Discurso de Lula da Silva (excerto)

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segunda-feira, 7 de julho de 2008

Dia a dia na Idade Média

Dia a dia na Idade Média


“Percursos Vividos, Percursos Conhecidos nos Núcleos Urbanos Medievais"

Por Amélia Aguiar Andrade

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«Na primeira tarde, ao abraçar-me de novo, a avó dissera-me: — Se deixasse o Bairro, parecer-me-ia que tu não havias de voltar mais. Aqui, todos me perguntavam por ti e era como se estivesses sempre presente. Depois, eu vejo pouco e, se saio, sinto-me mais segura aqui, porque conheço as ruas de cor. Por vezes, se caminho um pouco distraída, só noto as demolições quando vou a entrar num estabelecimento e me encontro diante de um descam­pado».Vasco Pratolini, O Bairro, Lisboa, s/d, p. 196.

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O forasteiro que percorria qualquer vila ou cidade medieval levava da paisagem urbana uma imagem efémera e parcial. Era demasiado curto, com efeito, o tempo que gastava a calcorrear o caminho que ligava a porta por onde entrara à que escolhera para sair. E certo que não ficava indiferente ao protagonismo da muralha e, se os seus olhos conseguiam apartar-se dos tabuleiros repletos de tentadoras mercadorias que ladeavam o seu percurso, reconhecia a muralha, o castelo, os campanários que anunciavam a presença de igrejas e/ou mosteiros ou os pormenores arquitectónicos que caractcrizavam uma residência de prestígio.

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Se porventura a sua estada se prolongava por mais algumas horas ou dias tomava contacto com outras artérias. Exactamente aquelas que o conduziam a locais e/ou edifícios de utilização pública — o mercado, a estalagem, a igreja, o paço do concelho, entre outros —, destinos mais frequentes das suas deslocações a um núcleo urbano.

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Em qualquer dos casos, ninguém diria que se movimentava através de uma topografia desconhecida. A firmeza dos seus passos transmitia a certeza de quem reencontrava uma organização espacial que, nos traços gerais, era semelhante à de outras vilas e cidades. Mas o seu saber esgotava-se no reconhecimento [52] desses elementos familiares, incapaz de responder a questões tão simples como a descrição do caminho mais curto para chegar às hortas exteriores à cerca, o que se escondia por detrás da fachada de uma casa ou as razões de obras em curso.

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Na verdade, só a junção das vivências quotidianas com as memórias, exclusivas dos moradores, podia satisfazer esse tipo de questões. Apenas os que habitavam permanentemente um determinado espaço urbano conseguiam atingir com o meio envolvente a familiaridade esclarecedora. Com efeito, ao longo da sua vida, ao sabor da sua mobilidade e dos seus interesses conjunturais, o morador estabelecia uma relação privilegiada com a paisagem urbana, desenhando distintos percursos que palmilhava com a desatenção do hábito ou com a surpresa atenta da novidade.

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Mas, ainda e sempre uma imagem parcial. Nem mesmo o morador se podia gabar de conhecer todos os cantos e esquinas da vila ou cidade em que vivia. Especialmente quando esta atingia uma superfície considerável. Nesse caso, era óbvia a sua tendência ao confinamento a unidades espaciais mais restritas tais como os bairros ou, se o entre muralhas se mostrava exíguo, aos arrabaldes que se desenvolviam fora de portas. Estabelecia, por isso, um evidente contraste entre o espaço onde vivia e o espaço onde ia, correspondendo este último a artérias ou edifícios que demandava apenas em situações específicas.

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Era pois, através das ruas do arrabalde, no interior do seu bairro ou na área mais vasta que uma cerca de pedra delimitava que o homem medieval estabelecia os seus roteiros. Que tanto podiam ser de trabalho como de lazer, de festa, fé e até de dor. Por aí arrastava a sua marginalidade ou exibia, orgulhosamente, os sinais exteriores de uma condição social diferente. E eram essas ruas ainda sem pavimento e essas casas desalinhadas as testemunhas mudas do último dos seus percursos, aquele que não conhecia regresso.

