Discurso de Lula da Silva (excerto)

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segunda-feira, 14 de julho de 2008

Ferreira de Castro - o realismo social e a dignidade humana


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Urbano Tavares Rodrigues
Urbano Tavares Rodrigues

Ferreira de Castro,
o realismo social e a dignidade humana

A obra romanesca de Ferreira de Castro, injustamente esquecida e por vezes denegrida, merece uma atenta revisão, que, na actual conjuntura política em que o egoísmo prevalece ostensivamente sobre a solidariedade, possa iluminar os valores humanos que o seu realismo social exalta sem demagogia.

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O seu primeiro romance Emigrantes, escrito numa fase que é de aprendizagem na obra de Ferreira de Castro, dá-nos no entanto, com impressionante verismo, com toda a sua carga de aventura, sofrimento e frustração, a odisseia, rica em peripécias, em humilhações e até mesmo em actos sujos, fruto da miséria, de um camponês que da miragem do Brasil só colheu e trouxe para o terrunho pobreza e decepção. É um romance ainda próximo do naturalismo, mas que já antecipa em muitos aspectos o neo-realismo, até mesmo nas falas dos camponeses, muitos deles analfabetos, que sobem ao palco da literatura como sujeitos da História.

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Ferreira de Castro traz efectivamente para a cena literária, para as páginas do romance, as camadas trabalhadoras, enquanto que, de um modo geral, as obras literárias, até então, apresentavam figuras ou da aristocracia de sangue ou da aristocracia do dinheiro ou da média burguesia. Mesmo Eça de Queirós, que teve em determinado momento, na primeira parte da sua obra - quando escreve O Primo Basílio, O Crime do Padre Amaro e até Os Maias - uma visão crítica da sociedade burguesa e até um projecto de transformação da sociedade num sentido socialista, tal como Antero de Quental, o companheiro que ele mais admirava e que chegou, juntamente com José Fontana, a criar em Portugal uma sucursal da Internacional dos Trabalhadores, mesmo esses escritores não deram verdadeiramente voz às camadas populares.

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Essa alteração radical, aflorada embora por Abel Botelho, em O Amanhã, romance cujo herói um tipógrafo anarquista, acontece na literatura portuguesa com Ferreira de Castro, antes do neo-realismo, que surgirá anos depois. Não esqueçamos que, lá mais para trás, o povo de Camilo Castelo Branco é mostrado estaticamente, do ponto de vista do curso da história, e em atitude serviçal.

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Ferreira de Castro começou por escrever obras de pendor folhetinesco. Era um jovem autodidacta, que foi pouco a pouco, ao longo da vida, conquistando a cultura e enriquecendo os seus meios de expressão. Numa altura em que a literatura portuguesa era frívola ou apenas psicologista ou apenas esteticista, só Raúl Brandão, expressionista, falou das camadas populares num livro como Húmus - embora como um burguês que sente o remorso de viver relativamente bem quando a mulher de esfrega e a prostituta vegetam miseravelmente ao seu lado. Ele olha efectivamente para o povo, com um olhar comovido, quase dostoievskiano, mas apresenta-o com uma certa distância, enquanto Ferreira de Castro trá-lo directamente para o espaço do romance.

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O Manuel da Bouça de Emigrantes irá para o Brasil e não vai, como disse, voltar rico, mas pobre e desesperado; e aqueles que lhe facilitaram a viagem, que o exploraram, terão os benefícios materiais.

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É o primeiro livro nesta linha que nós podemos chamar realista e neo-humanista.

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De facto, reputo, na "Geração de 70" havia já um autêntico humanismo, quando se fizeram as "Conferências do Casino". Mas este outro humanismo, que Ferreira de Castro afirma, ainda sem nome, tem a ver agora com uma visão da história como luta de classes.

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Embora Ferreira de Castro não apresentasse essa mundividência teoricamente, a sua obra é já a anunciação do neo-realismo humanista. Desde Emigrantes até ao Instinto Supremo, o romance ecológico de Ferreira de Castro, que defende os índios do Brasil, uma sociedade arcaica completamente ameaçada pela cupidez dos colonos e que vai desaparecendo pouco a pouco. O resto do antigo mundo ameríndeo que está a morrer contaminado pelas doenças da civilização e sobretudo trucidado pelos crimes do capitalismo.

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Ferreira de Castro, a seguir a Emigrantes produz o livro que é, de certo modo, a sua obra-prima: A Selva.

