Cultura
Em 1936, um ano antes de sua morte, Noel Rosa compôs para Aracy de Almeida a inspirada e provocativa O X do Problema. A letra conta a história de uma sambista que, à semelhança de Aracy, foi "educada na roda de bamba" e "diplomada na escola de samba" do Estácio de Sá.
Por André Cintra
O talento da moça chama a atenção até da burguesia carioca, que a convida a descer o morro para ser uma “estrela de cinema” — “a rainha de um grande palácio”. Mas assédio nenhum tira a sambista de sua vocação: “Nasci no Estácio / Não posso mudar minha massa de sangue / Você pode crer que palmeira do Mangue / Não vive na areia de Copacabana”.
Uma das ironias de O X do Problema é que Noel e Aracy conviveram numa época em que suas canções, embora cada vez mais populares através dos programas de rádio, não sensibilizavam boa parte das elites. Conforme detalha o professor acadêmico e pesquisador Marcos Napolitano em A Síncope das Ideias (Editora Fundação Perseu Abramo), geralmente ocorria o contrário: o preconceito de classe é que dava a tônica de muitas das críticas ao samba nas décadas de 1930 e 1940.
Na revista Voz do Rádio, Almeida Azevedo se refere ao “horrível samba de morro, que à força de ser maltratado, seviciado, anda por aí desamparado, sem juízes de menores que olhe por ele, sem polícia de costumes que o proteja, sujo, malcheiroso, etc.”. Igualmente reacionário é um artigo publicado em Scena Muda e escrito por Renato Alencar, que divide o samba em duas vertentes — o de morro e o de arte. Ao primeiro, que envolve “batucada, dança litúrgica bárbara e sensual”, Alencar não atribui “beleza nenhuma”, uma vez que é “monótono e triste como todo produto de povos torturados e incultos”.
Álvaro Salgado, diretor da Rádio MEC, segue a linha e afirma que “o samba é feio, indecente, desarmônico e arrítmico”. Não que, para Salgado e outros porta-vozes da elite na imprensa, o samba de morro não tivesse salvação. Era preciso “higienizá-lo”, livrá-lo das impurezas. “Sejamos benévolos: lancemos mão da inteligência e da civilização”, propõe o diretor da Rádio MEC. “Tentemos devagarinho torná-lo mais educado e social. Pouco nos importa de quem ele seja filho.”
“Cultura de bacilos”
Se é verdade que o samba não precisou de higienização para se tornar o gênero brasileiro por excelência, também é fato que o viés de classe ainda contamina a relação entre grande mídia e manifestações culturais de origem popular. Em 2007, quando o diário americano The New York Times se atreveu a elogiar a cultura hip-hop brasileira, a grande mídia estrebuchou. Na Folha de S.Paulo, Barbara Gancia esculhambou o hip-hop. Tachou o movimento de “cultura de bacilos”, com seu “lixo musical” que “é sexista, faz apologia à violência e dói no ouvido”.
A reação às bobagens da colunista foi imediata: centenas de pessoas — não necessariamente adeptas ou simpatizantes do hip-hop — enviaram mensagens de protestos, acusando nas palavras de Barbara Gancia generalizações, estreiteza teórica, elitismo e preconceito. Como os primeiros e mais coléricos detratores do samba, Barbara Gancia põe o povo à margem da cultura. Parece pensar que, se o “lixo musical” ficar na periferia, vá lá, aceitemos. Mas que diabo é isto de ser apoiado pelo Ministério da Cultura e ainda ter o aplauso do jornal mais tradicional e influente do mundo?
O reconhecimento internacional é outro elemento que preocupa, desde sempre, a crítica conservadora. Poucas vezes o samba foi tão atacado quanto em 1941, diante da visita de Walt Disney à escola de samba Portela. “Há uma espécie de samba que pode levar, sem receio, a etiqueta made in Brazil. Este outro, porém, o do morro (...), tem que ser ajustado a ambiente teatral para que possa ser mostrado a certos hóspedes”, defendia Renato Alencar.
Cacofonias, silêncios e sussuros
Todos esses exemplos, reunidos em A Síncope das Ideias, demonstram quão polêmica é “a questão da tradição na música popular brasileira” (subtítulo do livro). A tese do autor, Marcos Napolitano, é que o samba, a bossa nova e a moderna MPB estão na “linha formativa” — na “espinha dorsal” — dessa tradição. A trajetória dos três gêneros é marcada, embora jamais limitada, por dilemas.
