Discurso de Lula da Silva (excerto)

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sexta-feira, 10 de junho de 2011

POVO essa palavra que nos persegue - Ana Dias Cordeiro



Rui Gaudêncio
Exposição

POVO essa palavra que nos persegue

23.06.2010 - Ana Dias Cordeiro




Para as comemorações do centenário da República, o Museu da Electricidade resgatou "o povo" do esquecimento e mostra como ele foi representado, ao longo da História, na arte e na política
Se for uma viagem, e pode ser, a exposição "POVOPeople" começa com uma galeria de retratos. São pessoas de várias idades, regiões ou países, e nesses olhares mil histórias se imaginam. Nesta primeira paragem, na exposição que está no Museu da Electricidade, em Lisboa, até 19 de Setembro, as fotografias ou pinturas reflectem a ideia de povo, na sua origem. Olha-se para a raiz de uma palavra que levou a outras como "povoamento" ou "população" - e depois ganhou dimensão social, económica, cultural e política com o conceito de cidadania, nas revoluções francesa e americana e com os movimentos de libertação fora do espaço ocidental.
Na mesma galeria de retratos, ao centro, um busto da República do escultor Rui Sanches, foi criado e encomendado para lembrar a razão de ser desta exposição: o centenário da República que, este ano, se comemora.
Na parede, uma cronologia percorre uma tela, completada por pequenos monitores que mostram filmes de arquivo da RTP e da Cinemateca, dos grandes acontecimentos ligados à noção de povo: o regicídio, a proclamação da República, o 28 de Maio, as crises estudantis, a primeira partida dos militares para a guerra nas ex-colónias, e outras, acabando com o movimento de solidariedade para com o povo de Timor-Leste em 1999.
Começa aqui esta viagem pelas múltiplas representações do "povo" na arte e, como se verá, na política, no sentido em que esta também influenciou a forma como esse "povo" se representou na arte. São momentos e imagens que podem ou não fazer uma ponte com outras obras expostas nesta ou noutras salas, organizadas por "slogans", frases escolhidas para reflectir a pluralidade de olhares, explica José Manuel dos Santos, director cultural da Fundação EDP e comissário-coordenador da exposição.
No imaginário português, o "povo" ficou associado ao 25 de Abril que é uma festa do povo e dos povos, refere o historiador José Neves, professor e investigador do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, e comissário da parte científica da exposição. E é a frase "O Povo é quem mais ordena", da canção de Zeca Afonso que se tornou num hino do 25 de Abril, a escolhida para a sala que expõe a dimensão política da palavra "povo".
Para a ideia de povo trabalhador, foi escolhida uma citação bíblica, "Ganharás o pão com o suor do teu rosto" e, entre outras, há "Se isto não é o povo, onde está o povo?", que reúne os vários rostos da exclusão, onde estão três gravuras da série "Aborto" de Paula Rego, pintados depois do referendo não conclusivo de 1998, sobre a descriminalização do aborto em Portugal, ou desenhos do poeta António Gancho que chegou a expor no Centro de Arte Moderna, e viveu grande parte da vida e morreu (em 2006) na instituição psiquiátrica do Telhal.
O povo era representado de uma maneira pelos neo-realistas, de outra pelos surrealistas, de uma forma nos discursos do Estado Novo e de outra nas intervenções do pós-25 de Abril. Durante a monarquia, diz José Neves, "a passagem a cidadãos surge com o liberalismo no século XIX".
O povo do Presidente
O que pretende mostrar "POVOpeople" é esse cruzamento de ideias, possível com "grandes palavras" que transportam "uma história e uma grande iconografia atrás delas", continua José Manuel dos Santos. A exposição propõe "um olhar contemporâneo, de como olhamos o povo hoje, mas também as representações que ele foi tendo ao longo do tempo".
A palavra contém nela uma dimensão social, política e cultural, mas também erótica, realça o comissário, que nota o poema "Povo" de Pedro Homem de Mello, em que este aristocrata diz: "Dormi com eles na cama.../Tive a mesma condição". "Há também essa ideia de erotismo e tudo está aqui presente" nesse olhar cruzado, conclui.
"Começámos pelo princípio: o fundamento da República e da democracia é a ideia de povo. E fomos perguntar: O que significa esta palavra? Qual é a história dela? Que memória transporta, quando falamos dela? E como foi ela representada artisticamente?", salienta José Manuel Santos. É a primeira explicação para a escolha do tema da exposição. A outra: "É como uma palavra que nos persegue ou que nós perseguimos. No discurso político, é uma palavra que continua e está sempre a aparecer. É daqueles visíveis que se tornam invisíveis."