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Infelizmente, as fontes disponíveis não se mostram favoráveis à recuperação desses trajectos perdi­dos. Antes parecem apostadas em escondê-los em textos que privilegiam a seca e despojada visão jurídico-administrativa. Outra coisa não era de esperar. A palavra escrita, preciosa, reservava-se para o que merecia a pena recordar. Gentes anónimas e o espaço em que se movimentavam raramente beneficiavam do direito a serem preservados através de textos manuscritos.

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Assim se compreende melhor porque razão este texto renuncia à reconstituição de todos os percursos possíveis, consciente de que eles são tantos e tão variados como os homens que habitavam os núcleos urbanos medievais. Incapaz de recuperar a totalidade dos elementos de referência, das significações e das memórias dos moradores, atreve-se a refazer alguns dos caminhos mais correntes e óbvios. Esbatidos pela escassez de pormenores e filtrados pela visão espacial dos que detêm o acesso à escrita. Apesar de tudo, não deixa de valer a pena percorrê-los.

A artéria onde se situava a sua casa de morada era a mais familiar para qualquer indivíduo que, quase sempre, era capaz de a descrever com exactidão e minúcia. Essa rua, mil vezes palmilhada, colava-se à pele de quem a habitava de tal forma que, quando era necessário ultrapassar o incómodo das frequentes homonímias medievais, não se hesitava em agregar o seu designativo ao nome de baptismo e ao patronímico de quem a habitava.

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Cenário preferencial do quotidiano do morador, aí decorria senão a totalidade pelo menos a maior parte da sua existência tal como se desenrolara a do seu pai e a do seu avô e onde, quase de certeza, ia ter lugar a dos seus filhos e netos. Porque as filhas e as netas partiam ainda jovens, para outras casas, situadas em outras ruas, tal como acontecera com as suas mães e as suas avós. Onde cumpriam o mais [53] frequente destino da mulher: o casamento. Só as mulheres sem irmãos, herdeiras únicas por força do acaso biológico, tinham o direito de impor a sua residência de sempre ao senhor que o matrimónio lhes trazia.

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Permanências tendencialmente estáveis e duradouras, apenas interrompidas se tempos de prosperidade despertavam a cobiça por um lar mais espaçoso ou por uma zona de maior prestígio. Ou se os revezes da fortuna – a viuvez, a pobreza ou a velhice — obrigavam a procurar uma habitação mais modesta. Ou quando era preciso partir para outros lugares.

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Para os que ficavam, a rua não tinha segredos. Ainda criança, apreendera toda a sua extensão seguindo as regueiras que os despejos ou as águas da chuva abriam na superfície terrenta. As brincadeiras juvenis, por seu lado, familiarizaram-no com as vielas e azinhagas de utilização restrita que conduziam a outras artérias e a outros mundos. Entre correrias e gritos aprendeu a descobrir as melhores frutas e vegetais das hortas que se escondiam por detrás das casas. E estendeu as mãos para afagar. entre encanto e receio, um pintainho recém-libertado da casca. Com o correr do tempo e tal como acontecia com o seu corpo, a sua rua transformava-se perante os seus olhos. Lançavam-se passadiços, erguia-se mais um sobrado, ocupavam-se com novas construções os espaços ainda vazios. Frágeis nos seus adobes e madeiras, as casas degradavam-se com frequência, dando lugar a pardieiros ou a míseras ruínas. Mas logo a azáfama de carpinteiros e pedreiros anunciava a sua recuperação.

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Às vezes, as obras tinham outros objectivos acrescentar uma torre, uma escada exterior de pedra, um novo compartimento, enfim, um qualquer pormenor que fizesse a casa distinguir-se do tipo de construção mais corrente. E assim se mostrava a todos a adaptação bem sucedida do seu proprietário às regras do mundo urbano. Com um pouco de sorte até podia acontecer que a rua aceitasse o protagonismo da riqueza e do prestígio. E então um nome de homem ou de mulher podia transforma-se em topónimo que o hábito ou a inércia mantinha presente mesmo quando a morte natural sobrevinha.

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Estas transformações da fisionomia de uma artéria eram comentadas, recordadas e por vezes até invejadas por os que as observavam mais amiúde. Comparava-se o antes e o depois, enriquecendo uma imagem espacial já de si bastante elaborada. Ao contrário do que acontecia com os passantes que destas alterações levavam uma imagem instantâtnea e fugaz, isenta de explicações.

