Há sete anos mataram a história do Iraque. Foi só uma entre várias mortes, mas foi dura. Hoje, o Museu do Iraque está moribundo. Reaberto, é certo. Mas moribundo. Um museu que ninguém visita é um museu doente. Um país a que mataram a história também.
"Esta é a minha sala favorita", diz Luma, quando entramos na galeria dedicada à Assíria (reino da Mesopotâmia que governou em vários períodos, desde há 4000 anos), painéis e estátuas gigantes, como num museu de verdade que este já foi. "Não as puderem levar. Eram demasiado grandes, mas ainda estragaram algumas, como a deste rei", aponta. O rei tem uns pedacinhos de gesso branco a verem-se entre o bege que era a sua cor.
"Fizemos estes arranjos para não deixar estragar mais até aos trabalhos definitivos. Em 2005, vieram italianos e começaram a ajudar, depois tiveram de se ir embora por causa da violência. Aí começámos nós, devagarinho", diz Luma, arqueóloga e responsável pelo Departamento de Educação do museu.
Ainda hoje se diz em Bagdad que os militares dos Estados Unidos só protegeram o Ministério do Petróleo. Dizem os responsáveis pelo Museu do Iraque que eles sabiam que era preciso proteger o museu e a biblioteca. Ao contrário de tanto do que se diz ainda hoje em Bagdad e que não passa de rumor, isto é mesmo verdade.
"Stuff happens", disse Donald Rumsfeld. E depois: "As imagens que estão a ver na televisão, uma e outra vez, repetidas, é sempre a mesma imagem da mesma pessoa a sair de um edifício qualquer com um vaso, e vocês vêem essa imagem 20 vezes e pensam, "Meu Deus, havia assim tantos vasos?" É possível que existissem assim tantos vasos em todo o país?"
O então secretário da Defesa dos EUA expressou as suas dúvidas a 11 de Abril de 2003, dois dias depois de os militares enviados por Washington chegarem à capital e ajudarem a derrubar a estátua de Saddam Hussein na Praça Al-Firdaus. O Museu do Iraque foi pilhado entre os dias 10 e 12.
Ra'id Abdul Ridhar Mohammed, um arqueólogo iraquiano, contou ao jornal "The New York Times" que se dirigiu aos Marines nos seus tanques estacionados na Praça do Museu, pedindo-lhes para porem fim às pilhagens. Eles foram até lá, afastaram a primeira vaga de saqueadores e saíram. "Pedi-lhes para trazerem o tanque para o jardim do museu. Eles recusaram e foram-se embora." Meia hora depois, as pilhagens tinham recomeçado.
Muhsin Hassan Ali foi o primeiro a chegar ao museu depois das pilhagens. Talvez tenha sido nesse dia que ficou pouco falador. Talvez sempre tenha sido sempre assim. Hassan Ali já trabalhava no museu, era responsável pelo departamento de catalogação; hoje é vice-director.
Delegações de embaixadas
O director da altura já deixou o país, ameaçado de morte. O director agora é uma directora que não tem tempo para jornalistas portugueses. Não gosta de entrevistas e está ocupada a receber delegações de embaixadas e a guiá-las pelas oito salas de exposição reabertas desde Fevereiro de 2009, incluindo a dedicada à civilização assíria.
Delegações de embaixadas são os únicos visitantes que o museu recebe neste Verão. Contra a reabertura estiveram arqueólogos, o próprio ministro da Cultura e o ex-director, Donny George Youkhanna, para quem a decisão só se justifica por "razões políticas". Os artefactos estão mais bem conservados com o museu fechado do que nestas condições. Falta a electricidade. Falta dinheiro para as obras de restauro. Falta tudo. Também faltam visitantes. Até Junho vinham as visitas de estudo. Agora não vem ninguém, só as delegações.
"A identidade de um país, o seu valor e a sua civilização residem na sua história. Se a civilização de um país é pilhada, como a nossa foi aqui, a sua história acaba", disse o arqueólogo Ra'id Abdul Ridhar Mohammed, em Abril de 2003.
A cabeça de Warka
Hassan Ali não diz frases longas porque lhe faltam as palavras ou por ser um homem de poucas. Prefere respostas curtas, bruscas. "Fui eu que decidi reabrir o museu", assegura. "Aqui o Governo não manda", afirma. "Dinheiro não há." E por aí fora.
Hassan Ali, a quem todos no museu chamam senhor Muhsin, "é assim", diz Luma, a directora do Departamento de Educação. "No princípio, foi ele que organizou os horários e nos pôs a trabalhar para inventariarmos o que tinha sido roubado, o que estava perdido, o que estava partido."Ninguém sabe ao certo quantos artefactos desapareceram naqueles dias de Abril. Talvez 15 mil. Entre os mais importantes, Luma escolhe a cabeça de Warka, uma escultura suméria, já recuperada. "Esteve duas semanas em exposição, depois fecharam-na." Há mais: a estátua de cobre de uma figura sentada com uma inscrição em escrita cuneiforme na base que é uma dedicatória ao rei Naram-Sin. Pesa centenas de quilos, foi recuperada e até está exposta. "Foi encontrada no Iraque pelo Exército norte-americano. Estava num esgoto."