Do incipiente “cidade x morro”, o debate vai se radicalizando, até os anos 60, para confrontos como nacionalismo x universalismo, “conteudismo” x “vanguardismo”, forma x conteúdo, engajamento x alienação. A música popular brasileira não só reflete a sociedade como também — e mais que isso — “pode ser vista como um projeto (inacabado) de país”. No rastro da tradição desencadeada por samba, bossa nova e MPB, há espaço para “novas escutas” que “percebam as cacofonias, os silêncios e os sussurros perdidos no tempo”.
Napolitano também enche seu livro de curiosidades deliciosas. É o caso da abertura de A Síncope das Ideias, em que o autor evoca uma revista-opereta de 1933. O enredo gira em torno da personagem Canção Brasileira, “filha da aristocrática Modinha e do elegante Lundu”, sequestrada pela Flauta, pelo Cavaquinho e pelo Violão, apaixonada pelo Samba. No final da opereta, após diversas reviravoltas, a Canção Brasileira e o Samba se casam e promovem a harmonia entre cidade e morro.
Em outro trecho, Napolitano sustenta que, entre os primeiros críticos a abraçarem “o mundo do samba e dos morros”, estavam jornalistas e intelectuais comunistas. Em contraponto à paranoia higienista lançada pelas elites, esses pensadores marxistas subiam aos morros e dialogavam com os bambas.
Eles também viram Favela dos meus Amores e sua mais célebre cena — o enterro do sambista Nhonhô. “Chamado de comunista por um delegado de costumes”, o diretor Humberto Mauro filmou o morro vindo abaixo, “numa mistura de passeata e cortejo fúnebre, carregando o corpo de seu herói”. A partir de 1945, diz Napolitano, o “flerte transformou-se em namoro assumido (...) com a imprensa comunista dando espaço para o samba e com a criação de uma União de Escolas de Samba” ligada ao Partido Comunista do Brasil.
Uma das ironias de O X do Problema é que Noel e Aracy conviveram numa época em que suas canções, embora cada vez mais populares através dos programas de rádio, não sensibilizavam boa parte das elites. Conforme detalha o professor acadêmico e pesquisador Marcos Napolitano em A Síncope das Ideias (Editora Fundação Perseu Abramo), geralmente ocorria o contrário: o preconceito de classe é que dava a tônica de muitas das críticas ao samba nas décadas de 1930 e 1940.
Na revista Voz do Rádio, Almeida Azevedo se refere ao “horrível samba de morro, que à força de ser maltratado, seviciado, anda por aí desamparado, sem juízes de menores que olhe por ele, sem polícia de costumes que o proteja, sujo, malcheiroso, etc.”. Igualmente reacionário é um artigo publicado em Scena Muda e escrito por Renato Alencar, que divide o samba em duas vertentes — o de morro e o de arte. Ao primeiro, que envolve “batucada, dança litúrgica bárbara e sensual”, Alencar não atribui “beleza nenhuma”, uma vez que é “monótono e triste como todo produto de povos torturados e incultos”.
Álvaro Salgado, diretor da Rádio MEC, segue a linha e afirma que “o samba é feio, indecente, desarmônico e arrítmico”. Não que, para Salgado e outros porta-vozes da elite na imprensa, o samba de morro não tivesse salvação. Era preciso “higienizá-lo”, livrá-lo das impurezas. “Sejamos benévolos: lancemos mão da inteligência e da civilização”, propõe o diretor da Rádio MEC. “Tentemos devagarinho torná-lo mais educado e social. Pouco nos importa de quem ele seja filho.”
“Cultura de bacilos”
Se é verdade que o samba não precisou de higienização para se tornar o gênero brasileiro por excelência, também é fato que o viés de classe ainda contamina a relação entre grande mídia e manifestações culturais de origem popular. Em 2007, quando o diário americano The New York Times se atreveu a elogiar a cultura hip-hop brasileira, a grande mídia estrebuchou. Na Folha de S.Paulo, Barbara Gancia esculhambou o hip-hop. Tachou o movimento de “cultura de bacilos”, com seu “lixo musical” que “é sexista, faz apologia à violência e dói no ouvido”.
A reação às bobagens da colunista foi imediata: centenas de pessoas — não necessariamente adeptas ou simpatizantes do hip-hop — enviaram mensagens de protestos, acusando nas palavras de Barbara Gancia generalizações, estreiteza teórica, elitismo e preconceito. Como os primeiros e mais coléricos detratores do samba, Barbara Gancia põe o povo à margem da cultura. Parece pensar que, se o “lixo musical” ficar na periferia, vá lá, aceitemos. Mas que diabo é isto de ser apoiado pelo Ministério da Cultura e ainda ter o aplauso do jornal mais tradicional e influente do mundo?