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O morador assinalava sem dificuldade as confrontações de cada edifício ou o nome dos seus ocupantes e ninguém melhor do que ele para escolher os beirais que protegiam da chuva ou os locais de maior frescura durante as calmas de Verão. Mas também reconhecia o som da roldana que fazia descer balde de um poço vizinho, o cheiro penetrante do estrume que alguém acabara de espalhar na horta familiar, o bater dos liços do tear ou os passos cansados de um velho que vivia duas casas à frente.

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O mais provável era que, tal como acontecia com a maioria dos habitantes dos núcleos medievais, se sentasse à soleira da porta da sua residência. Escapava, assim, à exiguidade de uma casa de divisão única que a escassez de aberturas tornava sombria mesmo quando do lado de fora o sol brilhava. Aí, nessa casa-oficina, permanecia grande parte do dia, debruçado sobre o seu trabalho e tendo ao lado tabuleiros onde expunha os artefactos que confeccionava. Entre o desdobrar das conversas e discussões de outros moradores. as interpelações dos compradores ou a passagem de forasteiros. Talvez trocasse opiniões com outros artífices ou respondesse a pequenas provocações sob as quais se escondiam longos anos de companheirismo. Ansiava pelo momento em que o cheiro dos alimentos cozinhados lhe invadia as narinas anunciando a pausa destinada às refeições. E mais ainda esperava o toque das Trindades que assinalava o fim da labuta quotidiana.

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Ao cair da noite, a rua aquietava-se. Recolhiam-se os tabuleiros e os instrumentos de trabalho.Fechavam-se portas e janelas. Tal como um cenário vazio depois de uma representação [54] tornava-se silenciosa, lúgubre, plena de sombras. Uma imagem que a maioria dos seus ocupantes desconhecia. Abrigados à protecção do lar poucos se atreviam a percorrê-la durante a noite, certos de que, à luz da lua ou da candeia, tudo o que antes era familiar ganhava dimenses estranhas quase fantasmagóricas. Felizmente, durante poucas horas, pois em breve os alvores da madrugada conferiam de novo aos objectos a tranquila dimensão habitual.

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Entretido pela sua rotina de trabalho ou distraído com o apelo das múltiplas solicitações que o rodeavam, nem sempre ocorria ao morador a ideia de erguer os olhos acima da linha dos telhados das imediações da sua residência. Se o fazia, deparava-se-lhe o céu. Que na sua variabilidade traduzida em azuis intensos, cinzentos brumosos, negros estrelados ou nuvens de formas caprichosas lhe anunciavam a sucessão dos dias e das noites ou a alternância das estações do ano.

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Esse cenário natural, contudo, era frequentemente invadido por vastas construções, elaboradas com materiais oneroos e menos usuais. Mesmo quando a cidade ou vila atingia dimensões razoáveis ou se localizava em sítio acidentado não deixava de se avistar, de qualquer lugar, um pano de muralha, algumas ameias do castelo ou o campanário de uma ou mais igrejas. Em certos casos, agigantadas pela proximi­dade porque muitas artérias urbanas medievais tinham um desses edifícios singulares como ponto de chegada ou de partida. Outras ainda, mercê da sua localização periférica, tinham o muro como óbvia confrontação.

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Familiares porque quotidianamente avistadas, estas construções assumiam-se como autênticos pro­tagonistas da paisagem urbana. Não só pela sua monumentalidade e preferência por locais elevados mas também pelo seu valor simbólico. Que qualquer morador, à sua maneira e à sua medida, não deixava de entender.

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A muralha com as suas torres, o castelo, as igrejas, enquadradas pela massa indiferenciada da construção corrente, eram a manifestação mais real e imediata da especificidade dos espaços urbanos. Ao destacar-se do meio rural envolvente, onde prevaleciam campos cultivados, pastos e matas semeados de casas esparsas, não estabelecia apenas um contraste paisagístico. Com efeito, essas distintas formas de o homem medieval afeiçoar os espaços que ocupava correspondiam também a dois mundos social, económica, institucional e culturalmente opostos.

