Antonioni ~ e as cores do Deserto Vermelho
16/02/2008
Roberto Acioli de Oliveira
Com o advento da
cor o espaço no cinema
torna-se importante em si
mesmo, mais do que apenas representando o espaço
do drama ou o reflexo
de um ser humano?
Já que o mundo real é colorido para os olhos humanos, normalmente acredita-se que o uso da cor no cinema leva a um maior realismo. Até 1963, Antonioni havia insistido no preto e branco. Enquanto o mundo já estava colorido nas telas desde o final da Segunda Guerra Mundial, ele e alguns outros cineastas europeus, como o sueco Ingmar Bergman, insistiam no que para muitos era um anacronismo. Primeiro filme colorido de Antonioni, O Deserto Vermelho (Il Deserto Rosso, 1964) não é apenas mais um filme colorido. Para Antonioni a cor se torna um tipo de apoteose da abstração. Ironicamente, essa “campanha anti-realista” levada a cabo pelo cineasta acaba levando ao aumento da expressividade da linha e da forma, diminuindo assim a importância da narrativa e do personagem (1). Em O Deserto Vermelho, Antonioni levou o elemento artificial da cor ao seu máximo. Muito do que se vê não corresponde à cor natural daquela fruta, daquela parede, daquela rua, daquela paisagem.
Inicialmente, o nome do filme era Celeste e Verde. Mas Antonioni mudou e comentou com Godard que esse título não seria “suficientemente viril”. No final, verde é a cor do casado de Giuliana nas cenas iniciais (imagens acima, à esquerda). Cor que ela também escolherá para o teto da loja que está montando, enquanto as paredes seriam azul celeste. Peter Brunette chama atenção para a conexão entre virilidade e abstração. Essa atitude faz eco aos comentários dos pintores do expressionismo abstrato da década de 50 do século 20 (2). Antonioni está interessado na distinção entre cores quentes e frias. Ele mesmo enfatizou o fato de que a cena da orgia tinha que ter paredes vermelhas, e que cortaria a cena caso o filme tivesse sido feito em preto e branco. Entretanto, Brunette afirma que, ao contrario do que fazem muitos críticos de Antonioni, não se deveriam indicar significados simbólicos específicos a certas cores que aparecem no filme. As cores devem ser tomadas apenas como sugestivas de uma forma emocional, como um realce do elemento gráfico. O que não se deve fazer nos filmes de Antonioni é tomar certas cores como indicações de conceitos e temas. A questão é que essa ênfase na cor levava a uma nova ênfase no foco da câmera enquanto elemento significante. Isso era novo tanto para Antonioni quanto para a história do cinema (3).
Segundo Brunette, essa tendência de condicionar certos significados simbólicos a algumas cores específicas é fútil e gera confusão. Muitos críticos enfatizam a importância do vermelho. Biarese e Tassone insistem que são as cores brancas e frias que predominam. Seymor Chatman faz uma leitura muito literal da cor quando conclui que Giuliana obteve “alívio” sexual porque as cores do hotel mudaram de branco para rosa. Já Marie Claire Ropars-Wuilleumier, que Brunette parece aprovar, coloca O Deserto Vermelho no contexto de alguns outros cineastas que começaram a utilizar a cor no início dos anos 60. Segundo ele, “não é um acidente que a mudança para a cor acompanhe, tanto nos filmes de [Alain] Resnais quanto em Antonioni, uma quebra na busca pelo tempo e o desenvolvimento de um espaço invasor. Com a cor, o espaço no cinema torna-se importante em si mesmo, mais do que apenas representando o cenário do drama ou o reflexo de um ser humano” (4).
