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Só mesmo o som melódico de uma gaita-de-foles ou um repicar mais estridente de uma flauta de tamborileiro para alterar a profunda paz bucólica da aldeia de Constantim, na corda raiana de Miranda do Douro. E quando acontece é, por norma, sinal de que Célio Pires está a experimentar a sonoridade de uma nova criação
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A população desta terra colada à província espanhola de Castela e Leão e vizinha da Galiza, com pouco mais de 140 pessoas, já se habituou às sonoras experiências do gaiteiro e, por vezes, quando a melodia se estende por alguns minutos, dá descanso à sachola e “alegra os ouvidos”.
Por estes dias, entre amanhã e domingo, decorre em Miranda do Douro e Vimioso o primeiro Congresso Internacional da Gaita-de-Foles Mirandesa. Trata-se, dizem os organizadores, do primeiro passo para a recuperação da autenticidade da gaita-de-foles desta região e, quem sabe, da sua certificação, no sentido de preservar a autenticidade e as características únicas deste tão peculiar e arcaico instrumento.
Digamos que, neste congresso, pode acontecer à gaita o que aconteceu à língua, ou seja, tal como a língua mirandesa passou de geração em geração, apenas pela tradição oral dos seus falantes, também o som da gaita-de-foles perdurou no ouvido dos velhos gaiteiros ou nos seguidores dos construtores deste instrumento. A língua ganhou regras, depois do reconhecimento há quase dez anos, e a gaita-de-foles pode ver, em consequência deste congresso, a sua singularidade estética e sonora devidamente reconhecida.
Célio Pires é um dos mais conhecidos construtores de gaitas-de-foles e outros instrumentos tradicionais do Planalto Mirandês e não tem dúvidas de qualquer espécie: “A nossa gaita-de-foles é muito diferente da gaita galega, na escala e na sonoridade”.
Diz este construtor – que há quase duas décadas fura pequenos troncos de anguelgue (madeira existente nas arribas do Douro), buxo ou urze e dá forma a sopretes, roncos e ponteiras – que a gaita-de-foles mirandesa “tem o som mais grave e uma escala destemperada, exótica, se quisermos”.
“O que nós queremos é manter o timbre mirandês e, ao mesmo tempo, colocar a nossa gaita em pé de igualdade com as galegas, ou seja, adaptar a escala de forma a que possam acompanhar qualquer outro instrumento”, explica Célio Pires.
No último ano, um grupo de trabalho procurou, no âmbito de um projecto de investigação apoiado pela Delegação da Cultura do Norte, as particularidades deste instrumento com vista ao seu reconhecimento e padronização.
Paulo Meirinhos, do grupo Galandum Galandaina, que liderou o projecto, adiantou ao Correio da Manhã que “foram estudadas 25 gaitas, algumas com mais de 200 anos, e concluímos o que já suspeitávamos: estamos perante um instrumento típico de uma região que merece ser preservado”.
Referindo que foi graças aos pauliteiros que a gaita conseguiu sobreviver através dos tempos, Paulo Meirinhos esclareceu que “um dos aspectos mais relevantes se prende com o facto de a gaita mirandesa ter conservado até hoje escalas e afinações ancestrais, talvez pré-barrocas”.
No Planalto Mirandês existem pelo menos cinco dezenas de gaiteiros e construtores de gaitas, embora nem todos façam a gaita-de-foles típica da região.
FALTAM FOLES POR CAUSA DA DIMINUIÇÃO DOS REBANHOS
É um dos maiores problemas com que se debate Célio Pires no fabrico das gaitas-de-foles: a dificuldade em arranjar peles de cabrito para fazer os foles, devido à diminuição a que, nos últimos tempos, se tem assistido dos rebanhos de caprinos.
“Isso é sempre uma dor de cabeça. O ideal para fazer um fole é a pele de um cabrito com cinco a sete quilos de peso. Como os rebanhos são cada vez menos, é muito complicado para nós encontrar-mos peles como deve ser”, disse o fabricante, lembrando ainda que “uma pele demora mais de 20 dias a curtir e também são cada vez menos as pessoas que o fazem”.
De resto, também é possível fazer uma gaita-de-foles com peles sintéticas, que até são mais resistentes e mais fáceis de trabalhar, mas a verdade é que quem compra uma gaita-de-foles, sobretudo uma gaita mirandesa, quer pele verdadeira e não a solução sintética. “Mesmo que seja para pendurar numa parede, as pessoas querem a pele verdadeira, não gostam de imitações”, avançou Célio Pires, realçando que “o tipo de pele do fole nada tem a ver com a qualidade sonora do instrumento”.