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Diferenças que mesmo o morador mais desatento acabava por apreender, uma vez que se manifestavam em pequenos pormenores do dia a dia. Tal como a surpresa que lia nos olhos dos recém-chegados perante regras e hábitos urbanos que, para ele, eram tão naturais como o ar que respirava. Ou no à vontade com que atravessava as portas de saída, sem temer as onerosas portagens e peagens. E, principalmente, quando olhava a muralha e era invadido por uma reconfortante sensação de tranquilidade. A solidez compacta desses muros parecia-lhe imune a todos os males. Aos ataques dos inimigos, aos ares de peste vindos de fora, aos forasteiros indesejáveis e até à fúria sazonal que atingia as águas desses rios, normalmente serenos, que vizinhavam com grande número dos núcleos urbanos medievais portugueses. A protecção régia que, em certos casos, essa muralha significava parecia-lhe ainda suficiente para refrear os abusos dos poderosos. Talvez se sentisse, então, mais livre, mesmo sabendo que eram apenas alguns os que podiam moldar o presente de acordo com as suas próprias vontades. Enfim, um sem-número de vantagens que o faziam, por certo, agradecer a Deus a oportunidade de viver num centro urbano e não no campo.

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Mas, o quotidiano de qualquer vila ou cidade não se confinava aos limites estreitos e tortuosos de uma rua. Implicava deslocações a outras artérias, aos arrabaldes (quando os havia) e derramava-se até por toda a arca peri-urbana próxima.

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Para o morador, lugares tão diversos reduziam-se a uma dualidade simples, a que opunha os locais onde ia aos outros, onde rara ou jamais ia. Dos primeiros tinha uma percepção que, quanto à riqueza de pormenores, variava na razão directa da frequência de utilização. Dos restantes possuía uma visão sincrética que se manifestava na imprecisão dos designativos que lhe atribuía. Sobre alguns locais nem chegava a ter qualquer ideia. Não sabia onde ficavam e só o acaso poderia encaminhá-lo nessa direcção.

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Talhavam-se, assim, percursos múltiplos e diversificados condicionados por factores como a idade, a saúde, o sexo, a condição social, a actividade profissional, a etnia e até o usufruto ou restrição da liberdade de movimentos. Quase se pode afirmar que a cada indivíduo correspondia um percurso pessoal e único e, por isso, não é de mais repeti-lo, impossível de reconstituir. Contudo, havia certos locais, alguns edifícios e consequentemente itinerários que nenhum habitante podia desconhecer. Mesmo quando residia no arrabalde ou o seu bairro atingia o dinamismo suficiente para, à semelhança do que acontecia nas cidades muçulmanas peninsulares, oferecer aos seus moradores tudo o que era preciso ao bom andamento do dia a dia.Na verdade, todos foram pelo menos uma vez na vida ao castelo, à casa do concelho, ao paço dos tabeliães. E mil vezes tivera de palmilhar o caminho que conduzia à igreja, à fonte, aos açougues, às portas da muralha ou aos locais onde se instalavam as tendas e boticas. Pormenorizemos, então, alguns desses trajectos que se podem considerar comuns a todos os habitantes de um núcleo urbano medieval.

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A ida ao castelo era, sem margem para dúvidas, um percurso eminentemente masculino. A maioria das mulheres só lhe conhecia a robusta fachada pois não chegavam a perfazer os dedos de uma mão de circunstâncias em que a sua presença era aí desejada. Mesmo os homens, não deixavam de experimentar, sobre o castelo, sentimentos contraditórios. Era óbvio que o alcaide e a guarnição aí instalados eram o melhor garante de defesa em situações de confronto bélico. Mas quantos aborrecimentos e contrariedades não podiam associar-se à sua existência! O que fazia a ida ao castelo pouco apetecida. Com efeito, de lá vinham quase sempre exigências: casas a derrubar nas proximidades do muro, reparações a empreender, abastecimentos a garantir e até ordens para, momentaneamente, se trocarem os instrumentos de trabalho pelas bestas, pelos arcos e pelas flechas.

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Visitas que podiam ainda saldar-se por humilhações engolidas no silêncio de quem se reconhecia impotente perante o ultrapassar das fronteiras de um poder atribuído por um monarca, na maioria dos casos, cada vez mais longínquo. Em momentos graves, como em 1245, 1319, 1383-85 ou em 1448, deve ter sido com angústia que as gentes urbanas esperaram a decisão do seu alcaide: a rebelião ou a fidelidade a um juramento?

