Discurso de Lula da Silva (excerto)

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quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Entrevista com Sérgio Vilarigues Publicada no Jornal «Avante!»


O homem dos 7 instrumentos

Entrevista com Sérgio Vilarigues

Publicada no Jornal «Avante!» de 15 de Fevereiro de 1996


Tem mais meia dúzia de anos do que o Partido, mais uns quantos do que o "Avante!" e uma jovialidade invejável. Do passado, com seis anos de prisão e trinta e dois passados na clandestinidade, guarda uma memória rica de histórias, a miúde hilariantes. Não porque a dor e o sofrimento não lhe tenham feito parte da vida, mas porque teve a sabedoria de conservar o espírito de humor e de aprender que a alegria era, também, uma forma de resistência à ditadura fascista.
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Responsável pelo "Avante!" durante década e meia, confessa sem pejo que nunca gostou, nem gosta, de escrever. Mas é com um brilho nos olhos que afirma que as «escrivinhadelas» que foi capaz de fazer as deve ao Partido, esse Partido, garante, « que com a confiança e força que transmite aos seus militantes é capaz de operar milagres e mover montanhas, deixa lá passar o lirismo porque é verdade». Passou o lirismo.
Segue-se a entrevista com Sérgio Vilarigues.



Quando é que viste o "Avante!" pela primeira vez?
Oh! isso era menino e moço; talvez para aí em 1931, 1932...
E como é que foi?
Fiquei encantado da vida, mas nessa altura eu era apenas um rebeldezito, andava lá em volta do sindicato da minha profissão...
Carnes verdes?
Exacto. Andava por lá com outros rapazes e, como é evidente, o sindicato era frequentado por membros do Partido que falavam connosco. Quando mal me precatei estava na juventude comunista. Não me demorei por lá muito tempo. Dois anos depois estava em Peniche.
Tão depressa?
Claro, fiz coisas... andei a "brincar" às agitações e propagandas, e como não tínhamos experiência nenhuma fomos apanhados como coelhos na toca. Eu, não sei porquê, fui passear até ao fim pelas prisões fascistas.
Peniche foi a tua primeira experiência?
Não, não, onde comecei a "comer batata" foi na esquadra do Calvário, em Alcântara. Foi aí que fui preso pela Polícia de Segurança Pública quando andávamos a colar umas targetas nos muros, pela libertação de um jovem comunista condenado a vinte anos de prisão. E claro, íamos colando e íamos andando. A polícia não teve dificuldade nenhuma em ir atrás de nós...
Foi só seguir os cartazes...
Pois, não tínhamos experiência nenhuma, quando dei por isso tinha uma pistola encostada à nuca. Fui para a esquadra e pimba... passadas umas horas estava na PVDE (Polícia de informações) e, como era normal, comecei a "comer" sem saber bem porquê, sem perguntas nem nada. Era uma roda deles, mesmo que um tipo tivesse desmaiado não tinha tempo de cair no chão, parecia uma bola. Eu ainda hoje sou miúdo, mas nessa altura era miúdo mesmo...
Depois fui incomunicável para a esquadra de Benfica, quinze dias passados estava nos calabouços do Governo Civil. Seguindo a 'via sacra', fui até ao Aljube; algum tempo depois houve lá uma zaragata, deportaram uns camaradas para Angra do Heroísmo, para a Fortaleza de S. João Baptista, e eu fui mandado, por castigo, para Peniche. Por castigo conversa fiada, por aquilo ou por outra coisa, o resultado seria o mesmo.
Também não paraste muito tempo em Peniche...
Não. Em Peniche houve uma confusão qualquer, a que a brincar chamámos a «greve da vassoura»...
Explica lá isso...
Até aí a limpeza era feita pelo pessoal da prisão, mas depois quiseram que fossem os presos a fazê-la. Não houve muito entendimento entre os presos, se devíamos varrer ou se não devíamos varrer, mas a malta da minha caserna entendeu que não, que isso era atentatório da nossa dignidade de presos políticos. Varre, não varre, veio a guarda e tudo para a "casa mata"...
Casa mata?
Fala-se pouco nisso em Peniche, mas creio que ainda lá estão. Eram fresquinhas, eram.. Fala-se pouco porque raramente lá metiam alguém; aquilo estava dividido em duas partes, uma mais seca e outra bastante húmida. Os nossos avoengos eram lixados para arranjar prisões! Felizmente deixaram-nos à vontade nas "casas mata", porque aquilo não estava preparado para ter presos, eram ruínas. As do lado direito quando se entrava a porta eram só lama... Havia lá uma que era o "ferro de engomar", baptizámo-la assim logo que chegámos...