Várias cenas começam fora de foco, lentamente os elementos da cena apresentam, organizando o espaço e permitindo ao espectador a construção do sentido visual. Alguns mais apresados fuzilariam Antonioni, dizendo que o cineasta não sabe como utilizar uma câmera. Entretanto, afirma Brunette, o principal efeito desse uso criativo que o cineasta faz do foco é colocar em primeiro plano o poderoso desejo interpretativo do espectador, que sempre busca estabelecer um sentido coerente a partir de um campo visual confuso. Desde os créditos iniciais, as imagens fora de foco da fábrica sugerem a profunda crise na visão explorada no filme. Em seguida, vemos alguns trabalhadores passando, longe demais para conseguirmos um foco. Quando finalmente aparece alguém próximo o bastante para entrar em foco, vemos Giuliana. Ironicamente, ela está de costas para nós (imagens do início do artigo).
Até O Eclipse (1963), conta Antonioni, o interesse estava no embate entre indivíduos. Em O Deserto Vermelho, os objetos entram não como acessórios, mas como personagens. Podemos ver seres humanos apequenados por gigantescas formas industriais. Temos também a cena onde dois homens são envolvidos por uma nuvem de fumaça da fábrica (imagem a direita, acima). Desta, temos imagens apenas das máquinas, sem humanos por perto. Noutro momento, temos os padrões no estilo do expressionismo abstrato de Mark Rothko na parede da loja inacabada de Giuliana (20min:58s). (imagem a direita, embaixo).
Várias cenas começam fora de foco, lentamente os elementos da cena apresentam, organizando o espaço e permitindo ao espectador a construção do sentido visual. Alguns mais apresados fuzilariam Antonioni, dizendo que o cineasta não sabe como utilizar uma câmera. Entretanto, afirma Brunette, o principal efeito desse uso criativo que o cineasta faz do foco é colocar em primeiro plano o poderoso desejo interpretativo do espectador, que sempre busca estabelecer um sentido coerente a partir de um campo visual confuso. Desde os créditos iniciais, as imagens fora de foco da fábrica sugerem a profunda crise na visão explorada no filme. Em seguida, vemos alguns trabalhadores passando, longe demais para conseguirmos um foco. Quando finalmente aparece alguém próximo o bastante para entrar em foco, vemos Giuliana. Ironicamente, ela está de costas para nós (imagens do início do artigo).
Até O Eclipse (1963), conta Antonioni, o interesse estava no embate entre indivíduos. Em O Deserto Vermelho, os objetos entram não como acessórios, mas como personagens. Podemos ver seres humanos apequenados por gigantescas formas industriais. Temos também a cena onde dois homens são envolvidos por uma nuvem de fumaça da fábrica (imagem a direita, acima). Desta, temos imagens apenas das máquinas, sem humanos por perto. Noutro momento, temos os padrões no estilo do expressionismo abstrato de Mark Rothko na parede da loja inacabada de Giuliana (20min:58s). (imagem a direita, embaixo).
Citando Sam Rohdie, Brunette aprofunda a análise da importância do elemento abstrato neste filme. Como na cena em que vemos uma imagem abstrata em tons de branco. Em seguida, vemos um elemento branco mais claro surgir na parte de baixo da tela. Então vemos Corrado surgir com um casaco escuro num movimento para cima. Percebemos então que a primeira imagem abstrata era uma parede e a segunda era o teto branco do carro (19min:05s). Rohdie explica:
“Os códigos representacionais do cinema tendem a privilegiar o volume sobre a superfície, a figura sobre a imagem. Expedientes narrativos são importantes nesse equilíbrio [se, por exemplo, a parede tivesse tido significância narrativa poderia ter sido reconhecida mais cedo pela platéia como uma parede]..., [porém, nesta seqüência] a figuração é suspensa, todo o volume e profundidade nos quais as coisas se localizam nas narrativas parecem momentaneamente ausentes, em seu lugar aparece o ‘vazio’ de uma imagem superficial, desamarrada, não identificável, uma narrativa vazia, um tipo de eclipse de narrativa dentro da abstração”.