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Quase sempre isentos de monumentalidade e com escassos sinais distintos exteriores, o paço do concelho e a audiência dos tabeliães, que não poucas vezes se associavam num só edifício, tanto podiam instalar-se em pontos nevrálgicos da área urbana, tais como a praça ou uma rua principal, como preferiam uma artéria secundária, uma daquelas que os forasteiros só demandavam em ocasiões específicas. Espaços orientados para uma utilização pública que não se esgotava na população residente entre muros, eram regidos por homens pois era tradição reservar-lhes a responsabilidade da gestão concelhia e o ofício de tabelião.

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Variando em número de acordo com a importância administrativa e o dinamismo económico da localidade, os tabeliães, juntamente com os escrivães que os auxiliavam, instalavam-se durante quase todo o dia no paço que lhes era reservado. Para aí se dirigia quem precisava de conserver, através da palavra escrita, as condições de um contrato, os termos de uma concórdia, os argumentos de uma contenda ou as cláusulas de um acordo de casamento. Regressavam com um pedaço de pergaminho ou de papel onde se inscreviam formulários complexos, assinaturas e sinais que pareciam dar mais razão às suas razões. Mas nem todos eram obrigados a deslocar-se para obtenção de um documento autenticado. Se a sua condição social ou a sua prosperidade eram suficientes, cabia ao tabelião palmilhar a distância que separava a audiência da residência desses afortunados. Alturas havia, porém, em que a presença do tabelião na casa de um morador não prenunciava nada de bom. Significava que alguém se sentira tão doente, tão isento de forças que não tivera dúvidas de que a morte se avizinhava. Apressava-se, então, a saldar por escrito as suas contas com o mundo que ia abandonar. Remidas as dívidas e as faltas, encomendados e pagos os sufrágios, a sua alma franqueava mais facilmente o Além.

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Para os habitantes de uma cidade ou vila medieval que tinham logrado obter o estatuto de vizinho a ida à casa do concelho podia fazer parte de uma rotina semanal que tinha no sábado o seu dia mais certo. Se a assembleia dos seus pares o fizera homem-bom ou fora escolhido para alguma das magistraturas municipais competia-lhe estar presente nas reuniões destinadas a organizar até ao mais ínfimo pormenor, não apenas o quotidiano urbano mas também as relações com o mundo exterior. As decisões então tomadas implicavam que gente dos quatro cantos do interior da cerca e até de fora de portas encaminhasse os seus passos até à casa do concelho.

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Com efeito, só nesse lugar se obtinha licença para estender mais um tabuleiro à porta de casa, se aferiam os pesos e medida, se pagavam coimas e multas ou se adjudicavam contratos. Ou se ia responder a uma inquirição preparatória de um regulamento, jurar o ofício ou assumir o compromisso de abastecer o açougue de carne fresca. E vinham também os que por razões diversas tinham transgredido as normas concelhias. Traziam angústia nos gestos e nos olhares, pois a decisão da audiência dos almotacés podia traduzir-se em algumas horas humilhantes no colarinho da picota ou por um número variável de dias passados numa cadeia húmida e fria.

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Ponto de encontro de variadas gentes, o paço municipal atraía quase sempre uma chusma de pedintes. Vinham com a esperança, não destituída de fundamento, valha a verdade, de que os homens da vereação associassem ao exercício de prerrogativas institucionais que consideravam enobrecedoras, a prática da esmola, própria das gentes de teres e haveres.

