Discurso de Lula da Silva (excerto)

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terça-feira, 11 de março de 2008

M. Butterfly - cena final


wykfelix



M. Butterfly (M. Butterfly),
de David Cronenberg (EUA, 1993)

mbutterfly.gif (60143 bytes)

* Luiz Rezende Filho

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Qualquer um que aprecie, moderadamente que seja, os filmes de David Cronenberg, ao assistir a M Butterfly, fará, de cara, mais ou menos a mesma avaliação: Cronenberg se vendeu definitivamente ao cinema comercial, abandonou seus temas mais caros, se rendeu a uma maneira esquemática de narrar, fez concessões ao padrão médio de gosto do público... Pois essa é a única justificativa que pode passar pela cabeça de um fã seu, para explicar aquilo que parece ser um grande deslize na carreira do autor Cronenberg.

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Tudo até que é bem interessante, e até simpático... Toda aquela discussão sobre representação, máscara, teatro, verdade, mentira, o jogo da representação dentro da representação, do envolvimento do personagem num teatro cujas rédeas ele acredita ter, etc. Mas um espectador mais cético pode achar ridículo demais ver Jeremy Irons apaixonado por um transformista chinês, que não engana ninguém. É impossível reconhecer aí qualquer uma das características tão presentes nos filmes de Cronenberg: nada dos temas e dos personagens bizarros de seus filmes anteriores, nenhum tipo de monstruosidade ou paranormalidade, nenhum sinal de cadáveres grotescos ou de mutilações, muito menos da alucinação fantástica dos vícios habituais. Tudo parece se resumir em uma única palavra, que nunca anteriormente, pelo menos, poderia ter sido usada com qualquer propriedade para se referir a Cronenberg: convencional.

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Mas Cronenberg, com uma cena (quando o filme já está quase no fim), consegue recolocar tudo. O filme ganha não só um novo sentido, mas fica claro que era imprescindível que tudo tivesse transcorrido daquela maneira. Há um grande choque dramático entre tudo o que se passou até então e o que se dará desse momento em diante.

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A partir do julgamento do personagem de Jeremy Irons passamos a ver talvez algumas das cenas mais constrangedoras, angustiantes, senão repulsivas (termo tão caro aos seus críticos e admiradores), de toda a "obra" de Cronenberg. Toda a tematização da mentira, do falso, que poderia parecer primária no início, é recolocada a níveis sufocantes: a representação aparece como uma necessidade e um desejo vitais, dos quais não podemos prescindir, e sobre a qual a verdade só pode ter efeitos nefastos e altamente destrutivos. A verdade só vem produzir uma outra representação, ainda mais profunda, mas não menos falsa: a do homem, uma piada para um audiência de presídio, que se transforma no mesmo personagem do qual antes ele acreditava ser o senhor. Uma inversão de papéis que exprime ainda mais fortemente a perversidade, o sadismo, anormalidade da verdade. Que outro tema poderia ser mais "cronenberguiano"? Mas também, em que outro momento Cronenberg foge mais às características que fãs e crítica acreditaram por bem lhe atribuir? Quando essa tragédia terrível termina não é difícil imaginar, então, Cronenberg rindo ironicamente, ao fundo, e dizendo: "todos os enganos são possíveis, e podem até encontrar a sua dignidade, mas não me tomem por aquilo que eu não sou".

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* Victor Nogueira

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Outro filme que vi foi M.Butterfly. A Madame Butterfly é uma ópera que canta os amores dum ocidental por uma japonesa, que se suicida quando aquele a abandona, comoventemente para o público ocidental. Com base nisso, o filme narra a paixão (verídica) dum diplomata francês pela intérprete de M.Butterfly no Teatro de Pequim. E o que parecia uma grande paixão, iniciada na China e prosseguida em Paris, anos mais tarde, não passaria duma sórdida história da paixão e degradação dum homem apaixonado por outro homem, ambos presos e condenados por espionagem.