O reconhecimento internacional é outro elemento que preocupa, desde sempre, a crítica conservadora. Poucas vezes o samba foi tão atacado quanto em 1941, diante da visita de Walt Disney à escola de samba Portela. “Há uma espécie de samba que pode levar, sem receio, a etiqueta made in Brazil. Este outro, porém, o do morro (...), tem que ser ajustado a ambiente teatral para que possa ser mostrado a certos hóspedes”, defendia Renato Alencar.
Cacofonias, silêncios e sussuros
Todos esses exemplos, reunidos em A Síncope das Ideias, demonstram quão polêmica é “a questão da tradição na música popular brasileira” (subtítulo do livro). A tese do autor, Marcos Napolitano, é que o samba, a bossa nova e a moderna MPB estão na “linha formativa” — na “espinha dorsal” — dessa tradição. A trajetória dos três gêneros é marcada, embora jamais limitada, por dilemas.
Do incipiente “cidade x morro”, o debate vai se radicalizando, até os anos 60, para confrontos como nacionalismo x universalismo, “conteudismo” x “vanguardismo”, forma x conteúdo, engajamento x alienação. A música popular brasileira não só reflete a sociedade como também — e mais que isso — “pode ser vista como um projeto (inacabado) de país”. No rastro da tradição desencadeada por samba, bossa nova e MPB, há espaço para “novas escutas” que “percebam as cacofonias, os silêncios e os sussurros perdidos no tempo”.
Napolitano também enche seu livro de curiosidades deliciosas. É o caso da abertura de A Síncope das Ideias, em que o autor evoca uma revista-opereta de 1933. O enredo gira em torno da personagem Canção Brasileira, “filha da aristocrática Modinha e do elegante Lundu”, sequestrada pela Flauta, pelo Cavaquinho e pelo Violão, apaixonada pelo Samba. No final da opereta, após diversas reviravoltas, a Canção Brasileira e o Samba se casam e promovem a harmonia entre cidade e morro.
Em outro trecho, Napolitano sustenta que, entre os primeiros críticos a abraçarem “o mundo do samba e dos morros”, estavam jornalistas e intelectuais comunistas. Em contraponto à paranoia higienista lançada pelas elites, esses pensadores marxistas subiam aos morros e dialogavam com os bambas.
Eles também viram Favela dos meus Amores e sua mais célebre cena — o enterro do sambista Nhonhô. “Chamado de comunista por um delegado de costumes”, o diretor Humberto Mauro filmou o morro vindo abaixo, “numa mistura de passeata e cortejo fúnebre, carregando o corpo de seu herói”. A partir de 1945, diz Napolitano, o “flerte transformou-se em namoro assumido (...) com a imprensa comunista dando espaço para o samba e com a criação de uma União de Escolas de Samba” ligada ao Partido Comunista do Brasil.
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O X do Problema
(Noel Rosa)
Nasci no Estácio
Eu fui educada na roda de bamba
Eu fui diplomada na escola de samba
Sou independente, conforme se vê
Nasci no Estácio
O samba é a corda e eu sou a caçamba
E não acredito que haja muamba
Que possa fazer gostar de você
Eu sou diretora da escola do Estácio de Sá
E felicidade maior neste mundo não há
Já fui convidada para ser estrela do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair do Estácio é que é o X do problema
Você tem vontade
Que eu abandone o largo de Estácio
Pra ser a rainha de um grande palácio
E dar um banquete uma vez por semana
Nasci no Estácio
Não posso mudar minha massa de sangue
Você pode ver que palmeira do mangue
Não vive na areia de Copacabana
(Noel Rosa)
Nasci no Estácio
Eu fui educada na roda de bamba
Eu fui diplomada na escola de samba
Sou independente, conforme se vê
Nasci no Estácio
O samba é a corda e eu sou a caçamba
E não acredito que haja muamba
Que possa fazer gostar de você
Eu sou diretora da escola do Estácio de Sá
E felicidade maior neste mundo não há
Já fui convidada para ser estrela do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair do Estácio é que é o X do problema
Você tem vontade
Que eu abandone o largo de Estácio
Pra ser a rainha de um grande palácio
E dar um banquete uma vez por semana
Nasci no Estácio
Não posso mudar minha massa de sangue
Você pode ver que palmeira do mangue
Não vive na areia de Copacabana
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