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Ao domingo, o toque dos sinos não chamava o morador para o trabalho. Antes lhe recordava que era tempo de parar com a labuta de todos os dias e dirigir o pensamento para Deus. Na igreja paroquial que o crescimento demográfico quatrocentista tornava acanhada, nas sés que se queriam sempre monumen­tais ou nas colegiadas e mosteiros que as dádivas tornavam cada dia mais belas e ricas, decorriam actos litúrgicos que obtinham a adesão de uma assistência vinda, na sua maioria, das ruas limítrofes. Talvez não percebesse o significado profundo do ritual, apesar do esforço dos eclesiásticos para adaptá-lo às novas realidades urbanas. Nem o texto, que era recitado numa língua já esquecida. Mas não deixava de ser sensível às cores brilhantes do vestuário dos oficiantes, à riqueza das alfaias, à solenidade dos gestos e até à sonoridade dos cãnticos. Julgava-se então mais próximo da divindade e tinha quase a certeza de que as orações ditas em local e momento tão belos seriam mais facilmente atendidas.Mas não era apenas o cumprimento do preceito dominical que arrastava o morador até à igreja. Na verdade, com excepção da rua de residência, nenhum outro elemento da paisagem urbana acompanhava tão de perto o correr da vida de um indivíduo. Recém-chegado ao mundo dos vivos era na igreja que recebia a água baptismal que o tomava membro da comunidade cristã enquanto a passagem definitiva à idade adulta que o casamento sancionava, cada vez mais preteria a cerimónia privada em favor de um acto público que tinha como cenário o templo de maior devoção dos nubentes. Para os que escolhiam a vida religiosa junto de comunidades seculares ou regulares sediadas na sua vila ou cidade era num desses templos que se exercia a privilegiada missão de intermediário entre os crentes e a divindade. E era nas entranhas desses edifícios que o seu corpo encontrava o repouso final. De acordo com uma hierarquia de lugares talhada pela riqueza e pelo prestígio e que não deixava dúvidas a ninguém que mesmo na morte os homens eram diferentes.Era também aí que qualquer morador vivia momentos felizes. Suspenso no desfecho de representações e entremezes ou comovido com a mensagem de pregadores mendicantes. Assistia à partida de procissões [57] em que também se incorporava e que percorrendo as artérias mais importantes do núcleo urbano homenageavam a Virgem, os santos, o Corpus Christi ou comemoravam o Domingo de Ramos, e glórias passadas como a batalha do Salado. Em dias de festa agradecia-se o nascimento do herdeiro do trono, ou as visitas do rei ou dos grandes dignitários. E entre cenários de luto e pranto chorava-se a morte de reis e príncipes.Mas a igreja, com o rossio fronteiro — alguns gostavam de chamar-lhe praça —. era um ponto de encontro muito concorrido. Não admira portanto que se escolhessem as suas portas para a fixação de documentos cujo conteúdo todos deviam conhecer ou que nos seus amplos alpendres se fizesse de tudo um pouco: reuniões alargadas de vizinhos, elaboração de documentos, regatia e até a audição de pleitos em que a presença de muitas testemunhas era aconselhável.

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As torres que encimavam as portas de saída abertas ao longo do perímetro da muralha apontavam o caminho certo a todos os moradores que, por uma ou outra razão, eram obrigados a abandonar temporariamente o centro urbano onde residiam. Uns, como os mercadores, os almocreves e os oficiais régios, faziam-no por dever de ofício e o seu primeiro destino era apontado pelos topónimos que essas portas tomavam e que no Portugal medievo pareciam querer desenhar autênticas redes urbanas. Nas vilas e cidades do litoral, a porta da Ribeira juntamente com a sua torre eram a última visão da paisagem urbana que levavam aqueles que, por mar, partiam em busca de outras terras, gentes e mercados. Eram sempre ausências com regressos ardentemente desejados. Porque significavam a recuperação da segura pro­tecção das paredes da muralha, sempre tão ambicionada no intranquilo mundo medieval. Era também por essas saídas que partiam os homens e mulheres que o mundo urbano recusava. Partiam cheios de revolta e desespero sabendo que jamais podiam regressar. Uns porque os esperava a morte na forca situada fora de portas. Aos gafos denunciados pelas chagas e aleijões, restava-lhes uma vida sem alegria dentro dos estreitos limites de gafaria. Ante os olhares condoidos e horrorizados dos passantes e a vista de uma cintura de muralhas que lhes recordava um espaço que já não podia ser seu.

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Para a maioria dos habitantes de um centro urbano, contudo, as ausências eram curtas e isentas de qualquer significado especial, uma vez que correspondiam a uma rotineira jornada de trabalho. Por isso, escolhiam o caminho mais curto, a saída que mais directamente os conduzia aos pelames, às olarias, aos fornos de loiça e cal. De onde regressavam ao cair da tarde, no passo lento de quem tinha ocupado o dia em extenuantes labores. Que por demasiado sujos e barulhentos eram considerados indesejáveis no interior da cerca.