Artefactos pelo mundo
A estátua de cobre está no vão de uma escada, a caminho entre duas salas abertas do que já foi um grande museu. Nas oito galerias que reabriram, das antigas 26, expõem-se objectos recuperados - há uma montra só com artefactos encontrados nos EUA, no Peru, na Síria, na Jordânia, na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes Unidos - nos últimos anos, outros que nunca daqui saíram.
Entre as peças importantes que falta recuperar, a escolha é difícil. Luma lembra os milhares de selos cilíndricos, as placas de argila da Babilónia... É impossível pedir a um arqueólogo que escolha. O Iraque ocupa um espaço que viu nascer algumas das primeiras civilizações, aquelas que inventaram as cidades e a escrita, que começaram a civilização. Há objectos que falam dessa história nos museus da Europa, mas muitos estavam aqui mesmo, em Bagdad.
Há gente a passar pelas oito salas que reabriram. Luma e outros funcionários, as tais delegações que vêm beber sumos e tirar fotografias e chegam em grandes jipes rodeados de outros jipes com seguranças privados bem armados.
Como no passado
De vez em quando, passa por uma das salas Abed Atti, que Luma apresenta como "uma peça de arte". Tem 89 anos e trabalha no museu desde os 14, ainda o museu não era ali, na esquina das ruas Qahira e Nasir. "Os britânicos deram-lhe trabalho. Começou nas escavações." Agora, a principal função de Abed Atti é abrir e fechar portas e luzes, como se o museu funcionasse normalmente. "Vi trazerem objectos e vi levarem objectos. Vi este edifício a ser construído. Levei artefactos para a museus de todo o mundo. Fui à Rússia e ao Japão."
Agora, Atti já só vem ao museu e volta para casa. O Museu do Iraque está aberto das 9h às 13h30, com ou sem visitantes.
Ainda no seu escritório, Muhsin Hassan Ali está impaciente para pôr fim a mais um dia. Tem tempo para dizer que gostava muito de "poder reabrir como no passado, com as galerias organizadas de acordo com a época histórica e com a melhor tecnologia do mundo". Depois, remata com as frases mais longas que lhe ouvimos: "Espero que todos os artefactos sejam recuperados porque todos são importantes. Cada artefacto conta uma história, todos mudaram a história e todos nos dizem qualquer coisa que não sabíamos antes de os encontrar."
."Fizemos estes arranjos para não deixar estragar mais até aos trabalhos definitivos. Em 2005, vieram italianos e começaram a ajudar, depois tiveram de se ir embora por causa da violência. Aí começámos nós, devagarinho", diz Luma, arqueóloga e responsável pelo Departamento de Educação do museu.
Ainda hoje se diz em Bagdad que os militares dos Estados Unidos só protegeram o Ministério do Petróleo. Dizem os responsáveis pelo Museu do Iraque que eles sabiam que era preciso proteger o museu e a biblioteca. Ao contrário de tanto do que se diz ainda hoje em Bagdad e que não passa de rumor, isto é mesmo verdade.
"Stuff happens", disse Donald Rumsfeld. E depois: "As imagens que estão a ver na televisão, uma e outra vez, repetidas, é sempre a mesma imagem da mesma pessoa a sair de um edifício qualquer com um vaso, e vocês vêem essa imagem 20 vezes e pensam, "Meu Deus, havia assim tantos vasos?" É possível que existissem assim tantos vasos em todo o país?"
O então secretário da Defesa dos EUA expressou as suas dúvidas a 11 de Abril de 2003, dois dias depois de os militares enviados por Washington chegarem à capital e ajudarem a derrubar a estátua de Saddam Hussein na Praça Al-Firdaus. O Museu do Iraque foi pilhado entre os dias 10 e 12.
Ra'id Abdul Ridhar Mohammed, um arqueólogo iraquiano, contou ao jornal "The New York Times" que se dirigiu aos Marines nos seus tanques estacionados na Praça do Museu, pedindo-lhes para porem fim às pilhagens. Eles foram até lá, afastaram a primeira vaga de saqueadores e saíram. "Pedi-lhes para trazerem o tanque para o jardim do museu. Eles recusaram e foram-se embora." Meia hora depois, as pilhagens tinham recomeçado.
Muhsin Hassan Ali foi o primeiro a chegar ao museu depois das pilhagens. Talvez tenha sido nesse dia que ficou pouco falador. Talvez sempre tenha sido sempre assim. Hassan Ali já trabalhava no museu, era responsável pelo departamento de catalogação; hoje é vice-director.