Não será preciso ir longe. Quem ainda este mês disse "Quanto mais se exigir do povo, mais o povo exigirá dos que o governam" foi Cavaco Silva, no discurso do 10 de Junho, refere o comissário, como sinal de que esta palavra continua a ser muito utilizada nos discursos políticos, mesmo se num sentido mais lato do que aquela que era a sua dimensão social, ligada aos ideais comunistas.
José Neves concorda que, quando surge, a palavra "povo" é sobretudo na sua dimensão social, nos discursos de dirigentes comunistas, por exemplo, ou na sua dimensão cultural e política, para expressar a ideia de "nação" ou país" noutros discursos. Porém, considera que "a palavra 'povo' caiu em desuso", mesmo se os seus derivados, como "popular", "populismo" ou "cultura pop" são de uso corrente. 
E se o Presidente da República evocou a palavra, foi numa dimensão, ainda presente, de "discurso populista em que se opõe o povo aos seus representantes que serão os políticos", considera José Neves.
Antes e depois do romantismo
Se há uma ideia fundadora, há também uma obra fundadora. "Ao longo do período que esta exposição cobre, a palavra 'povo' ganhou novos significados", diz João Pinharanda, comissário para a parte artística da exposição. O ponto de partida da representação visual do conceito 'povo' é, para o crítico de arte, a pintura de Cristino da Silva, "Cinco Artistas em Sintra" (1855), que instituiu o romantismo em Portugal, no sentido em que pela primeira vez os artistas se representam na paisagem com o povo.
"Aquela obra é a primeira" e "o ponto de partida para tudo o resto" nesta exposição, continua. No olhar para trás e para a frente, o comissário foi depois à procura de "povo" na arte. "Esta visão do 'antes' coincide com a História universal ou ocidental. A revolução americana e a declaração da independência de 1776 coincidem com o rococó em França, e o neoclassicismo com a Revolução Francesa de 1789."
Para marcar a política, escolheu "Regicídio" de Paula Rego, que não tinha sido mostrado desde a sua exposição na Fundação Gulbenkian nos anos 1980, e "Delacroix no 25 de Abril em Atenas" (1975) de Nikias Skapinakis, em que a imagem da liberdade aparece diante do povo.
Na mesma sala, cruzando diferentes visões, a instalação de imagens recolhidas pela artista portuguesa Ana Hatherly, que em 1975 filmou os cartazes e as imagens evocativas da revolução do 25 de Abril. No mesmo espaço, o cartaz do 25 de Abril, pintado por Vieira da Silva, com o poema de Sophia de Mello Breyner, "A poesia está na rua" e a intervenção de Cesariny "sempre esteve", reflecte esta ideia do poeta de que a poesia só podia emanar do povo, e que exprimiu a ideia surrealista de que não era preciso estar a idealizar o povo - como faziam os naturalistas ou os neo-realistas - e lamentava que tenha deixado de haver "voz do povo na literatura". Mas também os "cartoons" de João Abel Manta e de Rafael Bordalo Pinheiro com o "Zé Povinho".
Está na hora de resgatar a palavra "povo"
"POVOPeople" coloca as várias visões de "povo" em diálogo entre si, numa mesma sala ou num mesmo livro. A exposição parte de uma grande investigação que levou à publicação de três livros (Tinta da China): "Como se faz um povo", ensaios em História Contemporânea de Portugal sob coordenação do historiador José Neves, sobre como era o povo na República, no Estado Novo, depois do 25 de Abril, mas também o povo na televisão ou na revista à portuguesa, e ainda "A Política dos Muitos - Povo, Classes e Multidão", que reúne textos de pensadores contemporâneos sobre o tema e que remetem para os clássicos, Foucault, Kant ou Bourdieu, também sob coordenação de José Neves e de Bruno Peixe Dias, e "O que é o Povo".
Neste último, várias personalidades respondem à pergunta: "Quando diz Povo, o que está a dizer?". O interesse, diz José Manuel dos Santos, é confrontar pessoas que usam essa palavra, muitas vezes, sem talvez pensarem no seu significado: artistas, escritores, professores, historiadores, empresários, representantes dos media, mas sobretudo líderes partidários e o actual e ex-presidentes da República, que muitas vezes referem "povo" nos seus discursos.
As respostas mostram que este não é um tema consensual. Se ao longo da História, o "povo" deixou de ser uma parte para ser o todo, passando de objecto a sujeito, de súbdito a soberano, com a ideia de que "a soberania reside no povo" e de que "o povo somos todos nós", a verdade é que mesmo agora "não é um todo para toda a gente", nota José Manuel dos Santos. No mesmo livro, umas pessoas questionam, outras negam essa ideia de "povo" como representando "todos nós", outras ainda vêem-na como um ideal.