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Mas o mundo urbano, apesar de subestimar institucionalmente a área rural envolvente, não deixava de depender fortemente dela. Com efeito, aí se ia buscar água, lenha, pedra, barro e areia. Entre o arvoredo das matas próximas ou nos vinhedos e ferragiais mais característicos do Sul do País apanhava-se caça miúda que trazia variedade à dieta alimentar. E aproveitava-se a força das águas dos rios e ribeiras para fazer mover os engenhos de moinhos e azenhas, obtendo assim as farinhas para fabrico de pão ou os fios que se utilizavam nos teares. Aí se situavam também as parcelas agrícolas que uns compravam por vaidade e ostentação e outros exploravam para assim completarem os rendimentos provenientes do seu mester.

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Em certas alturas do ano o movimento entre o interior da muralha e a zona peri-urbana intensificava-se. No Inverno, quando era preciso fazer as sementeiras, as mondas ou a conservação e limpeza das vinhas. Ou nos meses de Agosto e Setembro quando urgia empreender as colheitas ou apanhar as uvas. Fainas que, a sul do Tejo, se prolongavam até Novembro, mês da apanha da azeitona nos inúmeros olivais que enquadravam quase todas as vilas e cidades aí localizadas. Nessas alturas a zona peri-urbana tomava-se suficientemente apelativa para atrair bandos de garotos ávidos de fruta, gente disposta a vender a força dos seus braços e até os proprietários normalmente absentistas que não prescindiam dc uma vigilância pessoal dos seus haveres.

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Mas também se podia ir fora de portas sem levar preocupações materiais no espírito. Instalados, por opção, nas imediações dos núcleos urbanos medievais, os mendicantes, que apenas rareavam a norte do Douro, atraíam, com a sua mensagem de pobreza voluntária, um número cada vez maior de fiéis entre essas populações de desenraizados que afluíam às cidades e vilas. Muitos moradores preferiam orar nesses mosteiros para onde canalizavam as suas doações.

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Nas suas idas e vindas cruzavam-se com os muitos que faziam esse percurso em sentido inverso. Uns vinham de longe, outros apenas do termo. Mas havia quem viesse de muito perto, das habitações que se acolhiam à tranquila sombra exterior da cintura de muralhas, O arrabalde, com efeito, poucas vezes excedia o comprimento de uma rua e quem aí morava era obrigado a franquear regularmente as portas da cerca. Para ir ao castelo, à audiência, à casa do concelho ou à igreja matriz. Mas também para se dirigir aos açougues, à ribeira, à praça e às tendas e boticas. Aí encontravam os moradores do entre muros pois também eles tinham de cumprir esses percursos de abastecimento diário.

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Reconhecendo o papel dominante da mulher no interior do lar, a sociedade medieval tendia a reservar-lhe a manipulação e a transformação dos alimentos. Assim se justificava a presença maioritária de mulheres, comprando ou vendendo, nos locais onde se comercializava o pão, as carnes enxercadas ou na ribeira onde se amanhava e vendia peixe. No entanto, reservava-se aos homens o trabalho nos açougues. Só a eles competia, entre a Páscoa e o Entrudo, sujar as mãos com o sangue, as tripas e a gordura. O que, se por um lado lhes trazia prosperidade, não deixava, no entanto, de os desprestigiar marcando-os com o tabu do sangue.

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Às mulheres competia ainda o abastecimento doméstico de água quando não se podia contar com a comodidade de um poço particular. E todos os dias lá iam elas até à fonte ou ao chafariz que a vereação instalara em pontos concorridos, quase sempre em cruzamentos de ruas ou próximo das saídas para servirem ainda forasteiros sedentos. Junto à fonte tinham lugar autênticas assembleias femininas que, de certa maneira, se contrapunham às reuniões exclusivamente masculinas das tabernas. Em que se conversava, se lamentava o destino ou se invejava o sucesso de alguém, O riso brotava fácil tal como as discussões em que se trocavam palavras violentas, pancadas e puxões de cabelos. Depois, voltavam para casa, penosamente, extenuadas pelo peso dos cântaros transbordantes que deixavam marcas húmidas na poeira da rua.A aquisição de bens não perecíveis podia não afastar o morador da rua em que residia. Tudo dependia da sua localização. Sabia, no entanto, que era nas ruas de intenso movimento de forasteiros que se concentravam os ofícios do vestir e do calçar ou os menos vulgares, como a arte dos metais preciosos. E que os trabalhos do ferro exigiam a proximidade auxiliadora da água havendo que os procurar para os lados da ribeira ou pelo menos nas imediações da fonte. Mas nem todas as parcelas do espaço urbano eram igualmente apetecíveis a todos os moradores. Se algumas não lhe eram aconselháveis outras mesmo eram-lhe interditas.