“Os códigos representacionais do cinema tendem a privilegiar o volume sobre a superfície, a figura sobre a imagem. Expedientes narrativos são importantes nesse equilíbrio [se, por exemplo, a parede tivesse tido significância narrativa poderia ter sido reconhecida mais cedo pela platéia como uma parede]..., [porém, nesta seqüência] a figuração é suspensa, todo o volume e profundidade nos quais as coisas se localizam nas narrativas parecem momentaneamente ausentes, em seu lugar aparece o ‘vazio’ de uma imagem superficial, desamarrada, não identificável, uma narrativa vazia, um tipo de eclipse de narrativa dentro da abstração”.
“A parede se materializa do nada, tanto narrativamente quanto visualmente; mas quando ela aparece seu outro status como imagem persiste: enquanto uma parte da pressão da cena vai em direção à construção de ‘fatos’, de ‘incidentes’, dando suporte ao personagem e a ação (uma corrente de eventos: Corrado estaciona seu Alfa numa rua próximo da loja de Giuliana, eles se encontram, eles conversam), outra parte da cena se move na direção da dissolução, do nada, de um abandono do personagem, de um tempo morto sem ação: uma superfície sem cor; movimento ao longo da parede que muda sua intensidade de luz, altera volume e densidade; o personagem se torna apenas um objeto estampado na paisagem, como Corrado e Giuliana momentaneamente imóveis ao lado do vendedor de frutas. Aqui a narrativa é suspensa, não pela remoção de personagem ou figura, mas por libertá-los de qualquer função narrativa, igualando-os à paisagem”. (5)
Durante uma entrevista com Godard em 1964, Antonioni negou que a pintura abstrata fosse um elemento importante neste e noutros de seus filmes. Entretanto, esta afirmação contradiz o que o próprio afirmou em várias entrevistas. Certa vez ele disse: “Eu quero pintar um filme como alguém pinta um quadro; quero inventar a relação entre as cores e não me limitar fotografando apenas cores naturais” (6). Explicando-se melhor, em entrevista de 1964 (7), Antonioni esclarece:
Pierre André Boutang: É um engano pensar que o senhor busca referências na pintura no seu modo de tratar a cor?
Antonioni: Eu acho que sim, porque eu não penso em nenhum pintor. Gosto muito de pintura, mas não tive, acho, influência de nenhum pintor. Isto é, não há pintura no filme, no sentido literal da palavra. É diferente. Quando se faz um filme em cores deve-se buscar, acredito, um ritmo de cores. Isso não existe em pintura. Usamos a cor, eu acredito... de modo funcional... para descrever a história. Quer dizer... se acho uma cor útil para uma sugestão que a cena deve dar ao público... eu a utilizo. Compreende? Às vezes não a encontramos na realidade e por isso coloquei as cores que precisava. Pintei as árvores, já se sabe, pintei as casas... mas foi porque precisava dessa luz e não a achava.
P. A. Boutang: Em relação aos sentimentos de seus personagens?
Antonioni: Em relação aos sentimentos... que queria mostrar.
P. A. Boutang: O senhor mandou queimar uma pradaria... pintou casas de cores totalmente diferentes... e fala-se de um bosque que o senhor pintou.
Antonioni: Sim, é verdade. Mas eu não pude rodar a cena por causa do sol. Havia um bosque que me interessava, que ficava ao lado de uma fábrica muito grande, muito importante, com quatro mil operários... e devia começar o filme por uma greve... e esse greve deveria acontecer perto do bosque. O bosque era verde, claro... mas sentia que esse verde... não era adequado ao momento. Então, quis pintar o bosque de branco, aliás, de cinza. O branco sobre o verde dava uma cor cinza. Fizemos isso. Pintamos a noite inteira com uma grande bomba... que soltava um tipo de tinta, mas era quase uma fumaça. Mas no dia seguinte, ao sol, não pude filmar... porque ficamos contra o sol e o bosque parecia preto.
