num bairro da lata com fisgas, ora mata este ora mata aquele. E uma situação internacional caótica. Isto que aconteceu em Madrid foi espantoso do ponto de vista da clarividência daquela gente. Foi tornar evidente a mentira, que é uma coisa rara na história contemporânea, foi uma lucidez qualquer que deu nalguém ou nalguéns, e que se pegou.
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Você quer coisa mais ridícula do que aquele senhor meio-mulato americano a explicar onde é que estavam naqueles mapas as armas de destruição massiça? E estavam os ministros todos, estavam as Nações Unidas, os países todos sentados, e nós em casa ríamos e eles não se riam!
Enfim, há apesar de tudo momentos heróicos, é uma heroicidade já transferida, mas a Palestina é um povo heróico, não consigo pensar doutra forma. Eu sei que o pior momento que passei não foi ser preso, foi estar à espera de ser preso, eles sentados à minha porta todos os dias, durante seis meses, e eu quase que já cumprimentava o pide que estava ali, e sentia-me vigiado, perseguido em permanência. Imagino o que não será ter filhos e saber que é assim, e viver no meio daquele terror, e ter medo de entrar no carro.
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Evidentemente que o problema das cadeias de interesses é precisamente isso que me diz, a mediocridade. A escola de Belas Artes passou a faculdade mas não passou pela Universidade, passou por decreto, não teve a aprendizagem de o ser, ela era uma escola de patamar intermédio, não era uma escola superior. De repente passou a ser uma faculdade, e todos comprámos um casaco e uma gravata e a partir daí somos doutores e a gente agora sabe muito, muitíssimo. A carreira académica transformou-se, e então vamos a isto: mestrados, doutoramentos, agregações, tudo o que seja preciso e possível para ser um dia catedrático. Importante é a cátedra, não o conhecimento.
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Quanto a mim, a escola está esvaziada de sentido, encheram-na de uma carga teórica terrível, tudo para que a Universidade nos recebesse. Os alunos hoje já sabem o que querem, já sabem o que vão lá fazer, portanto isto é um trânsito e apenas isso. Quem é que estuda os pintores de hoje? Ninguém. Estudam a Angelina que fez uma exposição na galeria não sei das quantas mas não estudam a pintura recente.
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A Raquel Henriques da Silva fez um trabalho extraordinário, sobre o Silva Porto, ou sobre o Botelho, fê-lo com um distanciamento e um grande conhecimento das coisas. Ela é uma mulher muito inteligente, que é capaz de descrever a pintura de uma forma belíssima e é essa adesão àquilo que se está a escrever que eu julgo que se perdeu. Acho que ninguém pensa nas crianças, nos que aí vêm. Há muito mais escolas, muitas mais galerias, o país está diferente, mas a expectativa é que era maior.
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Na política não é só uma questão de seriedade ou de falta dela, é uma questão de oportunismo, é uma pessoa pensar ‘estou no lugar, agora aproveito, não tenho mais tempo’, ou é agora ou talvez nunca. Eles sabem que estão ali 4 anos, e se aguentam os 4 anos devem fazer o que devem fazer, e se fizerem para além disso o que querem fazer, tanto melhor. Ou seja, nós transformámos um processo democrático numa coisa terrível. Como é que é possível que cada ministro da Educação pretenda mudar o sistema de ensino?
A arte pública | Penso que Barcelona é um bom exemplo disso. Em Almada estão a fazer um inventário da arte pública da cidade e há aqui uma ideia que é muito rica e eu traduzo-a desta forma: a arte pública é tudo aquilo que não sendo preciso contribui para o enriquecimento cultural do espaço urbano, do espaço de todos. Pode ser um banco de jardim, pode ser uma peça de arte, uma árvore bem colocada, um recanto que se organizou como deve ser. Usando materiais com capacidade para existir no espaço, ser apelativo, ser agradável para as pessoas, criar um rés-do-chão nas cidades por onde se possa passear. Em Portugal é calamitoso, o que se passa a esse nível. Vai-se a Évora, e existe isso, embora não tenhamos sido nós a fazê-la. Limitámo-nos a conservar as pedras, a limpá-las, a mantê-las. E ainda bem. Vai-se a Beja já não existe, e se se vai para o Algarve não há nada. Por isso, quando se fala em arte pública para Portugal, só se for subterrânea, um espaço para andar por baixo. Quando penso em arte pública para este país penso no metro, nos painéis de cerâmica, nos objectos escultóricos. A arte pública deve ter como intenção elevar o nível cultural dos espaços. O espaço colectivo devia ter regulamentos, obrigações da parte de quem constrói, porque andamos aqui a decepar isto tudo que é colectivo. Você vai a Paris e tem avenidas de tal maneira largas para passear a pé que nem ouve os carros. Se for à Finlândia nem sabe deles.
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