Porquê ferro de engomar?
Porque tinha o mesmo feitio e era baixinha. Fomos para a greve de fome, claro. Come, não come, ameaças com espingardas..., não comemos. Passados dois dias tiraram-nos de lá. E deram-nos, nunca mais me esqueci, batatas com bacalhau, uma coisa rara, pois em Peniche o que se comia todos os dias, com raras excepções, era sopa de repolho com feijão encarnado e o casqueiro da tropa.
A malta olhou uns para os outros - come, não come? -, comemos. Comemos mas nessa mesma noite eles trataram de nos preparar uma "viagem de recreio" para a Fortaleza de S. João Baptista, em Angra do Heroísmo.
Um jantar de despedida...
Pois foi. Altas horas da madrugada aparecem vinte e dois guardas e um polícia de informação para levar vinte presos para Lisboa. Lá fomos sob ameaça, quem piasse apanhava. Piámos bastante, com morras à ditadura, cantámos a Internacional, a Bandeira Vermelha, o hino da Batalha....e toca a andar que se faz tarde. Chegámos a Angra e devo dizer que quando se está cá em baixo, onde fundeou o barco que nos levou, aquilo é impressionante, mete respeito.
E lá em cima?
Lá em cima aquilo até nem era feio, tinha umas vistas bonitas.
E vocês conseguiam ver as vistas?
Conseguíamos. Saíamos quando havia limpeza das casernas, havia o passeio. Não te esqueças que a prisão era também uma frente de luta e que nós tínhamos as nossas reivindicações; uma era justamente o direito ao passeio. No verão era bonito; de inverno, as vagas e os ventos metiam respeito, as casernas chegavam a tremer com a ventania.
Não me importava nada de passar lá umas férias, bem instalado, é claro.
Fora isso, tinha a sua poterna, tinha o seu calejão, as suas furnas, os seus espancamentos... Terminada a pena em Angra, como aquilo era pertinho, toca a andar para o Tarrafal.
Fizeste logo o percurso todo...
E também viajei à borla... De Peniche para a Angra, a 8 de Junho de 1935; de Angra para o Tarrafal a vinte e tal de Outubro de 36.
O mais bizarro aconteceu quatro anos depois de ter terminado a pena: fui amnistiado, imagina! Uma amnistia depois de cumprida e ultrapassada a pena, como se precisasse dela!
Assim voltei para o continente. Ainda fomos todos até à António Maria Cardoso, e alguns ficaram presos. Eu saí, com outros camaradas, e na própria rua marcámos logo um encontro. Passados dois anos estava na clandestinidade. Foram "só" 32 anos seguidos. E aqui me tens.
Trinta e dois anos de clandestinidade! Como é que foi?
A questão é a seguinte: não gostei da prisão e fiz tudo para lá não voltar. Mas se me perguntares o que é que custou mais, se os seis anos de prisão, tendo em conta que foram só seis anos, se a clandestinidade, digo-te já que foi a clandestinidade. É claro que para quem passou dezenas de anos na prisão, a questão é diferente.
A clandestinidade era uma coisa séria, não se via a família, não se convivia, também não havia muito para mastigar, o dinheiro mal chegava para a actividade política, não havia um cinemazinho... Hoje não me ralo muito com isso, só que nessa altura era um rapazinho jovem. Eu saí com 25 anos da prisão. Nem tive tempo de aprender a dar um passo de dança, fui para a clandestinidade e acabou-se.
Para quem não viveu essa experiência, é difícil perceber como era a vida na clandestinidade. Como eram os vossos dias?
Os nossos dias eram exaltantes e muitas vezes alegres. Dependia da situação. Por exemplo, vamos às greves de Julho/Agosto de 43: - «é pá, a malta está aí!» A gente saía para a rua, não estávamos metidos em redomas de vidro. «A fábrica tal já foi, a fábrica tal já foi.» Menina, aquilo era alegria que não cabia um feijão frade no avec cependant!
Se havia uma derrota ficava a malta de monco caído.
Por exemplo, chegavam cartas das prisões, do Tarrafal; ficávamos contentes por ter informações. Se não conseguíamos furar a barreira das prisões ficávamos tristes.
Nas prisões também, receber uma carta era uma festa.