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As esterqueiras, esses rossios delimitados por um pano de muralha onde a população fazia os seus despejos domésticos era frequentemente ponto de abrigo para malfeitores e arruaceiros. Locais a evitar, especialmente quando o crepúsculo já se anunciava.

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Pouco aconselháveis a gente pacata e sobretudo às mulheres honestas eram as tabernas, as estalagens e a mancebia. Alimentadas pelo elevado consumo de vinho que caracterizava a dieta alimentar medieval, as tabernas proliferavam por toda a superfície amuralhada e constituíam, juntamente com as estalagens localizadas nas artérias de saída, um espaço privilegiado para os jogos de azar e para os confrontos violentos que não raro se saldavam pela morte ou o exílio, Um percurso que muitos preferiam não ter aprendido.

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Desconsideradas socialmente mas apesar disso toleradas, as prostitutas eram compelidas a circuns­creverem-se a uma área — a mancebia — que os oficiais concelhios lhes determinavam. Um local muito procurado pela populaçâo masculina, sobretudo pelos jovens que aguentavam mal a espera cada vez mais demorada pelo dia do casamento. Locais barulhentos onde o vinho, os insultos e as agressões faziam parte do quotidiano.

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A judiaria no interior da muralha e o arrabalde mouro fora de porta faziam parte daquele grupo de lugares que qualquer morador localizava com exactidão. Mas isso não queria dizer que já lá tivesse estado. Na verdade, a judiaria e a mouraria assumiam-se como espaços autónomos e auto-suficientes. Mais do que a comodidade de tudo encontrar nos limites do seu bairro, antes era a expressão de uma segregação que procurava reduzir ao mínimo os contactos entre comunidades minoritárias e o resto dos ocupantes do espaço urbano. Pretendia-se o confinamento dessas gentes de crenças e costumes distintos diminuindo a sua mobilidade dentro da cerca.

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Para os cristãos a ida à judiaria ou à mouraria tinha sempre uma razão: um negócio a ultimar, um câmbio a realizar ou a consulta ao físico que em grande número de cidades e vilas portuguesas era um judeu. Quanto às mulheres, só entravam na judiaria durante o dia e sempre acompanhadas. A sua presença estava interdita nas mourarias.

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Mas vai já longo este deambular através do mundo urbano na companhia de quem o habitava. No entanto, talvez valha a pena voltar. Para calcorrear outros itinerários ou seguir, a par e passo, os que, como os oficiais concelhios, tinham da paisagem urbana um conhecimento privilegiado. Ou nos dias especiais — festas, entradas de personalidades, confrontos bélicos, incêndios, etc. — em que ruas e edifícios ficavam irreconhecíveis. Deixemos isso para outra altura e para outros textos.

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NOTA

Por absoluta falta de espaço este texto não vai acompanhado de notas. Assinale-se que os elementos para a sua execução foram recolhidos em fontes e trabalhos já publicados que se encontram citados em Amélia Aguiar Andrade, «Um percurso através da paisagem urbana medieval», in Povos e Culturas, n°2, A Cidade em Portugal: Onde se Vive, Lisboa, 1987,57-77. Devem contudo citar-se ainda os seguintes trabalhos: M.Ângela Beirante, Evora Medieval, diss, dota, dact., Lisboa, 1988; Manuel Sulvio Alves Conde, Tomar Medieval— O espaço e os homens (séculos Xl V-XV), dias, mestrado dact., Lisboa, 1988, e A. H. Oliveira Marques et alii, Atlas de Cidades Medievais Portuguesas (séculos XII-XV), vol. 1, Lisboa, 1990?.


[Ousámos publicar ese texto pela originalidade na forma como o tema é abordado e pelo carácter pedagógico que possui. A autora está citada resta apenas citar onde este artigo se encontra: Estudos de História e Arte - Homenagem a Artur Nobre de Gusmão, Edições Vega, 1995].

Fonte: Mercado Medieval de Óbidos

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