Delegações de embaixadas
O director da altura já deixou o país, ameaçado de morte. O director agora é uma directora que não tem tempo para jornalistas portugueses. Não gosta de entrevistas e está ocupada a receber delegações de embaixadas e a guiá-las pelas oito salas de exposição reabertas desde Fevereiro de 2009, incluindo a dedicada à civilização assíria.
Delegações de embaixadas são os únicos visitantes que o museu recebe neste Verão. Contra a reabertura estiveram arqueólogos, o próprio ministro da Cultura e o ex-director, Donny George Youkhanna, para quem a decisão só se justifica por "razões políticas". Os artefactos estão mais bem conservados com o museu fechado do que nestas condições. Falta a electricidade. Falta dinheiro para as obras de restauro. Falta tudo. Também faltam visitantes. Até Junho vinham as visitas de estudo. Agora não vem ninguém, só as delegações.
"A identidade de um país, o seu valor e a sua civilização residem na sua história. Se a civilização de um país é pilhada, como a nossa foi aqui, a sua história acaba", disse o arqueólogo Ra'id Abdul Ridhar Mohammed, em Abril de 2003.
A cabeça de Warka
Hassan Ali não diz frases longas porque lhe faltam as palavras ou por ser um homem de poucas. Prefere respostas curtas, bruscas. "Fui eu que decidi reabrir o museu", assegura. "Aqui o Governo não manda", afirma. "Dinheiro não há." E por aí fora.
Hassan Ali, a quem todos no museu chamam senhor Muhsin, "é assim", diz Luma, a directora do Departamento de Educação. "No princípio, foi ele que organizou os horários e nos pôs a trabalhar para inventariarmos o que tinha sido roubado, o que estava perdido, o que estava partido."Ninguém sabe ao certo quantos artefactos desapareceram naqueles dias de Abril. Talvez 15 mil. Entre os mais importantes, Luma escolhe a cabeça de Warka, uma escultura suméria, já recuperada. "Esteve duas semanas em exposição, depois fecharam-na." Há mais: a estátua de cobre de uma figura sentada com uma inscrição em escrita cuneiforme na base que é uma dedicatória ao rei Naram-Sin. Pesa centenas de quilos, foi recuperada e até está exposta. "Foi encontrada no Iraque pelo Exército norte-americano. Estava num esgoto."
Artefactos pelo mundo
A estátua de cobre está no vão de uma escada, a caminho entre duas salas abertas do que já foi um grande museu. Nas oito galerias que reabriram, das antigas 26, expõem-se objectos recuperados - há uma montra só com artefactos encontrados nos EUA, no Peru, na Síria, na Jordânia, na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes Unidos - nos últimos anos, outros que nunca daqui saíram.
Entre as peças importantes que falta recuperar, a escolha é difícil. Luma lembra os milhares de selos cilíndricos, as placas de argila da Babilónia... É impossível pedir a um arqueólogo que escolha. O Iraque ocupa um espaço que viu nascer algumas das primeiras civilizações, aquelas que inventaram as cidades e a escrita, que começaram a civilização. Há objectos que falam dessa história nos museus da Europa, mas muitos estavam aqui mesmo, em Bagdad.
Há gente a passar pelas oito salas que reabriram. Luma e outros funcionários, as tais delegações que vêm beber sumos e tirar fotografias e chegam em grandes jipes rodeados de outros jipes com seguranças privados bem armados.
Como no passado
De vez em quando, passa por uma das salas Abed Atti, que Luma apresenta como "uma peça de arte". Tem 89 anos e trabalha no museu desde os 14, ainda o museu não era ali, na esquina das ruas Qahira e Nasir. "Os britânicos deram-lhe trabalho. Começou nas escavações." Agora, a principal função de Abed Atti é abrir e fechar portas e luzes, como se o museu funcionasse normalmente. "Vi trazerem objectos e vi levarem objectos. Vi este edifício a ser construído. Levei artefactos para a museus de todo o mundo. Fui à Rússia e ao Japão."
Agora, Atti já só vem ao museu e volta para casa. O Museu do Iraque está aberto das 9h às 13h30, com ou sem visitantes.
Ainda no seu escritório, Muhsin Hassan Ali está impaciente para pôr fim a mais um dia. Tem tempo para dizer que gostava muito de "poder reabrir como no passado, com as galerias organizadas de acordo com a época histórica e com a melhor tecnologia do mundo". Depois, remata com as frases mais longas que lhe ouvimos: "Espero que todos os artefactos sejam recuperados porque todos são importantes. Cada artefacto conta uma história, todos mudaram a história e todos nos dizem qualquer coisa que não sabíamos antes de os encontrar."
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