Lembro-me de um camarada, o Roussel, que escreveu uma novela no Tarrafal chamada "A chegada da correspondência". Foi das coisas que mais gostei, dessas escrevinhadelas que se fizeram por lá. Ele conseguiu dar uma imagem daquela ansiedade, mas também dos bons momentos que se passavam. Cá fora, na clandestinidade, não era uma prisão, mas... Bom, depois tínhamos a alegria de quando estávamos a lutar e as coisas saíam bem.
Por exemplo, como quando faziam o "Avante!". Uma responsabilidade que tiveste a cargo, se não estou enganada...
Não estás, não, enganado fui eu...
Conta lá essa história...
Primeiro tenho de confessar que não gostava - e não gosto - mesmo nada de escrever. O que é que se há-de fazer? Para mim, a caneta foi sempre mais pesada do que a enxada, em sentido figurado, claro. Talvez por nunca ter ido além da 4ª classe e sentir não ter jeito para tal... Pelos vistos, outros pensaram o contrário. Em 1947 fui chamado ao Secretariado do Partido. O "Avante!" era da responsabilidade do Secretariado, mas havia um camarada que era ainda o seu mais directo responsável. Daí se dizer, e é verdade, que eu fui o camarada que mais tempo teve essa responsabilidade. Parece bizarro, mas foi mesmo assim.
A tarefa foi-me entregue quase sem dar por isso. Numa daquelas reuniões para ultimar os materiais para o "Avante!", ver o que estava escrito, o que faltava e o que não faltava, quando dei conta estavam-me a passar tudo, toma lá...
Com que então apanhado à má fila!!?
Eh! E eu, que ainda não tinha percebido: toma lá? Toma lá o quê?
Materiais do "Avante!", foi a resposta. E lá veio o arquivozinho do jornal, envelopes com artigos já feitos ou meio alinhavados, outros materiais para trabalhar, a maioria tinha de ser feita à última da hora para o jornal não ficar ainda mais desactualizado do que ficava pelas condições em que era feito.
Como era muito refilão - e ainda sou - bem perguntei que conversa era aquela. Informaram-me que o "Avante!" passava a ser uma das minhas tarefas. Fiquei furioso, aqui para nós que ninguém nos ouve, mas como não ganhava nada com isso, lá agarrei naquilo tudo e fui para casa.
Não sei se foram oito, se dez, se os próprios quinze dias - nessa altura o jornal era quinzenal - que faltavam para entregar o trabalho, mas a verdade é que durante esse tempo não dormi ou dormi muito mal.
Foi assim tão difícil?
Nem queiras saber o que sofri. Serei capaz? Não serei? É verdade que no dia X, às tantas horas, o jornal estava a ser entregue na tipografia, mas não te digo qual é o número.
Porquê?
Porque está uma grande porcaria... Pronto, lá se fez. Nem sempre cada um de nós realiza as tarefas de que mais gosta... enfim, a coisa acabou por singrar menos mal.
O mais difícil, senti depois, era aproveitar as ideias e achegas de todos, as opiniões e críticas dos camaradas sobre os acontecimentos, as informações colhidas na leitura da imprensa nacional - restrita, por falta de meios -, e um ou outro jornal estrangeiro, as notícias da rádio... A propósito, a certa altura, o único aparelho de rádio que havia no Partido estava na casa do responsável que tinha a imprensa. Já vês as dificuldades com que nos debatíamos.
E por falar em dificuldades... também aconteciam coisas engraçadas, que se calhar ainda acontecem com vocês. Imagina que tens apenas um espaço em que cabe um artigo de oitenta linhas a trinta e dois espaços; escolhia o tema mais actual, mais importante, e começava a escrever. Com a dificuldade toda que tenho, quando dava por isso ainda não tinha entrado no problema e já tinha o dobro das linhas. Bolas!, dizia, de facto escrever pouco e dizer muito é que é o difícil...
E quando era preciso cortar os artigos dos outros? Nem sabes o problema que era. O Manuel Guedes é que era bom nisso; uma vez, estava com ele e com o Militão, a fazer a revisão e os fatídicos cortes, quando o Manuel Guedes se começou a rir, a rir. Que foi? - perguntei-lhe. Este já está, respondeu, cortei-lhe as "démarches" todas!
É claro que a partir da altura em que fui obrigado a escrever as coisas começaram a sair com mais facilidade, ou com menos dificuldade, melhor dizendo.
Tenho que reconhecer que aprendi bastante com esta tarefa, a tal ponto que dei por mim a implicar com os complementos directos e indirectos quando estavam mal, logo eu, que durante anos nem sabia o que isso era...