“O tipo de som depende da madeira, da palheta e, sobretudo, da forma como a gaita é construída: da escala, ou seja, da localização dos buracos na ponteira e da dimensão do cone interior”, explicou o construtor, referindo que “há inúmeros tipos de gaitas e de sonoridades”.
Voltando às peles para os foles, Célio Pires garantiu que agora tem de as procurar em Mogadouro, já que este é o concelho de Trás-os-Montes onde existe o maior número de rebanhos de caprinos. “Por aqui, os rabanhos são muito raros e quando existem têm poucos cabritos”.
A GRANDE DIFERENÇA ESTÁ NOS BURACOS DO TUBO MELÓDICO
Todas as gaitas-de-foles têm um fole, um soprete, um ronco (pode ter dois ou três) e uma ponteira, peça também conhecida por tubo melódico. Refira-se que o ronco é composto por três partes: ombreira, intermeia e bordão. Mas a grande diferença, o que realmente confere especificidade às diversas gaitas – galega, escocesa ou mirandesa – é a forma como é esquematizado o tubo melódico. Comparando com a gaita galega, que tem escala comum, a mirandesa tem os ouvidos muito descidos, o que faz com que a subtónica, também chamada sensível, apareça bastante grave. Depois, a tónica (Si bemol) aparece afinada; a nota Dó está a mais dez, ou seja, desafinada um pouco acima; a nota Re (a terceira) aparece muito grave, a menos 40; o quarto grau é muito agudo, meia nota acima; e o quinto grau (Fa) está ligeiramente acima. Bem vistas as coisas, é precisa uma enorme dose de imaginação e um traquejo notável para, com esta escala, conseguir acompanhar instrumentos de escala afinada. É por isso que, neste congresso, tocadores, construtores e estudiosos vão tentar encontrar uma solução que mantenha, por um lado, toda a sonoridade da gaita mirandesa e a torne, por outro, compatível com os instrumentos de palco, como as concertinas, por exemplo. Célio Pires declara que “é preciso algum cuidado”, mas assegura que “é possível”.
CURIOSIDADES
QUINZE DIAS A FAZER
Se o trabalho fosse sempre seguido e a uma média de oito horas por dia, uma gaita-de-foles com um ronco leva 15 dias a fazer. Trata-se de uma arte muito meticulosa, de grande paciência e que exige muita certeza no trabalho com brocas. Os tornos mecânicos, de grande precisão, vieram ajudar muito os construtores.
750 EUROS CADA UMA
Não é propriamente um instrumento barato, mas atendendo ao facto de levar 15 dias a fazer (dez por ano), não se estranha o preço de 750 euros. De resto, para além do trabalho que dá, deve ter-se em conta a raridade dos materiais utilizados, nomeadamente das madeiras (anguelgue, buxo, urze e freixo) e das peles para o fole.
BROCAS FEITAS À MÃO
Este é um daqueles instrumentos tão raros que até as peças para os construir têm de ser feitas à mão. É o caso das brocas, muitas delas cónicas, que não existem à venda em casas de ferragens do Mundo. É trabalho artístico de ferreiro.
OFICINA MUSEU
Até meados do próximo ano, Célio Pires vai ter uma oficina nova. Com mais espaço e mais luz. E sobretudo com uma área destinada a exposição museológica, onde haverá gaitas antigas, brocas com mais de 200 anos, tornos centenários e outros instrumentos que os antigos usavam no fabrico das gaitas-de-foles.
MAIS INSTRUMENTOS
Célio Pires não faz apenas gaitas-de-foles. Também fabrica flautas de tamborileiro (têm apenas três buracos), tambores, zabumbas e sanfonas. Estas são de fabrico extremamente complexo, demoram uma eternidade a construir e o preço pode ultrapassar os três mil euros. Mas o som vale a pena.
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Por estes dias, entre amanhã e domingo, decorre em Miranda do Douro e Vimioso o primeiro Congresso Internacional da Gaita-de-Foles Mirandesa. Trata-se, dizem os organizadores, do primeiro passo para a recuperação da autenticidade da gaita-de-foles desta região e, quem sabe, da sua certificação, no sentido de preservar a autenticidade e as características únicas deste tão peculiar e arcaico instrumento.
Digamos que, neste congresso, pode acontecer à gaita o que aconteceu à língua, ou seja, tal como a língua mirandesa passou de geração em geração, apenas pela tradição oral dos seus falantes, também o som da gaita-de-foles perdurou no ouvido dos velhos gaiteiros ou nos seguidores dos construtores deste instrumento. A língua ganhou regras, depois do reconhecimento há quase dez anos, e a gaita-de-foles pode ver, em consequência deste congresso, a sua singularidade estética e sonora devidamente reconhecida.