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Não o será propriamente na plena consecução da arquitectura nem na perfeição do estilo, embora o autor tenha um grande poder de sugestão e de comunicação na maneira como exprime uma realidade que é nova para a Europa. Por isso, aliás, vai ter várias traduções. Essa realidade nova é-o não só ao nível da beleza da floresta virgem, como em relação ao sofrimento extremo dos homens. Criaturas que se tornam verdadeiros escravos, que nem sequer conseguem fruir o produto do seu trabalho, porque são permanentemente explorados através de um sistema vicioso de pagamento dos salários.

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Depois destes dois livros, que são os que têm mais a ver com a emigração, Ferreira de Castro escreve um romance sobre a Madeira, no fundo sobre a sua própria experiência e tentativa de compreensão de si e dos outros: Eternidade é uma procura do destino dos homens, a propósito da perda de um ser amado e tem ainda muito a ver com a Revolta da Madeira e com a própria natureza da ilha, que ele intensamente transmite.

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Depois fez um livro particularmente interessante, Terra Fria, no qual segue um processo que vem do naturalismo e em especial de um grande escritor, Émile Zola, que nos deixou a epopeia da classe operária no torrencial romance Germinal, em torno de uma greve nas minas na região francesa de Anzin. Para poder redigir esse livro Zola foi à mina, dormiu no bairro dos mineiros, comeu com eles, bebeu a aguardente da região.

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Ferreira de Castro não procedeu exactamente assim, mas andou perto. Foi primeiramente visitar a Terra Fria em Trás-os-Montes e dela fez um minucioso estudo. Aliás, já tinha sido jornalista, redactor de "O Século", antes de escrever este romance. Um estudo para-sociológico daquela região, do viver das pessoas. E dá-nos a figura de um homem arrogante, que voltou rico da América do Norte. O fulcro do romance é a relação dele com uma empregada, que vai praticamente prostituir-se nesse comércio. Ela é, de certo modo, atraída fisicamente, mas sobretudo fascinada pela riqueza. E o autor trata desassombradamente e dramaticamente o problema do adultério. Há ainda a sensibilidade do marido, ferido no seu orgulho e dividido entre a necessidade de sobrevivência e a ânsia da vingança.

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É um romance e é um estudo da realidade social, envolvendo a exploração do corpo da mulher, as relações entre patrão e assalariados. Mas o ponto mais alto da obra social de Ferreira de Castro, o seu livro mais trabalhado e mais perfeito no sentido de estabelecer um nexo, uma relação profunda entre as relações económico-sociais e as relações humanas, é A Lã e a Neve. É um grande romance em todos os sentidos, onde Ferreira de Castro nos mostra a rudeza da Serra da Estrela, a existência dos pastores e também, depois, a vida dos tecelões, portanto a passagem da agricultura para a indústria. Até as relações culturais e interclassistas estão muito bem dadas. Nesta obra Ferreira de Castro, que foi afinal o primeiro a abrir semelhante caminho, sofre já a influência daqueles que não foram propriamente seus discípulos mas que vieram depois dele, isto é, Fernando Namora, Carlos de Oliveira, Alves Redol, e se aproxima muito das preocupações do neo-realismo. Este, precisando melhor, caracterizava-se por ter uma visão socialista do mundo e do futuro, isto é, para além do realismo, uma perspectiva futurante.

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Ferreira de Castro lutou sempre pela democracia integral, pela liberdade e pela justiça. Vinha do tempo em que a Federação Anarquista Ibérica teve um grande peso na Península. Estava rodeado de amigos e companheiros ligados ao anarquismo. Nunca foi militante de nenhum partido, mas a sua visão do mundo era radicalmente e da esquerda socialista.

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E em A Lã e a Neve já se desenha aquilo a que se pode chamar a acção através da literatura. Ou seja, o desejo de que esta, sendo a expressão e a tentativa de reproduzir uma realidade social, cultural, afectiva, se torne também arma de combate. Quer dizer, dar consciência ao povo da sua realidade, da sua própria condição, mobilizando-o para a luta.

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De uma forma discreta, podemos dizer que em A Lã e a Neve se sente isso, enquanto que em A Selva havia ainda aspectos românticos: o herói de A Selva era um monárquico, tinha saído de Portugal por haver participado na revolta de Monsanto. É um jovem que, pouco a pouco, transforma a sua visão do mundo, ao sofrer o embate da crueldade da vida, daquela vida que o espera no meio da selva. A Lã e a Neve, no aspecto ideológico, significa um progresso. No aspecto estético é também uma obra importante. Mais tarde Ferreira de Castro há-de escrever um livro muito rico, psicologicamente, um dos melhores de toda a sua obra, A Curva da Estrada.