Hoje, de vez em quando, releio alguns exemplares com prosa minha, que consigo identificar, e sinto um certo orgulho em não encontrar nada de que me possa desancar. Mas com a mesma sinceridade o digo, às vezes rio sozinho por certo fraseado altissonante, falhas, insuficiências, ingenuidades e falhas de gramática de bradar aos céus. Mesmo assim confesso sentir satisfação por tudo aquilo ressumar combatividade e confiança no resultado final da luta que o Partido conduzia.
Quanto tempo tiveste essa tarefa?
A primeira vez foi de 1947 a 54, com dois meses de folga.
Dois meses de folga?
Folga desta tarefa, porque tinha conseguido sair do Secretariado, mas não foi por muito tempo, nem tive tempo de respirar. Quando se dá a prisão do Álvaro Cunhal e do Militão tive de voltar e lá fiquei outra vez com a imprensa. No total, estive com essa tarefa um pouco mais de 15 anos.
Nessa altura havia uma grande luta - e se calhar hoje continua - para pôr os outros a escrever. Toda a gente botava discurso, mas escrever está quieto. Isso significava que às vezes tinha de escrever sobre tudo, tocar todos os instrumentos, o que era não só lixado como, modéstia à parte, exigia muita coragem e até audácia...
Há coisas que não mudam muito, na verdade...
Eu sei, é tramado. E ontem, como hoje, nem sempre se conseguia estar em cima dos principais acontecimentos, dos problemas mais actuais em cada momento.
Como se isso não bastasse, ainda havia os problemas técnicos: não podíamos mandar gravar o título do jornal em qualquer oficina de gravador, o corpo da letra (corpo 6) mal se via, os sublinhados eram um problema... o que nos valia é que apareciam sempre uns camaradas mais habilidosos, e lá fomos passando dos moldes de madeira para metal, enquanto o prelo - pesadão, de ferro, se te caísse num pé nem imaginas... - passava para madeira (fórmica), e o rolo, o maldito rolo, também acabou por ficar levezinho quando passou a ser de madeira, oco, que se enchia com chumbo velho quando era preciso. Uma vez por outra lá aparecia um mamarracho, mas ala, para a frente é que é o caminho, e assim chegámos aos dias de hoje.
E hoje, como é que vês o jornal?
Sabes, 65 anos na vida de um jornal é obra, e tanto maior quando precisamente metade desta linda idade foi vivida em condições da mais estreita clandestinidade. E o "Avante!", há que reconhecer, desempenhou sempre um papel de grande relevo na luta pela libertação do povo português da opressão fascista, pela democracia.
Hoje, como ontem, o jornal continua a cumprir o seu papel de órgão do PCP, mas acho que é preciso melhorar mais.
O "Avante!" continua a ser o "Avante!". A situação mudou muito, depois do 25 de Abril, mas os problemas intrincados a resolver não serão menores; as dificuldades para lhes dar resposta a contento dos leitores, de todos nós, são certamente enormes mas, como então, o que é preciso é ir para a frente.

Destaques

  • Fui para a esquadra e pimba... passadas umas horas estava na PVDE (Polícia de informações) e, como era normal, comecei a "comer" sem saber bem porquê, sem perguntas nem nada. Era uma roda deles, mesmo que um tipo tivesse desmaiado não tinha tempo de cair no chão, parecia uma bola
  • Altas horas da madrugada aparecem vinte e dois guardas e um polícia de informação para levar vinte presos para Lisboa. Lá fomos sob ameaça, quem piasse apanhava. Piámos bastante, com morras à ditadura, cantámos a Internacional, a Bandeira Vermelha, o hino da Batalha.
  • A clandestinidade era uma coisa séria, não se via a família, não se convivia, também não havia muito para mastigar, o dinheiro mal chegava para a actividade política, não havia um cinemazinho.
  • Informaram-me que o "Avante!" passava a ser uma das minhas tarefas. Fiquei furioso, aqui para nós que ninguém nos ouve, mas como não ganhava nada com isso, lá agarrei naquilo tudo e fui para casa.
  • Tenho que reconhecer que aprendi bastante com esta tarefa, a tal ponto que dei por mim a implicar com os complementos directos e indirectos quando estavam mal, logo eu, que durante anos nem sabia o que isso era.


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