Célio Pires é um dos mais conhecidos construtores de gaitas-de-foles e outros instrumentos tradicionais do Planalto Mirandês e não tem dúvidas de qualquer espécie: “A nossa gaita-de-foles é muito diferente da gaita galega, na escala e na sonoridade”.
Diz este construtor – que há quase duas décadas fura pequenos troncos de anguelgue (madeira existente nas arribas do Douro), buxo ou urze e dá forma a sopretes, roncos e ponteiras – que a gaita-de-foles mirandesa “tem o som mais grave e uma escala destemperada, exótica, se quisermos”.
“O que nós queremos é manter o timbre mirandês e, ao mesmo tempo, colocar a nossa gaita em pé de igualdade com as galegas, ou seja, adaptar a escala de forma a que possam acompanhar qualquer outro instrumento”, explica Célio Pires.
No último ano, um grupo de trabalho procurou, no âmbito de um projecto de investigação apoiado pela Delegação da Cultura do Norte, as particularidades deste instrumento com vista ao seu reconhecimento e padronização.
Paulo Meirinhos, do grupo Galandum Galandaina, que liderou o projecto, adiantou ao Correio da Manhã que “foram estudadas 25 gaitas, algumas com mais de 200 anos, e concluímos o que já suspeitávamos: estamos perante um instrumento típico de uma região que merece ser preservado”.
Referindo que foi graças aos pauliteiros que a gaita conseguiu sobreviver através dos tempos, Paulo Meirinhos esclareceu que “um dos aspectos mais relevantes se prende com o facto de a gaita mirandesa ter conservado até hoje escalas e afinações ancestrais, talvez pré-barrocas”.
No Planalto Mirandês existem pelo menos cinco dezenas de gaiteiros e construtores de gaitas, embora nem todos façam a gaita-de-foles típica da região.
FALTAM FOLES POR CAUSA DA DIMINUIÇÃO DOS REBANHOS
É um dos maiores problemas com que se debate Célio Pires no fabrico das gaitas-de-foles: a dificuldade em arranjar peles de cabrito para fazer os foles, devido à diminuição a que, nos últimos tempos, se tem assistido dos rebanhos de caprinos.
“Isso é sempre uma dor de cabeça. O ideal para fazer um fole é a pele de um cabrito com cinco a sete quilos de peso. Como os rebanhos são cada vez menos, é muito complicado para nós encontrar-mos peles como deve ser”, disse o fabricante, lembrando ainda que “uma pele demora mais de 20 dias a curtir e também são cada vez menos as pessoas que o fazem”.
De resto, também é possível fazer uma gaita-de-foles com peles sintéticas, que até são mais resistentes e mais fáceis de trabalhar, mas a verdade é que quem compra uma gaita-de-foles, sobretudo uma gaita mirandesa, quer pele verdadeira e não a solução sintética. “Mesmo que seja para pendurar numa parede, as pessoas querem a pele verdadeira, não gostam de imitações”, avançou Célio Pires, realçando que “o tipo de pele do fole nada tem a ver com a qualidade sonora do instrumento”.
“O tipo de som depende da madeira, da palheta e, sobretudo, da forma como a gaita é construída: da escala, ou seja, da localização dos buracos na ponteira e da dimensão do cone interior”, explicou o construtor, referindo que “há inúmeros tipos de gaitas e de sonoridades”.
Voltando às peles para os foles, Célio Pires garantiu que agora tem de as procurar em Mogadouro, já que este é o concelho de Trás-os-Montes onde existe o maior número de rebanhos de caprinos. “Por aqui, os rabanhos são muito raros e quando existem têm poucos cabritos”.
A GRANDE DIFERENÇA ESTÁ NOS BURACOS DO TUBO MELÓDICO
Todas as gaitas-de-foles têm um fole, um soprete, um ronco (pode ter dois ou três) e uma ponteira, peça também conhecida por tubo melódico. Refira-se que o ronco é composto por três partes: ombreira, intermeia e bordão. Mas a grande diferença, o que realmente confere especificidade às diversas gaitas – galega, escocesa ou mirandesa – é a forma como é esquematizado o tubo melódico. Comparando com a gaita galega, que tem escala comum, a mirandesa tem os ouvidos muito descidos, o que faz com que a subtónica, também chamada sensível, apareça bastante grave. Depois, a tónica (Si bemol) aparece afinada; a nota Dó está a mais dez, ou seja, desafinada um pouco acima; a nota Re (a terceira) aparece muito grave, a menos 40; o quarto grau é muito agudo, meia nota acima; e o quinto grau (Fa) está ligeiramente acima. Bem vistas as coisas, é precisa uma enorme dose de imaginação e um traquejo notável para, com esta escala, conseguir acompanhar instrumentos de escala afinada. É por isso que, neste congresso, tocadores, construtores e estudiosos vão tentar encontrar uma solução que mantenha, por um lado, toda a sonoridade da gaita mirandesa e a torne, por outro, compatível com os instrumentos de palco, como as concertinas, por exemplo. Célio Pires declara que “é preciso algum cuidado”, mas assegura que “é possível”.