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Claro que uma leitura linear pode levar-nos a perguntar como pode um diplomata desconhecer que na China os papéis femininos eram interpretados por homens (como aliás na Europa, nos tempos de Shakespeare ou de Gil Vicente) ou como pode um homem manter uma relação amorosa com uma mulher (afinal homem) que simula uma gravidez ( que implica a existência de relações sexuais ) sem que alguma vez durante anos o suspeite? (Aliás caso semelhante teria acontecido em Portugal com a história da generala). Mas é o próprio francês que nos dá a resposta, quando afirma que se apaixonou não por um homem, mas sim por uma mulher criada por um homem (e quem melhor que um homem pode saber o que um homem pretende duma mulher, perguntar-se-á? Ou, na mesma ordem de ideias quem melhor que uma mulher para saber o que uma mulher espera de um homem? ). E no fim é o francês que se suicida, num acto teatral, travestido de Madame Buterfly, enquanto o espião chinês é deportado para a China).

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Afinal todo o amor (ou a paixão?) não será senão uma encenação, uma ilusão dos sentidos, uma elaboração mental, uma construção ( social ? ) que em certa medida a sabedoria popular expressa em ditos do género O amor é cego ou Quem o feio ama, bonito lhe parece ?! O que me levaria ao programa do Júlio Machado Vaz, Sexualidades, que já não via há muito tempo, ontem dedicado ao namoro e ao casamento ou ajuntamento, ao (des)conhecimento das pessoas, aos papeis masculinos e femininos, com filhos, filhas e algumas mães e nenhum pai. Por sinal todas as mães presentes (nenhuma divorciada ou solteira) com ausentes mas compreensivos maridos. É impressionante como a maioria dos homens e das mulheres (esposas e mães incluídas) se educam mutuamente, não para a liberdade e o respeito mútuo, não para a entreajuda e a solidariedade, mas para a negação disto tudo. Aqueles seriam pais e filhos diferentes da maioria, apesar de tudo. É difícil ser diferente, querer construir uma relação à margem das convenções sociais, que não libertam mas aprisionam. (MMA - 1993.09.20)