Notas:
Leia também:
Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz
1. BRUNETE, Peter. The Films of Michelangelo Antonioni. New York: Cambridge University Press. 1998. P. 91.
2. Idem, p. 169, n. 4.
3. Ibidem, p. 92.
4. ROPARS-WUILLEUMIER, “L’écran de la mémoire”, p. 168. IN BRUNETTE, Peter. Op. Cit., p. 169, n. 6.
5. Trecho do livro de Sam Rohdie, “Antonioni”, p. 175. IN BRUNETTE, Peter. Op. Cit., p. 94.
6. Do livro de Seymor Chatman, “Antonioni”. IN BRUNETTE, Peter. Op. Cit., p. 170, n. 13.
7. Entrevista a Pierre André Boutang, Les Ecrans de la Ville [As Telas da Cidade], 1964. Incluída nos extras do dvd de O Deserto Vermelho, distribuído no Brasil pela Versátil Home vídeo, 2007.
Durante uma entrevista com Godard em 1964, Antonioni negou que a pintura abstrata fosse um elemento importante neste e noutros de seus filmes. Entretanto, esta afirmação contradiz o que o próprio afirmou em várias entrevistas. Certa vez ele disse: “Eu quero pintar um filme como alguém pinta um quadro; quero inventar a relação entre as cores e não me limitar fotografando apenas cores naturais” (6). Explicando-se melhor, em entrevista de 1964 (7), Antonioni esclarece:
Pierre André Boutang: É um engano pensar que o senhor busca referências na pintura no seu modo de tratar a cor?
Antonioni: Eu acho que sim, porque eu não penso em nenhum pintor. Gosto muito de pintura, mas não tive, acho, influência de nenhum pintor. Isto é, não há pintura no filme, no sentido literal da palavra. É diferente. Quando se faz um filme em cores deve-se buscar, acredito, um ritmo de cores. Isso não existe em pintura. Usamos a cor, eu acredito... de modo funcional... para descrever a história. Quer dizer... se acho uma cor útil para uma sugestão que a cena deve dar ao público... eu a utilizo. Compreende? Às vezes não a encontramos na realidade e por isso coloquei as cores que precisava. Pintei as árvores, já se sabe, pintei as casas... mas foi porque precisava dessa luz e não a achava.
P. A. Boutang: Em relação aos sentimentos de seus personagens?
Antonioni: Em relação aos sentimentos... que queria mostrar.
P. A. Boutang: O senhor mandou queimar uma pradaria... pintou casas de cores totalmente diferentes... e fala-se de um bosque que o senhor pintou.
Antonioni: Sim, é verdade. Mas eu não pude rodar a cena por causa do sol. Havia um bosque que me interessava, que ficava ao lado de uma fábrica muito grande, muito importante, com quatro mil operários... e devia começar o filme por uma greve... e esse greve deveria acontecer perto do bosque. O bosque era verde, claro... mas sentia que esse verde... não era adequado ao momento. Então, quis pintar o bosque de branco, aliás, de cinza. O branco sobre o verde dava uma cor cinza. Fizemos isso. Pintamos a noite inteira com uma grande bomba... que soltava um tipo de tinta, mas era quase uma fumaça. Mas no dia seguinte, ao sol, não pude filmar... porque ficamos contra o sol e o bosque parecia preto.
Notas:
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Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz
1. BRUNETE, Peter. The Films of Michelangelo Antonioni. New York: Cambridge University Press. 1998. P. 91.
2. Idem, p. 169, n. 4.
3. Ibidem, p. 92.
4. ROPARS-WUILLEUMIER, “L’écran de la mémoire”, p. 168. IN BRUNETTE, Peter. Op. Cit., p. 169, n. 6.
5. Trecho do livro de Sam Rohdie, “Antonioni”, p. 175. IN BRUNETTE, Peter. Op. Cit., p. 94.
6. Do livro de Seymor Chatman, “Antonioni”. IN BRUNETTE, Peter. Op. Cit., p. 170, n. 13.
7. Entrevista a Pierre André Boutang, Les Ecrans de la Ville [As Telas da Cidade], 1964. Incluída nos extras do dvd de O Deserto Vermelho, distribuído no Brasil pela Versátil Home vídeo, 2007.
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