Se muito na Revolução de 1974 parece algo atípico no contexto de meados dos anos 1970 (uma revolução de esquerda feita na rua com tanques, soldados rasos e capitães, em plena Europa Ocidental, e num período de progressiva desmotivação política, em que as guerrilhas urbanas em Espanha, na Alemanha, em França, na Itália, que procuravam concretizar a revolução pedida em 1968, ou eram desmanteladas ou se radicalizavam na clandestinidade), atípico seria também o artista que lhe ficou ligado indissociavelmente.
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Sem o culto do traço livre e “raivoso” de um Siné, um Reiser, um Steadman, um Ungerer, um Topor ou um Feiffer (os cartoonistas de referência por esses anos), João Abel Manta parecia o grafista menos propício aos tempos de caos e renovação que couberam a Portugal em 74-75. Sem grande portfolio na produção de cartazes, a credencial sine qua non para um grafista radical e progressista, JAM cultivava, para além disso, um leque de referências muito erudito, conseguindo criar cartoons plenos de graça com legendas comoCidadão português despedindo-se da família antes de se aventurar na leitura duma crítica ensaística (em cartoon de 1974). O seu estilo gráfico de traço limpo, perfeccionista e pleno de contrastes, devia mais ao seu trabalho como arquitecto, à influência da “linha clara” franco-belga dos anos 1940-50 e ao culto da linha de alguma produção gráfica nos anos da Pop do que à ebulição que sacudiu os aparos e os pincéis com tinta-da-china, sobretudo em França (e que tanto influenciou outro dos grandes cartoonistas portugueses dos Setenta, Vasco). Além disso, sendo filho de um pintor de renome, estar-lhe-ia mais rapidamente prevista uma carreira de pintor para galerias do que de “rabiscador” para jornais.
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Terá sido, contudo, a sua enorme experiência de trabalho como cartoonista na imprensa rigorosamente vigiada do Marcelismo (em que a inteligência e a astúcia de um desenho ou texto conseguiam, ainda assim, passar incólumes por entre as malhas da censura de um regime que precisava desesperadamente de uma fachada de liberalidade cosmopolita, obrigando o artista a um depuramento estilístico pedido pelos vários níveis de “leitura”), conjugado com uma enorme facilidade em usar de forma eficiente recursos recentemente disponíveis como as tramas da Pantone e a tipografia decalcável da Letraset, que lhe deu o músculo gráfico que lhe permitiu, em cima da hora, produzir uma assombrosa quantidade de desenhos sobre a vertiginosa cena política portuguesa do PREC. Tendo estado alguns desses desenhos políticos expostos no Museu Bordalo até ao início de Fevereiro, é difícil, perante a sua escala (alguns bem maiores do que A3) e a sua factura (colagens em perfeita união de desenho a tinta, tramas autocolantes e detalhes fotográficos ampliados ou aumentados em fotocopiadora – esses céus das gravuras oitocentistas que ele usou tão bem), não emitir um sinal de admiração.
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Espanto, por outro lado, é o que se sente quando nos confrontamos com o facto de a última exposição da obra de JAM aberta ao público ter sido em 1992, há dezassete anos (também no Museu Bordalo) e de nada, nem sequer uma pequena fracção deste portfolio espantoso estar em exposição permanente em qualquer local deste país. Espera-se que, no seguimento da doação do seu espólio ao Museu Bordalo, este possa abrir em breve uma sala permanente dedicada a JAM.
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As minhas duas visitas em Janeiro, num dia de semana e num Sábado, reforçaram este sentimento de algum “abandono”: a exposição, montada com bom gosto num curto espaço organizado temática e cromaticamente (a única relação gráfica directa e bem conseguida com os desenhos de JAM) pareceu-me mal publicitada (um painel apenas na frontaria do museu, numa zona, ali perto do viaduto do Campo Grande, pouco própria a contemplações de passeio) e mal servida nos seus suportes gráficos (apenas um folheto A4, com um péssimo tratamento tipográfico, um eco desse do-it-yourself no que toca ao design que parece reinar na CML desde o “célebre” caso da Agenda LX…). Lá dentro, e em ambas as visitas,uma sala rigorosamente vazia (com a excepção do proverbial segurança a impedir-me de fotografar o espaço “porque não pode ser”), em contraste chocante com o bulício mental que alguns daqueles desenhos ainda provocam.
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A exposição foi articulada com o lançamento da monografia de João Paulo Cotrim para a Assírio & Alvim, publicada no seguimento da atribuição do “Prémio Stuart” de 2008 (a edição tem o contributo do El Corte Ingles, que patrocina o Prémio), prémio que, sob outro patrocínio, JAM recebera em 1988. Mas, fora a presença deste (caro) livro na banca à entrada da sala de exposições temporárias, nada mais (para além dos souvenirs Bordalescos, claro): nem uma reprodução de um cartaz, um cartoon, uma ilustração em postal, poster ou uma tshirt. (Quem o quisesse, teria de ir à Trindade, à loja da Associação 25 de Abril, onde comprei as excelentes reproduções de 3 cartoons “revolucionários”, por preço de chuva, que encimam este post). As óbvias e excitantes possibilidades de fazer reviver estas obras pela sua integração com um merchandisingde qualidade parecem ter escapado a quem de direito: por exemplo, alguém se lembrou já de encomendar a criação de uma fonte com base na tipografia “infantil” de JAM, usada como legenda nos seuscartoons, e pô-la à disposição dos computadores nas escolas primárias?
Prova A
Entre um livro de preço algo proibitivo (que não li, mas que, como documento de imagens, não vale o excelente catálogo publicado em conjunto pela CML e pelo Museu em 1992, com design de José Brandão – Prova A) e um folheto pouco memorável (alguém poderia ter-se lembrado de que estava nos jornais a força e a justificação das obras de JAM, pelo que seria muito melhor uma pequena edição de 8 páginas em papel de jornal a 2 cores, mas se nem o JL se lembrou de fazer isso para a edição mil…), restava, claro, a exposição. Cobrindo com parcimónia mas acerto a obra de JAM desde os anos de 1950 (mas, curiosamente, omitindo as suas obras feitas para as galerias, como os desenhos sobre as peças de Shakespeare), o conjunto permitia, mesmo numa visita apressada, comprovar o génio gráfico que esteve na sua origem. Os desenhos são extraordinários, sobretudo, pelo facto de manterem o seu impacto seja a que distância o observador estiver deles: passo a passo, da composição geral e harmonia das cores numa vista geral, à leitura da legenda, à observação da textura das colagens e, finalmente, à inspecção das ondulações e terminações de algumas linhas a pincel “seco”, os olhos não têm um momento de tédio. Apesar de uma gritante falta de suporte audiovisual (alguém se lembrou de filmar e entrevistar JAM e passar o resultado aos visitantes da sala?), a pura qualidade gráfica dos trabalhos é suporte de sobra.
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João Abel Manta não merece estar em “museus”. “Museologizar” uma obra tão poderosa e tão interventiva estética e politicamente é anestesiar os seus (ainda muito fortes) valores extra-artísticos e condenar a sua riqueza plástica ao abandono. Isto, curiosamente, numa época em que, pelos seus assustadores paralelos mentais com os anos do Marcelismo, Portugal necessita cada vez mais de um novo JAM. E que Caricaturas ele não faria destes últimos 20 anos!
,http://pedromarquesdg.wordpress.com/2009/03/20/ainda-joao-abel-manta-apontamentos-sobre-uma-exposicao/
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