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AS DUAS BORBOLETAS – M. BUTTERFLY por D Cronenberg 1993
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Ag. 2004 M Guilherme Gama
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Estamos então a falar de um filme arrebatador de D Cronenberg que se baseia numa história verdadeira, não nos esqueçamos, e que, como a poesia do Camões, parte de um mote – a ópera Madame Butterfly – para através de umas gloriosas voltas, aqui de argumento, não cessar de nos espantar.
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O filme parte de dois actores aqui portentosos, Jeremy Irons, e John Lone. Vamos falar primeiro de Irons. Cronenberg não faz dele um homem simpático. Trata-se de um contabilista que chega em 1964 à embaixada francesa em Pequim. Não se detem a transformá-lo num francês afectado, só o embaixador inventa uma pronúncia decorativa. Irons é o middle class clerk europeu tiquento que viu no Oriente uma oportunidade de subir na vida. Não precisa de ter nacionalidade mas sim estar do lado de lá da linha este-oeste. E tem uma pequenina missão: limpar as fraudes da pequena informação dos serviços secretos: little man with a mission who thinks he’ll get somewhere. E até chega a ser promovido, para um gabinete demasiado grande para ele.
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E onde entra John Lone ? Aqui começa o filme de Cronenberg.
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John Lone é uma diva da ópera de Pequim que fascina - Song Liling - quando interpreta a ária central de Madame Butterfly numa recepção mundana. Porquê ? Talvez este homem nunca antes se tivesse fascinado com nada. As a common man, talvez a simples história de submissão e abandono por trás da ópera o tenha tocado, se calhar não, e apenas o arquétipo sexual da história tenha sido o déclic. As primeiras linhas de diálogo (Cronenberg torna todas as palavras de Lone essenciais para entender o que se passa) são elucidativas. Song Liling lembra o odioso da história de M Butterfly, faz as exéquias dos japoneses e depois convida-o para visitar a Ópera de Pequim: “para educação”.
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Não sei porquê este filme lembra-me Hitchcock, talvez pela palavra que vou empregar a seguir: espiral.
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A paixão está atiçada, Lone educa Irons. Curiosamente logo na recepção alguém tinha tido que a diva “não tinha voz”. Pois, não tem voz, uma cara andrógina, sem peito, e uma voz que afunda o filme em abismos insuspeitados, pelo menos para Irons. Após o primeiro encontro em casa de Mme Liling o projecto de Irons está feito e aprovado e explicita-se dias depois: “Are you my butterfly ?” Dias em que Irons desaparece, força ou julga forçar missivas de desespero oriental. É assustadoramente promovido e a esposa começa a revistar-lhe os bolsos e a aperceber-se de que algo não está bem.
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Talvez este pequeno homem se soubesse inexoravelmente pequeno no Ocidente. E a ideia de dar um final feliz à ópera que jaz como mote represente o seu ideal de grandeza. “But never East and West shall understand each other”, e Irons não sabe ouvir os sinais. “We are enbarquing into the most forbidden of loves !”, diz Lone, mantendo as roupas vestidas e ocultando assim espantosamente a Irons a sua masculinidade. A mãe teria ensinado a Lone como satisfazer um homem, o filme de Cronenberg ganha aqui a sua dimensão maior e Irons pela manhã é um homem satisfeito. Tem uma hesitação “missionária”, mas depois voltará a ser fiel à sua borboleta e assim continuará até ao tribunal em França, pelos vistos.
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Este é então um filme sobre a transsexualidade. Sobre uma mulher num corpo de homem, ou o seu sonho, ou o seu delírio em epífise na ópera de Pequim. Funcionário do partido ? Não eram todos então ? Não há voz mais hipnotizadora, nem movimentos mais calculados. René é o seu rapaz, como faz qualquer mulher dá-lhe a provar o sabor enganador do domínio, quando o caudal do amor é sempre ela que o controla. E tem esta mulher a vantagem de ser homem: (sendo um homem)“she knows the best ways to please a man”. E aí se mantém o enigma das palavras, o teatro falado que é a única verdade de Song Liling, e a única verdade neste filme, que poderia ser narrado ouvindo apenas as deixas dela/dele. Ela só terá vivido realmente (como mulher) nos poucos dias de idílio que teve com René. E a falsa gravidez cria a única solução possível: como bom ocidental René vê Song Liling como mulher e logo santa, as mãos não procuram mais. Como seria possível esta gravidez ? Estamos em delírio, isso não importa.
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O desenrolar do filme acelera quando após o hiato da Revolução Cultural, uma parte do filme um pouco decorativa, Lone nos surpreende em Paris. Julgamos que temos mais romance mas René na sequência seguinte é preso pelos serviços secretos franceses.Passaram porém 14 anos de vida marital em segundos de filme. E continuamos apenas a ouvir Song Liling, a voz que nos conta a história. A traição, a espionagem, o embuste filial, tudo isso se torna secundário no julgamento. A cara é agora masculina mas a voz é a mesma. O espanto sobre como aqueles dois corpos conviveram durante esses anos que não são filmados não cessa. No carro celular Song Liling percebe porém que “never East and West shall understand each other”, e que René não consegue olhar para além do homem (nu) que tem à sua frente, e ver o essencial. Desiludida esta mulher vai-se embora.
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O fim de Madame Butterfly/René Gallimard, apesar das pinturas e da indumentária é o fim de um ocidental que julga que “que amou uma mulher – perfeita – criada por um homem”. Esse homem que afinal era uma mulher e que o amou profundamente, ou também através dele a possibilidade de ser amada como mulher. René Gallimard no fim é uma Butterfly/ uma borboleta comum, queimada pela luz de um amor que o superou.
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M Butterfly não é um filme sobre a política. Tangencialmente aborda as questões Este/Oeste. E não é um filme homossexual.
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O filme de David Cronenberg é sobre a transsexualidade, ou melhor, sobre a sexualidade. E sobre o difícil jogo que pode haver entre o desejo do “eu” e a marca corporal que o delimita. Marca de água que ainda não aprendemos a romper.
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imsucks.com/cinema


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