"Está na hora, agora, nos cem anos da República, de resgatar a palavra povo em Portugal. Está na hora de, ao dizer 'o povo', não querer dizer 'os outros', mas 'nós', todos. Nós todos. Cidadãos. Como outros dizem 'we, the people', nós dizermos 'nós, o povo'", escreve o ficcionista Nuno Artur Silva.
Essa ideia de "povo" como "todos nós" não existe para o secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, para quem povo é apenas quem se confronta "com o poder das classes dominantes", como também está ausente na visão do estratega da Revolução do 25 de Abril, o coronel Otelo Saraiva de Carvalho, para quem "povo é a grande massa, a parte mais numerosa mas a menos rica e a menos privilegiada da população de um Estado".
No oposto, o cientista político João Carlos Espada escreve: "'Povo' é uma expressão que raramente utilizo", porque considera que "não há um colectivo chamado 'Povo'". E acrescenta, citando a Declaração da Independência americana de 1776: "Há indivíduos e pessoas, cujos direitos são prévios aos governos, sendo o principal dever destes últimos respeitar e garantir aqueles direitos".
O povo é, para o ex-Presidente Jorge Sampaio, "indissociável de Portugal, do 25 de Abril, e da Constituição da República Portuguesa de 1976". Para Mário Soares, "o povo é global" e "os cidadãos portugueses são cidadãos europeus", enquanto Ramalho Eanes escreve que nos discursos que proferiu enquanto responsável político usou, com o mesmo fim, as palavras "nação", "povo", "país" e "população portuguesa".
Inclusão e exclusão
A noção de "povo", embora tenha evoluído ao longo da História, para se transformar na grande palavra da inclusão, continua sempre a ser de inclusão e exclusão, aponta o historiador José Neves. "Durante muito tempo, excluiu as mulheres ou os escravos. Hoje exclui os imigrantes." E no fim, a palavra adapta-se a diferentes imaginários.
Em muitos discursos do Estado novo, o povo confunde-se com a nação. Mas havia também a ideia de "bom povo português", e "Deus, Pátria e a Família", um primeiro discurso muito conhecido de Salazar, relembrado numa de muitas imagens cruzadas de uma instalação de Diana Andringa,  Bruno Morais Cabral e João Dias , a partir de arquivos da RTP e da Cinemateca.
Nesta instalação, umas imagens convocam outras, como as desse discurso de Salazar a que se segue a de uma mulher na rua na luta pela revogação da Concordata (assinada entre o Estado português e a Santa Sé em 1940) e pelo direito ao divórcio. Passam pelo mosaico de imagens nos ecrãs o Cardeal Cerejeira e a sua evocação de como "o povo está com as suas bandeiras a dizer 'Ámen' aos seus chefes espirituais", mas também Marcelo Caetano e Spínola, quando questionado sobre os presos políticos antes de se verem estes a serem soltos, ou ainda um preso político junto à janela da sua cela da cadeia de Peniche, e Álvaro Cunhal no 1º de Maio de 1974 a gritar: "O povo está com o MFA". "O povo está umas vezes em concordância, outras nalguma crítica mesmo no pós-25 de Abril", diz Diana Andringa, jornalista, realizadora e comissária para o audiovisual. 
O povo trabalhador, num dos quadros mais emblemáticos do neo-realismo, "O Gadanheiro" de Júlio Pomar, ao lado do povo em festa, de Álvaro Cunhal, numa mesma sala em que está também exposta a representação antiga do povo, com os fragmentos de dois presépios barrocos do escultor Machado de Castro, e a representação que dele era feita no Estado Novo com os bonecos regionais portugueses de Tom (Thomaz de Mello).
Numa outra sala, "Casas do Povo","Vista Interior" da artista Joana Vasconcelos abre, com os seus estores subidos, uma janela indiscreta para o quotidiano de objectos, numa casa imaginada dentro de uma vitrina exígua. Se isto é povo, "povo somos todos nós", parece querer dizer esta instalação da artista contemporânea, ecoando as palavras do poema de Maria Teresa Horta, em "O que é o Povo".
Ao juntar a nomes da arte contemporânea obras de Amadeo de Sousa-Cardoso, Graça Morais, Eduardo Nery, Almada Negreiros, entre outros, a exposição mostra que "o povo" se encontrou sempre ou quase representado. Esta é uma exposição que olha para trás, mas também para fora, com alguns artistas estrangeiros. E que termina com a frase "Sem mim, não há povo", num espaço em que o visitante fotografado se expõe depois num grande painel de imagens. Sem o visitante de "POVOpeople" não há povo.
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