CURIOSIDADES
QUINZE DIAS A FAZER
Se o trabalho fosse sempre seguido e a uma média de oito horas por dia, uma gaita-de-foles com um ronco leva 15 dias a fazer. Trata-se de uma arte muito meticulosa, de grande paciência e que exige muita certeza no trabalho com brocas. Os tornos mecânicos, de grande precisão, vieram ajudar muito os construtores.
750 EUROS CADA UMA
Não é propriamente um instrumento barato, mas atendendo ao facto de levar 15 dias a fazer (dez por ano), não se estranha o preço de 750 euros. De resto, para além do trabalho que dá, deve ter-se em conta a raridade dos materiais utilizados, nomeadamente das madeiras (anguelgue, buxo, urze e freixo) e das peles para o fole.
BROCAS FEITAS À MÃO
Este é um daqueles instrumentos tão raros que até as peças para os construir têm de ser feitas à mão. É o caso das brocas, muitas delas cónicas, que não existem à venda em casas de ferragens do Mundo. É trabalho artístico de ferreiro.
OFICINA MUSEU
Até meados do próximo ano, Célio Pires vai ter uma oficina nova. Com mais espaço e mais luz. E sobretudo com uma área destinada a exposição museológica, onde haverá gaitas antigas, brocas com mais de 200 anos, tornos centenários e outros instrumentos que os antigos usavam no fabrico das gaitas-de-foles.
MAIS INSTRUMENTOS
Célio Pires não faz apenas gaitas-de-foles. Também fabrica flautas de tamborileiro (têm apenas três buracos), tambores, zabumbas e sanfonas. Estas são de fabrico extremamente complexo, demoram uma eternidade a construir e o preço pode ultrapassar os três mil euros. Mas o som vale a pena.
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in Correio da Manhã 2007.10.31
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» Comentários no CM on line
Sabado, 3 Novembro
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- A.Fernandes Que grande alegria eu tinha quando lá para os lados de Mogadouro, nas festas em que se falava que havia gaiteiros, o bombo, e a caixa, e quando eles chegavam lá corria eu com uma grande alegria,um grande obrigado au Sr. Célio Pires e antepassados, pela continuação do fabrico das gaitas-de-foles.
Sexta-feira, 2 Novembro
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- paula E vivam os Mirandeses. Tenho muito orgulho da terra onde nasci.
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Quarta-feira, 31 Outubro
Quarta-feira, 31 Outubro
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- Pedro Lopes Parabens Celio Pires.E um grande musico e grande divugador do Planalto Mirandes
- Raúl Silva Parabéns aos mirandeses que continuam numa luta incansável para preservar e para divulgar as nossas tradições.
- victor batista Eu proprio que juntamente com a posta a mirandesa,e um valor a preservar,nunca mais esquecerei,o sabor,o paladar,o prazer de comer uma boa posta,ao som da gaia de foles,mas para isto,nao ha subsidios.
- filipe paiva PARABÉNS A ESTE HOMEM!!Este senhor devia ter um subsidio vitalicio do Ministério da Cultura bem como ser ajudado a erguer uma escola.
- Raúl Silva Parabéns aos mirandeses que continuam numa luta incansável para preservar e para divulgar as nossas tradições.
- victor batista Eu proprio que juntamente com a posta a mirandesa,e um valor a preservar,nunca mais esquecerei,o sabor,o paladar,o prazer de comer uma boa posta,ao som da gaia de foles,mas para isto,nao ha subsidios.
- filipe paiva PARABÉNS A ESTE HOMEM!!Este senhor devia ter um subsidio vitalicio do Ministério da Cultura bem como ser ajudado a erguer uma escola.
2 comentários:
Acho muito louvável este congresso e a intenção que nele existe; é bom preservar o genuíno.
Maria Mamede
Um bem haja a organização e a todos os participantes que vieram enaltecer o belo som da gaita e gaiteiros mirandeses.
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