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A acção passa-se em Espanha e Ferreira de Castro conheceu bem o país vizinho e viveu profundamente todos os problemas da República Espanhola e da Guerra Civil. Até nós, os de gerações posteriores, vivemos, na infância ou na adolescência, essa grande esperança que sacudiu a Península Ibérica quando o povo espanhol lutou contra o fascismo e, ao mesmo tempo, ia realizando uma revolução e dividindo os latifúndios em Aragão, na Catalunha.

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Ferreira de Castro conheceu os homens da República e apresentou-nos um socialista em decomposição que, todavia, no final opta pela dignidade e pela continuação da luta. É um romance ainda hoje extremamente actual: um revolucionário que teve um juventude muito combativa, que estava muito perto dos homens que o elegeram e tinha amigos de grande rectidão. Era advogado e pouco a pouco foi sendo afectado, contaminado pela vida da burguesia: o conforto, o prestígio.

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Tem dois filhos: Henrique, que ele educou como socialista e que está perto dele, por vezes quase lhe exige que seja coerente, que seja fiel ao seu passado; e o outro, Paco, que, pelo contrário, se aproxima da gente "fina" e deseja ver o pai passar para o Partido Nacionalista. É um admirador do rei e de Primo de Rivera, o ideólogo do fascismo espanhol.

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Soriano sofre a influência dessa pressão familiar e à volta dele a gente rica, os conservadores, multiplicam-se em movimentos de sedução, porque de facto ele é uma pessoa que traria à Direita o prestígio do seu passado impoluto e, ao mesmo tempo, é um deputado brilhante.O romance tem pouca acção. É fundamentalmente expressão da vida interior. E quando parece que Soriano vai passar-se para o outro lado, que vai escolher a riqueza, embora saiba que os melhores amigos o hão-de julgar severamente, decide não trair e continua fiel aos seus ideais. Nas últimas páginas do livro o seu amigo Pepe Martinez felicita-o fraternalmente quase como herói. Traz-lhe a consolação de haver permanecido limpo. O título A Curva da Estrada representa simbolicamente o momento em que Soriano está muito perto da abdicação. Ora, nós assistimos todos os dias em Portugal, muitos anos após a Revolução de Abril a processos de decomposição de homens como este. Quer dizer, situados na esfera da esquerda, quer no Partido Socialista quer mesmo no Partido Comunista, os que (independentemente de posições críticas e legítimas discussões) trocaram os seus ideais, abandonaram as fileiras para irem pelo caminho do triunfo material, de certas "lantejoulas" afinal bem pobres.

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É, de facto, um romance com valor histórico, psicológico e artístico.

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Não que Ferreira de Castro fosse um estilista como Aquilino Ribeiro, criador de uma linguagem de excepcional beleza, mas foi um escritor que, pouco a pouco, soube conquistar uma expressão de grande sugestão, com verdadeiro poder comunicativo. Podemos aproximá-lo de grandes figuras de humanistas do seu tempo, como Kmut Hamsun, na Suécia, que escreveu um belo romance chamado O Pão, embora mais tarde se tenha desviado para a direita, como aliás John Steinbeck nos Estados Unidos, o autor de As Vinhas da Ira (o romance que melhor representa o protesto do proletariado americano da Califórnia contra as condições de vida no tempo da Depressão) e, que mais tarde, apoiou a Guerra do Vietnam. Isto nunca aconteceu com Ferreira de Castro. Humanista, sim, é talvez a melhor palavra que lhe cabe: falou em nome da humanidade e sobretudo em nome dos pobres. Fê-lo em A Lã e a Neve, fê-lo em Terra Fria, na A Selva, nos Emigrantes e até, de certo modo, na A Curva da Estrada, ao escrever sobre políticos que encarnavam as aspirações populares e cujo problema era permanecerem fiéis a essa opção de classe ou desviarem-se dela. Pessoalmente, lembro-me de Ferreira de Castro com admiração e afecto. Recordo os abaixo-assinados que lhe dei a assinar e a que ele nunca se furtou e a sua carta que uma vez, há muitos anos, levei para o Porto, onde o Vítor de Sá ia ser julgado em Tribunal Plenário e que o defendia com brio e com coragem. Fomos testemunhas nesse julgamento o José Cardoso Pires e eu. E, inesperadamente, o Vítor de Sá foi absolvido. Não terá sido por causa dos nossos depoimentos nem pela carta do Ferreira de Castro. Mas ao lê-la no tribunal senti cada uma das palavras do autor de A Selva como um grito em defesa da dignidade humana.

Voltar Intervenção proferida na Sessão de Homenagem
a Ferreira de Castro promovida pela ARE em 26-11-98
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Imagem retirada de

avozportalegrense.blogspot

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